Formigas

Glauber Cruz
Construtor
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19 min readMay 15, 2020

Alerta de gatilho! O conto a seguir aborda assuntos como depressão e suicídio, que pode ser gatilho para algumas pessoas.

As formigas começaram a mastigar a minha cabeça pelas beiradas.

Elas eram a única coisa que eu lembrava daqueles dias embaçados que passei no hospital. Dias que pareciam dilatados, lentos de tão espessos, marcados pela sensação das pequenas patinhas caminhando pelos meus braços, pelas minhas pernas, pelo meu rosto. Às vezes eu sentia aquela cócega perturbada enquanto elas se enfiavam dentro das minhas narinas ou saíam dos meus ouvidos.

Quando despertei de fato e passei a sentir com um pouco mais de consciência a dor quente no lado esquerdo da minha cabeça, quando consegui mover com mais força os lábios e a minha língua, a primeira coisa que comentei com a moça de branco que me atendia foi que aquele lugar estava infestado de formigas iguais àquela que caminhava pela minha canela naquele exato momento. Assustada, ela me disse que não havia formiga nenhuma ali, o que não parecia verdade, pois elas estavam por todos os lados. No chão, nas paredes, no teto.

Eu continuei a vê-las depois que os dias começaram a passar mais rápido, desprovidos da paralisia dos analgésicos, e no momento em que abandonei o hospital, ciente de que em algum momento da vida um ônibus havia arrebentado o lado esquerdo da minha cabeça, transformando, segundo as testemunhas, meu supercílio em uma massa disforme e quente de sangue. Quando escovava os dentes, eu as via deslizar sobre suas patinhas na direção do ralo, depois de caírem dos meus cabelos; quando tomava banho, seus corpos encharcados ficavam presos em bolhas de sabão e tufos de cabelo; quando colocava meus tênis, sempre os sacudia primeiro para me certificar de que não havia nenhuma escondida no sufoco escuro das palmilhas. Não adiantava muito, pois sempre restava uma ou até mesmo duas esmigalhadas sob o meu peso, restos em manchas nas meias. Precisava cuidar até os pratos de comida que comia, pois elas gostavam de mergulhos quentes no caldo do feijão ou da prisão pastosa no grude do arroz que aquela mulher cujos cabelos tinham raízes brancas preparava ao meio-dia. Estavam no fundo dos copos de suco de laranja que eu tomava, nas muitas caixinhas de remédios que eu passei a engolir, nos fundilhos das cuecas que eu vestia. Estavam em mim.

As pessoas que me rodeavam passaram a perceber, algum tempo depois que saí daquele quarto de hospital, quando eu as enxergava. Meu olhar ficava fixo sobre elas, tentando não perdê-las de vista, imaginando o seu trajeto, tentando entender de onde vinham, para onde iam. Mas elas tropeçavam umas nas outras, se chocavam e se separavam, e tão logo eu já não sabia se estava perseguindo aquela que caminhava pela mesa afora ou aquela que entrava na manga da minha camisa. E eles me olhavam, perguntando em silêncio o que havia comigo, delimitando, nos seus olhares debochados e irritados, o meu antes e o meu depois do ônibus. Falavam, como se eu não estivesse ali, que antes eu era aquela coisa ensimesmada, quieta no meu próprio universo de timidez, mas ainda assim viva, com ar entrando e saindo dos pulmões. Depois, eu virei aquela coisa com um tônus frágil, com um andar cansado, temendo cada passo, cada porta e cada esquina. Um olhar perdido e distante, potencializado em seu vazio pelo meu silêncio absoluto.

Para mim, não havia um antes. Eu não lembrava de nada do que acontecera antes do tal ônibus. Quando acordei naquele universo delimitado pelas duas cortinas encardidas ao redor da maca do hospital, me perguntei como havia parado ali. Alguns estalos pipocavam na minha cabeça, como um fio de energia em curto circuito. Rastros de coisas há muito passadas, que iam e vinham, para voltar mais uma vez. Eu sabia que sabia falar, e tinha a noção de que havia aprendido a andar, por exemplo. Mas não sabia quem havia segurado meus pulsos me protegendo do tombo dos primeiros passos, tampouco quem apontara para as letras que juntas formavam as minhas primeiras sílabas e palavras.

Aquelas pessoas todas que me rodeavam, que me acompanharam no hospital, que me acomodaram naquele quarto cheio de cartazes de times de futebol, eu não sabia quem eram. Não havia conversa que fizesse eu ter a certeza de que aquela mulher que fazia um arroz embolotado era minha mãe; também não havia fotos ou qualquer outro tipo de registro que pelo menos raspasse as minha memória e me fizesse lembrar que aqueles homens que moravam nas casas ao lado daquela que eu estava eram meus tios, e não meus irmãos, ou meus pais, ou seja lá o que fosse. Não havia nada também que me fizesse enxergar aquela casa como minha casa. Nenhum cheiro, nenhum raio de sol, nenhuma parede, nenhuma tomada estragada. O curioso era que elas, as formigas, andavam aos montes por lá. Se nos outros lugares que eu ia, sempre acompanhado por alguém que eu não sabia quem era, as via perdidas, uma cá outra acolá, naquela casa elas andavam em linhas que se espalhavam pelo chão, para cima e para baixo, caindo de tudo e sobre tudo.

“Tá louco”, um dia disse aquele homem que diziam que era meu tio e que tinha um tufo ralo de cabelo grisalho na cabeça para um outro que eu não sabia quem era pois nunca me disseram. Eu estava olhando aquela linha de formigas que entrava pela porta da sala e sumia debaixo do tapete vermelho cheio de pó. “Bem tantã”, ele prosseguiu, girando o dedo de apontar em volta da orelha. Ele riu e eu não entendi como deveria me sentir. Só fiquei olhando pra ele, tentando puxar de algum canto da minha cabeça quem ele era, até ele arremessar um pouco de erva-mate na minha direção e mandar eu sair, com um som esquisito escapando pela boca. “Sshiisp”.

Virou rotina as pessoas arremessarem coisas na minha direção. Eles achavam que as coisas na minha cabeça não duravam muito tempo e elas realmente esmaeciam facilmente. Mas algumas coisas ficavam, muitas delas daquelas coisas feitas em silêncio, caretas esquisitas, os beliscões, e mesmo os tapas no rosto, vindos das mãos daqueles meninos que tinham o meu tamanho e o rosto próximo do meu, que diziam que eram meus primos. Normalmente o faziam quando a mulher que preparava aquele arroz empaçocado não estava presente, mas pareciam ainda mais excitados quando ela estava e o faziam por suas costas. Eu não entendia muito bem, no fim das contas. E pensar demais, tentar entender demais, fazia com que minha cabeça doesse e que as coisas se dissolvessem ainda mais rapidamente, sopradas por um vento qualquer, vindo de lugar nenhum.

Não raramente eles juntavam todos dentro daquela casa, colocavam mesas pelo pátio, e as pessoas começavam a chegar de todos os lados, falando alto, rindo alto, fazendo tudo muito alto. A minha cabeça doía e as formigas pareciam mais agitadas, pareciam duplicar, triplicar em quantidade e se enfiavam por tudo em mim, me dando coceira e eu me coçava e o outros me olhavam. Alguns tinham os olhos tortos, outros os olhos de troça, a mulher que fazia o arroz empaçocado os olhos indecisos, algo entre a raiva, a pena e a tristeza. Por isso que eu preferia ir pra aquela peça com cartazes de times de futebol na parede, onde ficam só eu e elas, as formigas, dedilhando o rosto imóvel e desbotado dos jogadores daqueles times antigos.

Numa noite em que a casa estava cheia de luzes e gente, com mesas cheias de comidas e uma ave assada toda picotada no meio de um prato redondo sobre a mesa, eu estava naquela peça, escondido das risadas e do dedo apontado por aquele homem que tinha uma barriga enorme e redonda, que não largava o copo e tinha os olhos vermelhos como sangue, quando os meninos que tinham a minha altura entraram porta adentro. Estavam acompanhados de mais um monte de meninos e meninas, quase todas do mesmo tamanho, com olhares esquisitos, debochados e amedrontados.

“E se ela chegar?”, perguntou uma menina, que costumava aparecer por lá só nesses momentos em que a casa enchia de gente.

“Foda-se, a mãe xinga ela” disse um dos meninos que tinha a minha altura. “E ele nem vai lembrar nada mesmo.”

“É real que ele esquece tudo?”, perguntou um outro menino, com o cabelo muito preto apertado numas tranças curtas e com ferros enfiados nos dentes. Eu nunca tinha visto ele, pelo menos antes de esquecer tudo.

“É. É um babão”, disse o menino da minha altura que estava à frente de todos os outros. Eles formavam um círculo pela metade à minha volta, um círculo de deboche, curiosidade e medo, e eu me perguntava como sabia diferenciar o brilho naqueles olhos, como sabia quais eram de uma sensação e não de outra.

“E o pau dele? Será que sabe usar?”, perguntou um outro menino um pouco menor, com o pescoço mais cheio, separado em dobrinhas.

“Ele não usava mesmo, usava só a parte de trás. Não é Pedro?”, disse uma menina muito magra, com o cabelo espichado ao máximo em um coque perfeito. Os outros riram.

“Cala a boca, guria”, disse um menino também muito magro, o único que não sorriu.

“Bom, a gente pode testar”, disse o menino da minha altura, avançando na minha direção. Um brilho cintilou nos olhos dele e eu soube exatamente que o raio daquele brilho e a forma como ele tremulava sob a luz do quarto era um brilho de deboche. Um deboche que se deliciava em si mesmo, um deboche orgulhoso de si mesmo, que queria aparecer. Por isso brilhava daquele jeito.

Quando a mão dele agarrou o meio das minhas pernas, não senti aquela agitação que eu costumava sentir quando acordava, mas sim um medo muito profundo, acionado em segundos. Afastei a mão dele com um tapa.

“Parece que ele esqueceu que gosta dessas coisas”, disse a menina magra com o coque perfeito.

Todos riram, e os olhos do menino que tinha minha altura pareceu cintilar ainda mais, fazendo-o avançar. E ele avançou, rápido demais, tão rápido que nem tive tempo de perceber as formigas que se agitavam ao redor dos meus pés, subindo pelas minhas pernas. Num instante ele estava ali, no outro já estava me segurando pelas costas, me deixando imóvel diante daqueles olhares que cintilavam. Prazer. Os tapas e os beliscões e os chutes que ele e o menino que era parecido com ele me davam não estavam concretos na parede das minhas lembranças, mas eu sabia que aquele momento estava sendo diferente. O medo que eu sentia, e que agitava as formigas em mim, me fazia ter certeza disso. Principalmente quando aquela menina avançou, com o punho fechado, com um brilho cheio de vontade cintilando nos olhos. O menino segurava meus braços muito forte, e quando as formigas começaram a mordiscar, em sincronia, cada pedaço das minhas pernas, o desespero se alastrou em mim e eu comecei a me debater. Uma dança feia, fora de sincronia, que divertiu todos eles. Me sacudi, e quando ela socou a minha barriga, me deixando sem ar e agitando ainda mais as formigas, eu me sacudi tão forte, girei a cabeça tão forte, que ela bateu no rosto do menino que tinha a mesma altura que eu. Doeu muito e mais uma vez a minha cabeça ficou quente e pesada, parecia que estava estalando, rachando lentamente.

“AaAh”, o menino gritou e a menina do coque perfeito arregalou os olhos, assustada. As formigas haviam fugido, e de repente me senti terrivelmente sozinho. Precisava correr, e corri. Joguei a menina com o coque perfeito pra longe do meu caminho, para cima dos outros. Senti minha mão se debruçar, aberta, sobre o lado do rosto dela e tudo pareceu ficar em silêncio. Eu não ouvia mais as vozes de toda aquela gente, nem a música alta e mesmo as luzes pareceram mais fracas. Corri daquela peça e entrei na primeira porta que apareceu na minha frente, a porta do banheiro. Mas quando fui fechá-la, algo me impediu, uma força que a empurrava. O menino que tinha a minha altura surgiu, seguidos dos outros todos, e tentava entrar no banheiro; ele tinha o nariz e a boca manchados de sangue; a pele, que era de um marrom escuro, igual ao meu, parecia toda vermelha. Não foi difícil para ele abrir a porta, e quando eu vi já estava no chão, com aquele olhar dele cintilando sobre mim. Agora era um brilho de fúria. Ele socou o meu rosto com tanta força que eu pude ouvir o crack de alguma coisa que eu não sabia o que era, mas que doeu, deixando minha cabeça ainda mais pesada e mais quente.

Houve uma confusão, palavras que se enrolavam umas nas outras, e vultos que eu não conseguia divisar por causa da tontura que pegou a minha cabeça e começou a chacoalhar com força e velocidade. Eu não conseguia me levantar, era como se um outro ônibus tivesse me arrebentado novamente.

“Esse filh… da puta, quebro… meu narish”, o menino que tinha a minha altura e que ali parecia ser o vulto que era enorme diante de mim, gritava, as palavras estavam encharcadas, esguichavam da boca dele.

“Vou sair daqui!”, alguém que eu não sabia quem era gritou. Então começou uma confusão de pés batendo numa só direção, alguns tropeçaram em mim e a porta foi batida com tanta força que o som foi quase como uma outra pancada.

A minha cabeça parecia uma peça móvel, que girava em torno de articulações enferrujadas. Doía tanto que eu comecei a chorar. E aquilo, aquele estranho ato de chorar, que pareceu tão natural naqueles dias de ações mecânicas, ajudou a afastar lentamente toda a dor daquele momento. Aos poucos a minha cabeça parou de ranger e girar. E quando o som daquela gente que fazia tudo muito alto voltou a soar nos meus ouvidos, elas reapareceram. Trafegando pelo rejunte entre os azulejos, saindo do vaso sanitário, entrando pela basculante e aquela uma, no teto, exatamente na linha dos meus olhos, que mesmo minúscula, parecia nitidamente desequilibrada ao andar pelo mundo de ponta-cabeça. Acompanhei ela por uns instantes e quando pensei que, enfim, talvez pudesse ver para onde elas iam, ou de onde vinham, ela perdeu a força nas patinhas minúsculas e caiu. Um corpo minúsculo em queda livre que encontrou no escuro da minha boca entreaberta um refúgio quente e improvável.

Ela tinha gosto de ferro quando derreteu, esperneando, na minha saliva. Mas não um ferro qualquer, mas sim ferro de sangue. Talvez por isso eu tenha sentido ela pulsar na minha boca, morrendo sobre a minha língua. Tão logo ela sumiu, aquele calor na cabeça começou a amornar, até virar uma baforada leve que até gostosa parecia. Tão logo o seu corpo deixou de existir, o rosto de meu primo veio à cabeça. O som da rua, das pessoas e da noite, chegou aos meus ouvidos quando eu me dei conta que sabia que aquele menino que tinha a minha altura era meu primo. Tive a noção da proximidade dos nossos traços e também da distância dos nossos traços, e entendi cada beliscão, cada soco, cada xingamento que ele proferia e entendi também o brilho daqueles olhos, que brilhavam desde muito tempo, muito antes das formigas e dos ônibus e dos crânios arrebentados.

Eu permaneci no chão do banheiro durante mais alguns minutos, com a cabeça morna, até que uma histeria se instalou na voz de todos, principalmente daquela mulher de cabelo muito curto, que gritava para o pátio inteiro, perguntando onde eu estava e me acusando de tirar o sangue daquele menino da minha altura que era meu primo e daquela menina com o coque perfeito, que também era minha prima. Percebi aquilo quando apertei entre os dentes a formiga que subia pelo meu cotovelo. A minha cabeça permaneceu morna naquela noite, e também no dia seguinte, quando as pessoas já haviam ido embora e meu primo não sangrava mais. Nos dias que sucederam aquela noite, ninguém mais esperava a mulher que fazia arroz embolotado virar as costas para que pudesse me xingar ou jogar coisas. Havia não só uma displicência com a minha condição carcomida como também um prazer em me punir. Fosse pelo nariz sangrando do meu primo, fosse por simplesmente estar daquele jeito. Foi em um daqueles dias que a mulher que fazia arroz embolotado me disse para ficar dentro do quarto, junto dos jogadores de futebol desbotados, e não sair até que ela mandasse.

No vai-e-vem das formigas, que subiam pelas cobertas, rodeavam meus pés, rodeavam as pilhas de objetos jogados sobre as prateleiras daquela peça, eu não vi o tempo passar. Elas pareciam mais tranquilas e parecia fazer muito sentido oferecer meus dedos para que elas subissem, rumo ao derretimento da minha saliva. Quando as luzes caíram pela primeira vez dentro daquele quarto, o gosto delas já era doce. Não doce como aquele doce de abóboras desmanchadas que a mulher que fazia arroz embolotado preparava, mas sim doce como a ideia do doce: algo que estabiliza a pulsão de dor que as coisas carregavam em si. Foi com o sabor doce das formigas que aos poucos fui entendendo tudo e mais um pouco, sob o olhar estático dos jogadores de futebol. Àquela altura, elas já caminhavam de maneira mais organizada. Eu conseguia entender como elas iam e voltavam e se apurasse o ouvido, poderia ouvir o que uma cochichava à outra quando se chocavam. Vi que elas subiam pela prateleira velha, penetravam nos sulcos da madeira para saírem da orelha de um dos cartazes na parede do outro lado do quarto, de onde iam para baixo da cama para depois circundar, em zigue-zague, a janela.

Em cada pedaço desse trajeto eu as colhia. Algumas cediam facilmente, com aquela doçura enferrujada e com uma sensação de quentura na cabeça. Outras fugiam agitadas e eram essas, mais difíceis de pegar e às vezes até mais graúdas, que faziam a minha cabeça coçar e me faziam entender ainda mais. Com aquele gosto que era muito doce ao mesmo tempo que ácido, eu entendia os detalhes, os sons, os espaços, as luzes, as sombras, as pessoas.

Quando a porta daquela peça foi aberta, meu primo já não sangrava mais, tinha apenas uma tímida mancha roxa no rosto e eu já conseguia identificar no olhar de cada um daqueles que me olhava, exatamente o que eles queriam dizer ou estavam pensando, que eram as coisas que eles sempre pensaram ou estavam sempre querendo dizer durante todos os meus dias sob aquele céu. Céu foi como eu chamei aquela coisa que eu não lembrava o nome de maneira alguma, mas que era longa e cheia de coisas que, pouco a pouco, eu ia lembrando. Como um tecido, agora todo retalhado, sobre o qual eu ia sendo costurado.

Já elas, as formigas, pareciam sumir aos poucos. E eu comecei a cogitar a possibilidade de estar, de fato, comendo todas elas. Tanto que à medida que iam desaparecendo iam perdendo aquele gosto doce e ficando mais arredias, esparsas no desespero de sua extinção. Quando eu comecei a procurá-las e não vê-las por todos os lados, o seu gosto começou a ficar ácido e a perturbação de suas patinhas começou a me incomodar de tal forma que eu desisti de apenas derretê-las na umidade da minha língua. Passei a pressioná-las entre os dentes, mordiscando-as fatalmente para sentir aquela coceira dentro da cabeça.

Quando aquele céu de todas as coisas parecia muito nítido, de maneira que eu sentia que poderia tocá-las, revirá-las, vê-las, repeti-las, catalogá-las, eu me senti estranho. Era como reencontrar uma pessoa que há muito tempo eu não via, com o adicional de um potencial questionamento de si próprio. Eu sou assim? Quando eu reconhecia uma pessoa, sentia uma coceira esquisita na boca do estômago acompanhando a coceira dentro da cabeça: era como se eu folheasse a pessoa, conhecendo ela num primeiro momento; num segundo momento, eu estudava o rastro dela naquele céu; num terceiro momento, sentindo cada sensação de forma quase mecânica, eu entendia a pessoa, o que ela significava e como se apresentava naquele céu. Se era nuvens num dia de sol, se era a palidez de gelo da névoa, se era o cinza pesado dos dias chuvosos. Fiz isso por algum tempo, sempre com aquela sensação de que faltava algo, uma unidade, algo como a força que grudava grão de arroz com grão de arroz quando aquela mulher jogava os grãos na panela, e misturava com o óleo, que espirrava em som pela cozinha, sendo abafado pelo mergulhar da água na panela e pela fumaça levemente branca que levantava e enchia o ar. Era daquela mulher, que eu ainda não entendia quem era, que parecia vir a falta de relação entre as coisas e o próprio desagregamento daquela gente, primos e tios, filhos e filhas, que vivia naquela casa e voava naquele meu céu.

Até que um dia, quando as formigas não perambulavam por mais nada, eu vi a última delas, perdida na distância do seu formigueiro invisível, à procura talvez de um sentido, de uma nuvem naquele céu. Ela surgiu dentro do meu prato de comida. Tinha as patinhas sujas de arroz quando levei o garfo à boca. Era graúda, muito maior que as tantas outras que haviam sumido, de maneira que desfilava com tranquilidade na pastosidade daquele arroz. A encarei por muito tempo, enquanto ela circulava pelo prato, margeando o caldo de feijão, e se enfiando entre os arbustos dos brócolis ainda fumegantes, recém saídos da água quente.

Eles, que estavam ali mastigando ruidosamente e comentando sobre as coisas que vislumbravam em seus céus particulares ao redor de mim na mesa, não me encaravam. Mesmo que eu lembrasse já quem era cada uma daquelas pessoas, permaneci naquele estado atônito, deliciando a falta de crença que elas nutriam por mim. Eu podia ficar dias e dias e mais alguns dias apenas observando as formigas, já que eles me tratavam como alguém sem pedaços, como alguém não-digno de qualquer outra coisa além do desprezo explícito ou do desprezo disfarçado de pena.

Ela permanecia ali, perambulando por aquele pequeno continente que era o meu prato de comida. Tinha um tom esquisito, algo como um cinza grafite, aquele cinza fechado dos dias de chuva. Diferente das suas tantas outras irmãs, a formiga caminhou na direção das minhas mãos, muito consciente da minha existência, do meu ser e do meu estar. Havia algo de diferente nela, algo que nada tinha a ver com o seu tamanho ou sua cor. Quando ela alcançou o meu indicador e ali estática ficou, eu sabia que as coisas se aproximavam umas das outras. Senti que estava prestes a entender.

O gosto dela era tão ácido que por instantes achei que a minha língua estava queimando. Lágrimas brotaram do canto dos olhos. Ele tinha a textura de um grão e me senti mastigando um feijão cru quando meus dentes romperam aquela pequena dureza. Foi como se a minha saliva se solidificasse e tive a sensação de que se baixasse a cabeça com a boca aberta, areia sairia pelos meus lábios. Experimentei, mas antes que qualquer grão de areia pudesse deslizar pelos meus dentes, as coisas se agregaram. As lacunas vazias se preencheram com uma substância grossa, como aquele caldo de feijão, então tudo pareceu limpo e estável, sem nenhuma ranhura, uma parede lisa, como o céu da minha boca, pelo qual eu passava a língua quando ouvi o som dele, aquela máquina ruidosa, cheia de articulações, cheia de gente, que parecia mais viva do que eu.

O ônibus eu vi com o canto dos olhos e, sob aquele céu, que era cinza grafite, cheio de nuvens de um dia de chuva, eu tive de decidir, em milésimos, se eu daria continuação àquilo. Na época, eu chamava de vida. Percebi que é mais interessante chamar de céu. O veículo veio e eu estava de certa forma tranquilo. Já estava decidido, já era tempo. Sobre a minha cabeça, o semáforo piscava: saía do vermelho e ia para o verde. Então o tempo pareceu parar. Partículas de pó giravam ao meu redor, como uma corda que se arrebenta, pouco a pouco, sob um feixe de sol. Quando o som do ônibus engoliu meus pensamentos, eu fui em frente e o impacto veio de imediato. Ainda assim, consegui dividir a aquela fração de segundo em partes, duas partes tão concretas que eu podia senti-las, de fato, no corpo. Primeiro a rachadura: o lado esquerdo do crânio parcialmente partido em linhas que pareciam uma teia de aranha. Crack! Gosto de pensar na minha cabeça como um pedaço de vidro. Depois, o espatifamento, quando eu fui arremessado para longe, com um braço quebrado e uma perna quase que desconectada. O som reverberou pelo que restava da minha cabeça e era como se mil espelhos quebrassem ao mesmo tempo. O que eu vi, na fatia pequena de segundo que ainda enxerguei, estranhamente acordado depois do impacto, foi aquela infinidade de cacos de vidro minúsculos, que se mexiam sob patinhas, por todos os lados, ao redor do meu corpo inerte.

Eu ainda tinha a língua no céu da boca quando aquela lágrima escorreu pelo meu olho. De repente eu entendi que não queria lembrar daquilo, não queria entender nada daquilo, que nada ao meu redor era capaz de acionar qualquer pulsão de vida. Vida. No momento em que a sinaleira deixou de ser vermelha e ficou verde, eu entendi que não queria mais a minha. As coisas estavam difíceis naquele céu de incompreensão e hostilidade. Sob ele, o horror parecia tão banal, disfarçado por trás das coisas todas. Só ela, com aquele olhar fervorosamente carinhoso, com aquele arroz todo embolotado, era capaz de fechar a mão em meu rosto e me impedir de aspirar a toxicidade do ar que circulava ali. Eu tentei não pensar nela quando as luzes do semáforo mudaram, quando o som do ônibus chegou no pé dos meus ouvidos. E quando as formigas vieram na minha direção, talvez eu tenha me sentido aliviado por não ter mais ela dentro daquele crânio espatifado. Os seus olhos tristes… eu não queria ver. Há muito, eram o calor e a vivacidade que saía deles que me permitia respirar.

Quando a noite caiu naquele dia em que entendi tudo, eu deitei na cama do quarto e por horas esperei que elas viessem, caminhando pelos meus membros, circundando os meus cabelos crespos, presas na cera dos meus ouvidos ou no muco do meu nariz. Procurei-as nas meias e nos tênis, nos ralos e nos copos, no chão e no teto. Se foram todas as minhas esperanças de que aquele céu pudesse ser mais bonito de se olhar. Mas eu olhava pra cima e via muitas nuvens de um cinza grafite que me deixava assustado. Veio então, com a luz do dia, a mesma certeza que veio com a luz do semáforo. Lembrei daqueles produtos sob a pia da cozinha, que eles usavam naquela casa para matar as pragas. As baratas, os ratos, as formigas e as gentes que eles não queriam ter por perto. A lata era fria e a sua tampa tinha ferrugem, de maneira que meus dentes se arrepiaram quando ela se abriu, liberando aquele cheiro forte de coisa velha e guardada. Granulados rosas, como balas, enchiam o recipiente. Fechei os olhos e torci para que fossem doces como formigas.

Tampei a lata quase vazia e a recoloquei no lugar. O sol lambia morno o rosto imóvel dos jogadores de futebol na parede quando deitei na cama, sentindo o formigamento que começava na boca do meu estômago e estrangulava, de pouco em pouco, o fio da minha respiração. Meu tronco pesava tanto que eu senti afundar no colchão. Fechei os olhos quando uma lama quente espirrou dentro de mim. O som que eu fiz eu não ouvi, porque eu só conseguia ouvir a mastigação ruidosa delas quando começaram a mastigar a minha cabeça pelas beiradas.

As ilustrações deste conto foram feitas pelo desenhista Marcelo Casarotto.

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