(Não) Corra Fulano, (não) corra!

Glauber Cruz
Construtor
Published in
4 min readJan 18, 2017
cena do filme “Corra Lola, corra” de Tom Tykwer

Era uma manhã com algo de cinza, um sol tímido esparramado sobre a João Pessoa. 8h 30min e o movimento já era intenso. Caras de sono, passos apressados e as pessoas começavam a sua rotina.

Eu começava a minha. Saí de casa, muito pontual e de rosto lavado. Antes de ir para o trabalho decidi dar um pulo na padaria Big Ben, ali na André da Rocha (preços bons, pão de queijo interessante quando tá novinho) onde eu geralmente compro alguma coisa pra enganar o estômago durante a manhã. Comprado o esboço de café da manhã saí embalado na direção da João Pessoa, alguma música que não lembro qual tocando no Spotify. Eu seguia no meu itinerário linear de todo dia, o qual eu poderia seguir de olhos fechados não fossem os imprevistos promovidos pela realidade de uma grande cidade. Cheguei na esquina da André da Rocha com a João Pessoa e, mal o sinal de pedestres foi tingido de verde lá do outro lado da avenida, a minha rotina tropeçou naquela imprevisibilidade tão típica das cidades grandes. O moço disse “não corre”, num tom digno de uma intimidade de anos. A minha primeira reação foi pestanejar: o planejamento linear do meu dia havia sido interrompido, eu precisava reconfigurar, atualizar as configurações de ação. Quando ele repetiu para que eu não corresse, dessa vez num tom mais urgente e quando percebi que uma de suas mãos estava sob a camiseta eu então entendi o que era aquilo. Uma coisa não tão imprevisível afinal.

Reconfigurei e, fazendo algo que não costumo fazer, não dei ouvidos àquela sugestão, peguei minha mochila com força e corri. Sem pestanejar, sem olhar para trás. Parei só quando atravessei a portaria da Casa do Estudante. Subi as escadas, a adrenalina quase esboçando um sorriso no meu rosto. Sentei perto da porta do meu quarto e, à medida que o evento ocorrido lá embaixo na João Pessoa ia sendo arrastado pelo vai e vem dos ônibus, levando consigo a sua adrenalina, eu fui tendo a dimensão do que havia acontecido e do que eu havia feito.

Piorou. Uma sensação de pânico se espalhou pelo corredor, me impedindo de sair dali, permitindo só a passagem de uma sensação de vulnerabilidade e fragilidade extrema, que infelizmente nos são inerentes nesses dias tão perigosos. Só tive força e coragem de levantar, entrar no meu quarto e me jogar na cama. Olhos fechados, posição fetal.

A primeira figura que eu vi quando pus os pés na rua naquele dia com algo de cinza e sol tímido, foi justamente a dos dois rapazes magrelos, provavelmente mais novos que eu, caminhando pela calçada. O olhar de um deles caiu diretamente em mim e naquele momento provavelmente eu virei o alvo, talvez o primeiro do dia. Segui a minha linearidade diária enquanto eles, me observando, me esperando, planejando a ação, seguiam a deles, dispostos a sobrepô-la sobre a minha. E, quando elas se cruzaram, numa ação automática (portanto nada calculada) eu corri.

Passados alguns dias e ainda lidando com o medo de sair na rua e tendo a certeza de que tive sorte de ter saído ileso dessa corrida, só tenho a dizer que: sério, não corra. Do alto da minha humilde opinião não vale a pena. Há um ano atrás eu tive meu celular levado e descobri como é decepcionante a ideia de largar na mão de alguém desconhecido algo que é seu, e que tem tanto de si. Ainda assim, penso que não vale a pena. Óbvio, não se trata de sair distribuindo tudo que é seu enquanto prega o deboísmo. Não se trata de não se cuidar, de não aguçar a visão periférica, de não viajar tanto enquanto ouve música e segue o mesmo caminho de sempre. Se trata na verdade de não colocar a sua vida num nível inferior ao de um celular ou qualquer outra coisa que tome parte do seu dia ou do seu salário, 12 vezes com juros. Não corra. Esqueça Lola, esqueça Forrest, esqueça o Bolt, esqueça o pessoal fantasiado da São Silvestre. Apenas não corra. Não vale a pena. Nossas vidas valem mais que um celular. Nossas vidas importam.

Pense que, antes de tudo, precisamos nos preservar, precisamos permanecer por aqui vivendo as nossas linearidades rotineiras, sempre arrumando forças e muita paciência para não deixar ninguém esquecer que, se queremos de fato resolver o problema da (falta de) segurança pública, precisamos ir muito além do reacionário discurso de que bandido bom é bandido morto.

Texto publicado na coluna “Portoalegretense”, escrita por mim para o jornal Gazeta de Alegrete.

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