Novembro (i)

Glauber Cruz
Construtor
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7 min readNov 11, 2017

Ain’t got no home, ain’t got no shoes

Ain’t got no money, ain’t got no class

Ain’t got no skirts, ain’t got no sweater

Ain’t got no perfume, ain’t got no love

Ain’t got no faith

Negro.

Essa foi a primeira certeza que perpassou a minha vida. Antes de saber que eu era gay (muito cedo), antes de saber que não gostava de meu pai (também muito cedo) eu já sabia que era negro. Minha mãe sempre me falou, mesmo sem falar. O meio no qual nasci sempre me falou, mesmo sem falar. Os professores, os amigos e a rua sempre me falaram, mesmo sem falar.

Em 24 anos de vida, nunca uma boca branca me chamou de macaco. Nenhuma mão branca interrompeu o meu caminhar em nenhum espaço. A minha relação com o racismo sempre se pautou daquela forma sorrateira e disfarçada. Aquele olhar que vai do alto da minha testa até a ponta dos meus pés; aquele discreto torcer de pescoço, seguido automaticamente de uma preocupação irrefreável com bolsas e mochilas; aquele atravessar de rua pra garantir. Vai que né…

Cresci cercado por isso. Esse silêncio que fala tanto e às vezes até mais que um grito. Nascemos assim. Frutos de ventres parideiros, “mais resistentes”, portanto não tão dignos de maiores cuidados. Crescemos assim, entre silêncios, gestos, palavras e olhares embebidos numa violência profunda. Enraizada. Crescemos assim, violentados. Essa é a nossa pedra fundamental.

Quem não tem a pele negra não sabe o quão difícil é ser criança.

Dói. Dói muito. Não dói tanto quanto uma chicotada que arranca pele e carne num estalo só. Tampouco é tão agoniante quanto ser jogado numa tumba no meio do mar, navegando no horror rumo a um horror ainda maior (trezentos anos de horror). Não é uma dor física, portanto para muitos não é digna de maiores preocupações. Ainda assim dói. Ainda assim nos tira do eixo. E se você não tem um alicerce resistente, uma estrutura firme que pelo menos tente lhe colocar de volta no eixo, seguimos por um único caminho viável, ouvindo no fundo de nossos ouvidos o eco de vidas que, mesmo há muito assassinadas, continuam definindo o nosso hoje.

O problema é que são poucos os que possuem essa estrutura, esse alicerce. Pelo menos nesses meus curtos anos de vida eu conheci muito poucos que tinham as duas coisas: a pele preta e uma sólida estrutura familiar. Parece que em algum momento da história alguém assinou um documento que devemos escolher ou um ou outro. Deve ser coisa da Princesa Isabel.

Ain’t got no culture, ain’t got no mother

Ain’t got no father, ain’t got no brother

Ain’t got no children, ain’t got no aunts

Ain’t got no uncles, ain’t got no love

Ain’t got no mind

Estrutura familiar, na minha pouco madura concepção, dentre tantos aspectos, se baseia principalmente em dois: sólidas condições financeiras e emocionais. Bom, dinheiro sempre nos foi negado. Uma vez que o subemprego mal remunerado nos foi definido como opção primária (e muitas vezes única), construir uma base financeiramente concreta sempre foi difícil. Foi difícil com os histéricos generais militares, foi difícil com Sarney, com Collor, com FHC, foi um pouco menos difícil com Lula e Dilma e voltou a ser penoso com Michel Fora Temer. Mas sempre foi assim: difícil. Pensar em dinheiro pra mim sempre foi doloroso porquê eu sempre via (e ainda vejo) ele como a forma de ter o mínimo. Como podemos ter o mínimo se quando aos meios de obter esse mínimo também são assim, mínimos? Não lembro de nenhuma ocasião em que qualquer evento que fugisse da banalidade do dia-a-dia em minha casa não fosse carregado de uma preocupação extrema de como vamos fazer isso? Festas no colégio, lanches com os amigos, viagens escolares. Nada disso foi, na minha infância, tranquilo.

E se sobreviver até o fim do mês já é uma batalha, imagina construir uma base sólida de amor, carinho e ternura.

Amor? Carinho? Ternura?

Minha mãe nunca me disse “eu te amo”. Eu sei, assim como sei que o Brasil é um país racista e assim como sei que sou negro, que minha mãe me ama. Eu nunca disse “eu te amo” para minha mãe, ou para meu irmão, mesmo tendo a certeza de que o sentimento que tenho pelo dois é a única coisa que seja inabalável em minha vida. Óbvio que esse meu estranhamento na ausência do falar acusa a obsessão que temos na verbalização das coisas, na necessidade de submeter nossos sentimentos a holofotes intimamente públicos. A questão é que a nossa raça determina de uma forma bem rígida quem consegue e quem não consegue fazer isso. A questão é que nem minha mãe, nem eu, nem meu irmão, nem meus avós fomos ensinados a dizer que amamos. Não fomos ensinados a ver a importância dos sentimentos que nutrimos, o quanto eles falam sobre nós e para nós. Penso no dia em que falei para minha que eu era um homem que sentia afeto por outros homens. Penso em como foi difícil falar, falar de amor, falar de sentimentos. Penso também na conversa que nunca tivemos depois daquele dia. Sobre os meus sentimentos, sobre os sentimentos dela.

Parece uma coisa completamente descompensada de se falar na sociedade de romances brancos da literatura, do cinema e da televisão na qual vivemos. Mas é real. Cru e real. E é também uma questão de tempo. De falta de tempo. Não temos tempo de demonstrar afeto, de pensar em afetividade. Afinal, nós precisamos correr contra o tempo. Precisamos correr contra tudo e contra todos o tempo todo para chegar ao fim do dia. Temos que enfrentar o Estado, o patrão, a patroa, o dono do armazém que vende fiado, a polícia. Minha mãe nunca me olhou e disse “eu te amo” porque trabalha em dois empregos e quando chega em casa senta cansada pensando em como ela vai fazer para juntar dinheiro para enfim terminar o banheiro que há dezessete anos ela começou e ainda não conseguiu terminar; ou quanto vai mandar para o filho que estuda fora passar o final de semana uma vez que também precisam ela mesma e o outro filho passar o final de semana; ou como vai fazer para, um dia, talvez, viajar e descansar. Coisa que ela nunca fez depois que eu acordei para o mundo, há mais de vinte anos atrás.

Then what have I got?

Why am I alive anyway?

Yeah, what have I got

Nobody can take away

Eu suspiro aliviado quando penso que há, sim, algumas famílias negras que conseguiram essa estrutura, financeira e emocional. Mas meu corpo fica retesado quando penso que a exceção não faz a regra. E sem essa estrutura, somos jogados em uma sociedade maliciosamente racista, que com uma mão lhe dá tapinhas amigos nas costas enquanto que com a outra lhe extermina com um tiro no crânio ao som de um coro estúpido que exalta um imaginário democrático-colorido-animado-e-receptivo Brasil.

Sem estrutura e afogados em uma sociedade tóxica, nos odiamos. O direito de uma infância plena é anulado pelo ódio que criamos por nós mesmos. Penso em mim e penso também na criatura que criei dentro de mim. Uma criatura que pouco a pouco foi me mutilando. Arranca o cabelo. Arranca o nariz. Arranca a boca. Tira isso de mim! Eu não quero isso em mim! As minhas primeiras incursões no Photoshop se basearam na busca da ferramenta que diminuía as coisas. Quero diminuir a minha boca. Somos educados a nos odiar. Não somos incentivados a exterminar essa criatura que cresce dentro de nossos pequenos corpos pretos de criança. Nem eu, nem minha mãe, nem minha vó, nem meu avô. Não aprendemos. Não ensinamos. Não aprendemos a ensinar. E ela vai crescendo, essa criatura que não nos destroi apenas fisicamente, mas também internamente, sussurrando que não podemos, que não conseguiremos por sermos o que somos. Negros.

E é tudo parte de um plano muito bem bolado por um racismo que é estrutural e estruturante. Os destrua. Física e mentalmente, mãe após mãe, filho após filho, geração após geração. Liquide essas crianças que são pretas, sementes de adultos também pretos. Aqui, na miscigenada e feliz terra brasilis, quando se trata de negros, a palavra de ordem é exterminar. Não importa como.

Ex-ter-mi-ne.

I got my heart, I got my soul

I got my back, I got my sex

I got my arms, I got my hands

I got my fingers, got my legs

I got my feet, I got my toes

I got my liver, got my blood

Em 24 anos de vida, nunca uma boca branca me chamou de macaco. Mas eu cresci mutilando a mim mesmo, aprendendo que por ser negro eu era menor. Aprendendo na rua, aprendendo na escola, aprendendo na minha vila, aprendendo na minha casa. O diabo se acomoda nos detalhes.

Cresci entre olhares silenciosos que diziam tudo, principalmente que eu deveria fazer um esforço dobrado, triplicado, quadruplicado e além para fazer o mesmo que as outras crianças. Brancas.

Cresci assim, sem me ver em lugar nenhum. Na década de 1990 o Lázaro Ramos ainda não era da Globo. Autoestima arruinada, me sentindo deslocado e incapaz para tudo, eu fui seguindo num processo que é lento ao mesmo tempo que é rápido. Nossa infância parece um sopro. Um sopro que dói. Nesse processo tive contato com ideias, pessoas, conversas, debates. E nessa passabilidade por espaços e discursos diferentes, que rompiam com uma estrutura que por tanto séculos aprisionou a mim, a minha mãe, aos meus avós, aos avós de meus avós. Comecei a ressignificar a palavra que sempre conheci. A palavra que me marcava e me definia. Que me marca e me define.

Negro.

I’ve got the life

And I’m gonna keep it

I’ve got the life

And nobody’s gonna take it away

I’ve got the life

Trechos da música “Ain’t Got No/I Got Life” de Nina Simone

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