O dia que durou uma vida

Glauber Cruz
Construtor
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10 min readFeb 13, 2020
foto de Vinícius Guerra

No dia 27 de janeiro de 2020 eu me formei jornalista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Foi uma segunda-feira surtada aquela. O dia começou aberto, com um frescor de outono. Porém, à medida que as horas passaram, o calor veio, puxando pelas mãos uma massa de nuvens pesadas e escuras que acabaram por derreter numa chuva de verão que pareceu durar uma eternidade. Naquele dia eu me encharquei duas vezes, e quando saí apressado para me togar, deixei a mãe avisada: se estiver chovendo na hora que tu e o Mano saírem, leva um guarda-chuva. No Uber, comecei o trabalho de aceitar que o álbum de fotos da minha formatura seria recheado de fotos com guarda-chuvas.

No fim, a chuva parou. Subiu das poças d’água e do asfalto aquele bafo que Porto Alegre adora, aquele calor que esquenta a cara e faz suar as axilas. E depois de muita espera, de quatro anos de curso, de muitas fotos, de “Olho de Tigre” do Djonga, de um discurso como orador e de um violinista que não entendi muito bem porque estava ali, eu me formei.

Glauber Cruz, um jornalista.

Aquele 27 de janeiro foi lindo, e eu consigo lembrar de cada recorte de minuto que, junto de outros tantos, formaram aquelas 24h. A definição perfeita e certeira do adjetivo inesquecível.

Mas aquela segunda-feira fresca — chuvosa — abafada não começou nela mesma. Ela começou há muito tempo, quando a década de 90 ainda engatinhava, quando eu mesmo ainda engatinhava. Começou quando éramos minha mãe, Sônia, e eu, numa vida assim, como tantas outras. Uma mulher — que é negra — e um filho. Subtraia a figura de um pai. Neste caso, subtraia a figura de Renato, o homem que também me pôs nesse mundo, mas que não fez muita questão de me ver crescendo nesse mundo. Portanto, no início do 27 de janeiro eram minha mãe e eu: era o empenho dela em passar o dia fora para que eu pudesse existir no mundo; era aquela vontade dela de provar que o mundo estava enganado, e que ela e eu daríamos certo; era o amor que sempre foi presente, cru, genuíno, à maneira dela, à maneira que foi ensinada. Era tudo isso e ela e eu. Éramos nós dois nesse mundo. Primeiro em Alegrete, onde nasci. Depois em Porto Alegre, onde cresci por três anos da minha infância.

Nas primeiras horas do dia 27 de janeiro, eu e minha mãe subíamos a rua Tocantins, no bairro Agronomia, próximo ao Campus do Vale, para ir para a casa que eu carinhosamente chamava de “casinha”. Naquela época, a rua Tocantins não era asfaltada e eu lembro até hoje do pó que subia ao céu noventista quando os carros passavam por ela. No trajeto entre a Tocantins e o Centro de Porto Alegre, eu conheci a UFRGS. Mais especificamente o prédio da Faculdade de Agronomia, com aqueles arcos amarelos, lindos de tão velhos e misteriosos. Ali, eu comecei a gostar dessa Universidade, que eu nem sabia que era uma Universidade.

O dia 27 de janeiro seguiu quando minha mãe disse que eu teria um irmão que o mesmo Renato que me pôs nesse mundo ajudaria a colocar no mundo, e que o mesmo Renato que não me acompanhou crescer nesse mundo também não acompanharia. O dia 27 de janeiro era quente e abafado, num meio-dia modorrento — se eu fechar os olhos e ficar em silêncio, eu consigo ouvir o zumbido das cigarras — quando Rafael se materializou nas nossas vidas. Àquela altura, o pó que eu via subir ao céu, agora já do outro século, não era o da rua Tocantins, mas da Rua dos Andradas, a rua que corta um pedaço de Alegrete, onde a minha família, muito antes de mim, de Rafa e do 27 de janeiro, plantou as sementes de seu universo particular.

A partir dali éramos eu, a mãe e o mano. E novamente a história de muitos: as mãos de uma mulher que teve deixar de lado a própria individualidade para construir um mundo para os dois homens que havia posto no mundo.

E assim o 27 de janeiro foi por muito tempo. Nós três e as dificuldades financeiras, nós três e o conflitos familiares, nós três e uma unidade profunda, nós três e nós três, dentro daquele espaço tão nosso que parecia caber só nós.

Nós três e o mundo (foto de Vinícius Guerra)

Fomos nós três até o momento do dia 27 de janeiro em que nos apartamos. Eu vim pra Porto Alegre, para circular pelos arredores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O mano também veio para Porto Alegre, só que para circular pelos arredores do Esporte Clube São José. E a mãe circulou por Alegrete e por dentro do seu ninho vazio. As coisas mudaram aos poucos. Éramos dois aqui, em pontos diferentes dessa cidade que às vezes parece tão fria e tão hostil. Era a mãe lá, num lugar igualmente frio e igualmente hostil.

A distância muitas vezes foi agressiva, opressiva, áspera. Havia o peso maciço da saudade e o peso esparso do medo de encarar as coisas sozinho. Nos saímos bem, eu e mano. Ele voltou para Alegrete, eu permaneci por aqui. Morei boa parte do tempo em casas de estudante. Alguns meses na Casa Estudantil Universitária de Porto Alegre (Ceupa) e três anos dividindo o quarto 434, quarto andar, final do corredor à esquerda, da Casa do Estudante Universitário da UFRGS, um lugar corroído pelos cupins e pela ineficácia das políticas de permanência de estudantes de baixa renda na Universidade.

Foram três anos tomando café, almoçando e jantando nos RUs, três anos ouvindo o som do estacionamento que ficava ao lado, três anos com medo de ficar trancado em um daqueles elevadores — eu sempre preferi subir os quatro andares pelas escadas — três anos subindo até o terraço para ver a cidade, ouvir a noite, conversar com a mãe pelo telefone. Na primeira vez que eu subi ao terraço foi justamente para ligar pra mãe. Eu não disse, mas queria ouvir a voz dela para me sentir minimamente protegido. Eu havia me acomodado há poucas horas naquele quarto que seria meu pequeno universo nos próximos três anos, e estava me sentindo sufocado com a aparência hostil daquele prédio que eu deveria chamar de casa. Ouvi a voz dela, voando pelos ares de lá do outro lado do estado e pousando diretamente no meu ouvido e chorei, sozinho. Odiei a dureza do mundo, odiei a força da desigualdade, odiei todas e quaisquer coisas que fazem o caminho das pessoas pretas, das pessoas pobres, das pessoas pretas e pobres, triplamente mais difícil.

Por aqueles motivos eu chorei muitas vezes. Algumas vezes no terraço, outras no meu quarto. Muitas vezes sozinho, algumas vezes com amigos. Mas ainda assim eu vejo as paredes daquele lugar, as plantas daquele lugar, as pinturas daquele lugar, as pessoas daquele lugar como algo digno — e muito digno — de um carinho profundo. Foram três anos naquele 27 de janeiro, três anos duros que me ensinaram muitas coisas e me fizeram experimentar muitas coisas. Um espaço de vida, de descaso, de resistência, de sexo, de amor, carinho e amizade. Um espaço que torna possível — de maneira falha, de maneira problematizante, de maneira que deve ser discutida — a permanência de muitas pessoas na Universidade. A CEU é um dos lugares da UFRGS que mantém viva a pluralidade do meio universitário. Justamente por isso ela deve ser olhada por olhos mais atentos e preocupados, deve ser pensada de maneira mais respeitosa. Existem três casas de estudantes na UFRGS, e dentro de cada uma delas existem trajetórias de vida que quebram as narrativas tradicionais — que são na maioria das vezes excludentes e limitadoras — e que tornam o espaço universitário mais popular.

E muitas dessas trajetórias vivem a Universidade em seu modo máximo. A minha foi uma delas. A UFRGS nunca foi só o lugar para onde eu ia estudar. A Universidade foi, em todos esses anos, o lugar onde eu dormi, onde eu comi, onde eu encontrava aqueles que agreguei à minha vida como amigos e irmãos. A Universidade foi, em todos esses anos, a minha principal fonte de renda, com os benefícios da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) — um dos principais alvos dos cortes orçamentários do governo federal — e o salário que recebia ao trabalhar como bolsista na UFRGS TV, onde comecei a pavimentar a minha carreira profissional.

Vivi tanto essa Universidade, tanto os espaços dela, que quando ela se viu ameaçada pela PEC do Teto, do desgraçado Michel Temer, eu não vi outra opção senão estar sob o seu teto, de maneira a impedir que ele caísse sobre mim, sobre meus colegas, sobre aqueles outros tantos que viriam depois de nós. Ocupei a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) com muitos colegas. Senti junto deles o estresse da pressão daqueles que queriam o desmonte do ensino público. Me esgotei tentando reverter uma medida assassina, que ataca justamente aquilo que é o combustível do motor da mudança da sociedade brasileira, a educação.

Nós ocupamos, lutamos e saímos derrotados, naquele recorte de 27 de janeiro. Mas com a mesma certeza de Darcy Ribeiro: fracassamos, mas temos o orgulho de não estar do lado de quem nos venceu.

Mas em alguns momentos do 27 de janeiro tivemos vitórias. Em 2018, a Reitoria foi ocupada por diversos coletivos de estudantes negros e pelo Movimento Balanta. A ocupação visava barrar uma medida do Conselho Universitário (Consun) que atacaria diretamente as cotas raciais. Todos aqueles estudantes e membros do movimento negro que sentiram o frio das paredes altas do prédio da Reitoria deixaram explícito que não seriam mais tolerados desrespeitos com a nossa presença no meio universitário. Ali, eu me senti capaz de mudar o estado das coisas, e tive a certeza de que o caminho que seguimos na direção de uma universidade mais plural, popular e negra, embora árduo e cheio de esbarrões institucionais, é um caminho sem volta. Não somos formigas, somos um formigueiro.

A UFRGS é um lugar complexo, que mobiliza sentimentos complexos. Eu amo essa Universidade; amo todas as experiências que tive nela, os espaços que passei por meio e em razão dela; amo a formação e a grande maioria dos professores que tive. Mas também sinto raiva: a odeio quando ela apresenta sua face excludente — que ainda existe — a sua face racista — que ainda existe — a sua face misógina — que ainda existe. Sinto raiva com o descaso com quem mora nas casas de estudante, sinto raiva com a relativização das muitas e justas demandas dos estudantes, sinto raiva quando penso o quão violenta ela pode ser e como pode ser um reflexo do Brasil. Violento e desigual.

Ainda assim, eu defendo a UFRGS. E com toda a certeza do mundo eu defendo a UFRGS. Com certeza eu defendo o ensino público, pois sou um filho do ensino público. Por meio dele eu percebi como é importante nos mobilizarmos para que as narrativas individuais e nacionais se transformem. Foi em razão dele que eu vi que é possível mudarmos as narrativas desse país. As professoras que tive no colégio e na Universidade, os colegas que eu tive no colégio ena Universidade. Essas pessoas e as próprias imagens invisíveis mas presentes do colégio e da Universidade me ajudaram a ser o que eu sou e, principalmente, o que eu posso ser, o que eu quero ser.

O Instituto Estadual de Educação Osvaldo Aranha, de prédios antigos, lugar onde eu cresci e comecei a me entender como gente, onde conheci amigos e irmãos que eu vou levar pra vida toda, lugar que não precisa da presença de nenhum milico ignorante para que funcione, mas sim de atenção, de incentivo, de investimento. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde eu consolidei minha identidade, onde eu aprendi a dizer quem eu sou e que eu gosto de ser quem eu sou, lugar de gente gigante, que precisa ser pública e gratuita e que será sempre de qualidade se continuar se abrindo para o povo, para o Brasil como ele é. Esses lugares, essas coisas públicas, tão atacadas por quem não entende a potência e não reconhece a importância da educação, são espaços que devemos defender. São espaços únicos que, nesses tempos que a mentira, a burrice e a histeria viraram peças essenciais para o funcionamento das instituições, mais do que nunca precisamos valorizar e ver de fato.

É pensando nesses espaços que eu rechaço todo e qualquer comentário sobre esforços individuais. Olhando para mim mesmo, posso dizer que embora eu tenha me mobilizado para fazer as coisas que queria fazer, foi com o apoio de muitas pessoas e tendo a percepção da necessidade das coisas públicas e das políticas públicas que eu consegui realizar o sonho de estudar na UFRGS, de me formar em Jornalismo, de acreditar em mim mesmo.

Naquele 27 de janeiro em que eu assinei, nervoso, o meu nome num diploma de jornalista, eu pensei em tudo isso: em como eu sou o resultado de uma soma de tantas coisas brutas, tantas coisas bonitas, tantas coisas necessárias. Assinando meu nome, junto comigo estavam minha mãe, que espalhou as letras do alfabeto no chão, antes mesmo de eu entrar no colégio, e me apresentou ao mundo das palavras, que seria no futuro a minha razão de ser; assinando meu nome naquele diploma também estava meu irmão, por quem eu sempre segui em frente tendo a noção de que deveria ser uma referência; assinando comigo estavam todos os meus amigos, todos os meus professores, todas as pessoas que direta ou indiretamente ajudaram a tornar aquele momento possível, ajudaram a tornar aquela segunda-feira, 27 de janeiro, um dia inesquecível. Assinando comigo aquele diploma estavam todos os cotistas que vieram antes de mim, todas as pessoas negras que, por décadas, nas fileiras do movimento negro, lutaram pela consolidação das cotas raciais. Assinando comigo estavam todos os meus colegas, todos formandos de melhor Universidade do país.

No dia 27 de janeiro de 2020 eu me formei jornalista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesse dia eu realizei não só o sonho de me radicar em Porto Alegre, de me formar na federal, de ser jornalista. Também realizei o sonho de mostrar, pra mim mesmo — e quem sabe pro mundo — que um novo mundo é possível. Nesse dia eu tive ainda mais certeza de que seremos nós, cotistas, negros, populares, moradores de casas de estudante, mulheres, gays, lésbicas, trans e tudo mais que, na percepção deles, “não presta”, quem irá escrever uma nova narrativa para o Brasil.

foto de Vinícius Guerra

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