O sonhador no Bom Fim

Glauber Cruz
Construtor
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2 min readMar 24, 2017

“Neste mar o Capitão Birobidjan flutua imóvel, meio afogado.”

Assim Moacyr Scliar dá início a “O Exército de um Homem Só”, aquele que eu considero um dos seus romances mais geniais. Muito mais do que simplesmente ocupar o cargo de autor de um dos meus livros preferidos, Scliar me fascina com a sua paixão por Porto Alegre, pelo apego à história do seu povo. Em “A Guerra no Bom Fim”, ele narra uma história ambientada em uma Porto Alegre ainda mais provinciana que o seu natural, onde seus personagens circulam pela Cidade Baixa, pela Redenção e, obviamente, pelo Bom Fim. Anos depois de ter lido o livro pela primeira vez, eu me via ali também, circulando (e morando) naquele mesmo universo, a certeza de estar circulando pelas mesmas ruas, os mesmo cafés (e porque não o mesmo Zaffari) que ele e seus personagens circulavam (e moravam) sempre me fazendo companhia.

Moacyr, com o seu talento imenso e ao mesmo tempo sutil, concebeu Mayer Guinzburg, um judeu, um personagem fascinante. Um sonhador. Um revolucionário. Um louco. Louco? Não tenho certeza, ainda mais nesses tempos em que o uso errôneo das palavras é cotidianamente apontado (com razão) e que sonhar se mostra sempre mais e mais difícil.

Eu me identifico muito com Mayer, o tal homem solitário no exército do título do livro. Sonhador, querendo ser revolucionário, enquanto circula por Porto Alegre, mergulhado em devaneios. Eu me identifico muito com Moacyr, o homem imortal, que era um pouco escritor, um pouco médico. Obviamente eu me identifico com o lado apaixonado de suas palavras, bem como com o seu lado um pouco sonhador, com o seu lado seco, áspero, quase cru. Quando li Moacyr pela primeira vez, eu fiquei fascinado pela simplicidade da sua escrita, com a potência que ela transmitia, mesmo tão simples. E hoje, data em que ele completaria 80 anos, eu lamento por estar circulando e vivendo uma Porto Alegre que não sinta a sua presença, que não seja registrada por seu olhar. O que me leva a ver isso como uma grande missão. Cabe a nós, sonhadores que flutuam imóveis no mar da vida, prosseguir com essa tarefa de registrar e lutar para mudar a Porto Alegre na qual transitamos e vivemos. A Porto Alegre que, bem como Moacyr, tanto amamos.

O imortal morreu, sucumbindo à ordem natural da existência, mergulhando fundo no mar. Mas morreu fisicamente. Como tantos outros, Moacyr permanece vivo dentro dos seus livros, no interior de cada um de seus personagens e no pedacinho mais apaixonado, mais sonhador e porque não louco, de cada um de nós.

“As luzes se acendem. É para frente que o Capitão cai. Mergulha no mar escuro.”

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