Submissão

Glauber Cruz
Construtor
Published in
16 min readFeb 9, 2021
arte de Marcelo Casarotto

Quando ele expôs a carne sob a roupa, eu senti aquela sensação quente na boca do estômago. O cálcio que mantinha a minha estrutura óssea dona de si começou a derreter e eu cambaleei, sustentando todo meu peso sobre a rótula dos meus joelhos. Todo aquele peso, que se equilibrava sobre meus ombros… todo aquele peso, que pendia das minhas orelhas. Todo aquele peso….

Ele, por sua vez, tinha o próprio peso todo em pé, diante de mim. Aquela carne de tônus elástico, salpicada por um castanho escuro, fechado em pêlos. As suas mãos eram articulações que ora pareciam ameaçadoras — com aquelas ranhuras na forma de veias — ora pareciam receptivas — naquele fluxo lento dos seus movimentos, suaves, poderiam até ser delicados. Quando a ponta daqueles dedos se afundou nas raízes dos crespos sobre a minha nuca, pressionando minha cabeça para dentro dele, me afoguei numa dúvida terrível entre o medo e a vontade; a fuga e a permanência; a vergonha e a revelação. E ali, no meio da sala escura e refrescada pela noite tépida, senti vontade de engolir cada pedaço daquele corpo em pé diante de mim. A primeira de três.

Chupei ele de um jeito alarmado, apertando suas coxas com força — a carne ficando vermelha sob meus dedos — e respirando os seus pêlos profundamente. Tudo para me certificar de que aquela noite era real, de que ele era real. Seu nome no Grindr era menino deus, e o encadeamento da sua descrição — a justaposição de letras, sílabas e palavras — ecoava ainda na minha memória, como se ele mesmo baixasse todo o peso de sua carne para falar, ao pé do meu ouvido, respirando sobre o meu lóbulo, montando entre a língua, os dentes e os lábios, cada pedaço daquelas palavras. vst atv dot. curto mamar e ser mamado e comer. curtição sem neuras e com discrição. Senti aquilo se movimentar em mim como um aspirador de pó ao contrário. Toda a sujeira espalhada pelo assoalho de mim, escondida pelos cantos das minhas vontades e depositada sobre a superfície das minhas ações, se esparramou por todos os lados. Havia algo de vulcânico na vontade que eu tinha de engolir sua porra, algo vindo daquele pó em circulação. Quando ele gozou com a pressão da minha boca, me percebi mais uma vez ciente dos meus ossos e da rigidez do meu tônus. Eu estava de certa forma aliviado. Gostei. Queria mais.

Voltando para casa, enquanto a negrura do céu sobre a minha cabeça começava a se abrir — o dia à espreita — pensei na possibilidade de uma outra foda com ele. Mas ele sumiu. Por dias voltei ao perfil dele no Grindr pra ver se ele tinha estado por ali. Eu pensava numa sala de recepção: paredes escuras, poucas ou nenhuma entrada de luz. Me via ali, de cabeça baixa, esperando alguma porta abrir, algum barulho romper o silêncio. Mas nada. Online 3 horas atrás. Online 12 horas atrás. Online dois dias atrás. Offline.

Quando ele começou a se dissolver nas fantasias das minhas masturbações, que eu via projetadas nas paredes do quarto escuro à noite, decidi mandar uma mensagem. Foi aquela vontade de rompimento, de cruzar as fronteiras, quem digitou as palavras. Não respondeu. Não era incomum aqueles peitos definidos e sem cabeça não responderem às minhas mensagens. Mas o silêncio dele — quinze minutos depois, duas horas depois, três dias depois — foi especialmente frustrante.

Me vi ali, agarrado pela vontade de atravessar os limites, exposto àqueles olhares. Então chiou na minha cabeça e no meu pau — principalmente no meu pau — aquela sensação efervescente. Aquele ácido que se espalhava pelas fronteiras das minhas vontades, coisas que eu não podia falar em voz alta, envolvidas por envelopes de um negrume intenso que impedia aqueles olhos de visualizarem. E eles estavam atentos, o tempo todo. Eu tinha de esconder tudo, o tempo todo. E devia correr, o tempo todo.

E eu corri. No vácuo do silêncio dele, fui ainda mais rápido. Circulei pela vizinhança espalhada no touchscreen sob meus dedos, vi as opções, me senti quente e agitado. Mas daquele jeito diferente, deslocado do fluxo natural do estado das coisas, algo como um coma induzido. O Grindr pareceu ainda mais hostil que o natural. Eu circulava por ruas vazias, dobrando em esquinas onde aqueles olhos procuravam ferozmente qualquer indício de erro, qualquer movimento torto. Parei na Getúlio com a Ganzo. pass rabão. E aí? blz? Online, mas sem resposta. O A fim tinha o pau grande, a berinjela dizia tudo ao lado do user. A sua descrição me deixava quente, e vezes ou outra deixava a minha boca agitada de salivação. Se não aguenta nem chama. Senti aquela vontade se esgueirando, vazando, aquele chiado… O Leia também estava pelos arredores — Visconde de Herval? Botafogo? — Eu li. Sem rosto nítido, sem resposta. Ah tenham mais transparência, vocês não vão conseguir levar o fake… Cara chato, vai pra porra. O bi pica grossa não tinha nenhuma informação além da altura (1,70m) e da posição (versátil ativo), e esse vazio me atiçava, coçava a minha glande e pressionava, junto com meus dedos, o corpo todo do meu sexo. Acabei abrindo o perfil do PassivoBranco, que estava sempre online mas cujas dimensões (baixa a atarracada) e idade (30) não me atraíam. Ele mostrava o rosto — colado numa cabeça redonda de orelhas afastadas — e também os seus interesses (conversa, amigos, agora). Lembro de tê-lo visto um dia, no Zaffari. Não sei se ele percebeu que eu era o Sam, 25 anos, 1,72 de altura, negro, ativo, HIV negativo, em busca de amizades, encontros, conversa e agora. Mas eu percebi que ele era ele, e ao lembrar daquela manhã até consegui tornar mais rígido o músculo que centralizava meu corpo. Dae, blz? blz e aí? também? fala de onde? menino deus e tu? também. a fim de real? sim. vamo?

E fomos, num movimento mecânico, um roteiro enxuto. Ele se ajoelhou e eu enfiei meu pau lá no fundo da garganta dele, para que ele engolisse a mim por inteiro. Engoliu, chegando no extremo, a bile incentivada a voltar. Me senti pesado, todos os músculos do corpo rígidos, maiores. Eu poderia pegar ele pela cintura a manipulá-lo como uma massa disforme. Mas quando fui no fundo do íntimo dele, fazendo escapar por entre os seus dentes um gemido quente e elástico, o percebi concreto, pulsante. Nesses momentos eu costumava a diminuir, todo o meu peso perdia a potência, voltava a ser magro, mediano. Gozei murcho, perguntando o porquê daquilo tudo. Mas aí lembrava que eles olhavam, sempre à espreita, sempre atentos. Mas fiquei aliviado, pois sabia que ali, naquele momento, eu não estava torto. Quebrado. Desviado. Cheguei em casa e tomei um banho quente, a água fervendo, a minha pele fosca ficando rosada. Dormi sem roupa sob o olhar atento deles, que não dormiam nunca.

No dia seguinte fui pro trabalho, fazendo o ritual que eu fazia todos os dias: olhar os homens que cruzavam meu caminho, que sentavam perto de mim no ônibus, admirando como eles conseguiam manter as roupas perfeitamente alinhadas, o cheiro deliciosamente marcado, as barbas milimetricamente aparadas. Observava o pedaço de carne exposto sob o cós da calça de meus colegas, o naco de braço abaixo das mangas curtas. Olhos e boca. Pescoço e nariz. Fazia o mesmo na volta pra casa. No silêncio dos meus pensamentos eles me empurravam para os cantos, forçavam a minha mão pra dentro de suas calças, me afogavam em seu perfume.

Chegava em casa prensado entre os muros do cansaço como se tivesse corrido o dia todo. A cabeça doía — pesada. Naqueles momentos eu costumava me jogar na cama e, de janelas fechadas, me confinava numa solitária de tesão. A mão sobre o pau, o corpo descansando, as extremidades formigando, a excitação dançando sobre meus pelos.

Num absoluto silêncio, lentamente, para não chamar a atenção daqueles olhares, eu tirava a roupa. Tirar o cinto era sempre um martírio discreto. O couro comia com dentes curtos a minha pele. Abria o Grindr, sentindo meu pau ficar duro e aquela vontade de ultrapassar um limite que eu queria ultrapassar- mas não podia. Se não aguenta nem chama. Ali, no escuro, a minha mão deslizava — meus olhos fechados, bem fechados — pela minha barriga, virilha, chegando lentamente àquele espaço quente e imerso em intimidade. Eles olhavam — censores. E ali eu ficava, no escuro, pensando naqueles corpos riscados, pensando no que pensariam ao saber que eu pensava em corpos riscados.

Depois daqueles momentos, eu sempre tomava banho. Sentir as linhas em carne viva na cintura ferverem em calor me dava a sensação de expurgar aquilo tudo de mim, mesmo que eu não soubesse ao certo o que era aquilo. Saía, me secava e excluía o Grindr.

O exílio do app não durava muito. Volta e meia eu retornava pra ele, percorrendo as ruas vizinhas, pensando nos corpos daqueles que estavam ali — disponíveis, ao alcance do dedo. Um dia, depois de ficar horas e mais horas naquele fluxo de sobe e desce, quando as cervejas que eu tomava começavam já a esquentar na garrafa ao lado do sofá, chegou uma mensagem. Aquele corpo de fato existia, aquele peso de fato se fazia presente. menino deus perguntando se eu pilhava real mais uma vez. Senti uma sensação de confusão na barriga e na cabeça, como se o teor alcoólico de tudo fosse acionado. Se a excitação costumava me despertar no meio da madrugada, como um despertador natural, ali me senti potencialmente sonolento. O meu cálcio escorria, derretido, ao mesmo tempo que se solidificava, para acabar derretendo mais uma vez, e assim me firmei sobre meus dois pés, sentindo a excitação que saía do meio das minhas pernas se espalhar por todo o corpo. Respondi na hora. sim, bora.

Quando levantei do sofá, o mundo girou ao meu redor. Mas de um jeito tranquilo, como um carrossel em slow motion — eu poderia descer e caminhar ao lado dele com a mão sobre a cabeça dos cavalos. Eram 3h25 quando saí para a noite, ainda alcoolizado. Era como se no processo do meu derretimento interno, a cerveja se misturasse aos meus ossos. Ali, enquanto avançava pela rua vazia e sepulcralmente silenciosa, ele fazia parte de mim. Atravessei a Getúlio, dobrei na Ganzo; escura de perigo, até os seus paralelepípedos pareciam ter sumido. As árvores eram um borrão de sombras e mais sombras. E eles ali, no meio delas, me espiando afiados, censores. Fui pelo meio da rua, longe deles e das árvores, que pareciam ser os limites da noite, as fronteiras do perigo. Atravessei a Mucio, que se esticava vazia à direita e à esquerda, iluminada pelos semáforos que organizavam o tráfego vazio. A Ganzo seguiu, mais escura, até que dobrei na Vicente. A Estado de Israel estava sinistra em seu silêncio. Àquela altura, o álcool do meu cálcio começava a se dissipar, acompanhando o acelerar dos meus batimentos, que se aproximaram dos limites do estouro enquanto esperava ele baixar as escadas ali parado no escuro da Peri. A segunda de três.

Eles, os batimentos, não pararam em agitação, mesmo quando já estava abrigado mais uma vez no meio da sala dele. Agora era o nervosismo de estar ali, com ele, mais uma vez, encarado por aqueles olhos dele — cintilavam de malícia e de uma vontade de fazer coisas sujas que as pessoas não fazem às vistas das outras. E ali, naquele universo dele, aqueles olhos outros eram míopes, ou alienados pela catarata ou mesmo cegos. E os meus ossos, derretidos-solidificados, faziam eu me sentir gelatinoso por dentro. Eu queria descer, mas não podia. Não podia mesmo? Será que eu não queria? As perguntas e suas respostas escorriam no fluxo dos líquidos que mudavam à medida que a madrugada avançava. No suor que cintilava sob a meia luz da luminária a um canto da sala; na porra que ele derramou em mim e eu no chão; na água que escorria do chuveiro enquanto ele lavava o corpo.

Algo tornava tudo elástico, espichando ao máximo a sensação de vontade, de toque das extremidades, de perfuração da carne. Eu queria engolir o corpo dele, a curva do peito sob os mamilos, o planalto de suas coxas, a sua barriga; queria que ele me engolisse, tomasse para si todo o meu peso, todos os meus pelos e tudo mais o que quisesse. Havia alguma coisa diferente nele — talvez na ponta daqueles dedos longos — que me dava vontade de perfurar aqueles olhos que me olhavam sempre — censores. Algo ali, no universo dele, me dava uma ânsia urgente em me desprender, arrebentar o couro — com os dentes se necessário — gritar. Quando ele saiu do banho, o olhei e em silêncio. Os olhos cintilaram mais uma vez. Aqueles olhos — dele — me deixavam confortável. Aqueles olhos — dele — eu queria encarar.

Continuamos.

E ali, naquela caverna da nossa intimidade, na umidade do suor, da porra e da vontade, com o pau dele dentro da minha boca, senti correndo pelo meu sangue a vontade de dar pra ele toda a extensão do que havia de mais secreto e inexplorado em mim. Mas sentia também aquela pressão que ameaçava tampar meus ouvidos, que me puxava de volta — para cima, rijo, em pé. Pareciam se materializar ali — intrusos — aqueles olhos. Quando flexionei os joelhos para pôr o meu peso sobre eles e sobre os meus cotovelos, cedendo à vontade, à tensão, ao tesão, foi aquela pressão nos ouvidos que, como uma cãibra, me paralisou. Erro e culpa. Num ouvido o erro, no outro a culpa, e as linhas de vermelho discretamente vivo da minha cintura pareciam arder como se tivessem sido expostas a álcool. Me perguntei, enquanto erguia o meu peso diante da enormidade dele, se a cerveja estava vazando por ali. Havia um tensionamento que me espichava, como numa queda de braços. Não sabia se ficava em pé, ou se ficava de joelhos, se abria ou se fechava os olhos, se me submetia ou não. No fim, ele gozou novamente — no meu rosto e no meu peito, e eu mais uma vez naquele chão que parecia ser o repouso de tudo, inclusive de mim.

Paramos. Ficamos um tempo em silêncio, jogados no sofá, sujos de porra. O sono começou a subir pelas paredes até que cobriu a gente. E como que invisível àqueles olhos, percebi que sim, eu queria. Queria entregar tudo a ele, queria romper aquela parede que ergueram — não sei quem — ao meu redor. Tive certeza quando andei por aquele apartamento, à procura do banheiro. A porra seca puxava os pelos da minha barriga com um vigor tímido, rachando aos poucos enquanto eu andava. Pairava distraído no ar aquele cheiro de gente, um misto de suor com esperma. Mas havia ali, principalmente, o cheiro asseado dele, um cheiro quase cítrico de tão limpo, que parecia se grudar em tudo, ao mesmo tempo que emanava de tudo. Ele ressonava baixinho, enquanto eu circulava pelo apartamento depois de mijar, estudando a sua organização, a sua prosperidade, o seu cuidado, aquele universo limpo de um jovem homem bonito, que tinha um pau gostoso de pegar, uma boca gostosa de beijar.

Sentei no sofá cheirando a ponta dos meus dedos de unhas cortadas até o limite de quase não existirem, sentindo aquele cheiro que era o cheiro dele, e sentindo aquela vergonha que descia amarga pela garganta como o café que tomei quando cheguei em casa. Não foi ele quem depositou em mim a vontade de dar meu corpo. Mas com ele aquela vontade se tornava febril, trêmula; ela estava presente, arrepiando tudo, invadindo cada pedaço de mim. Com ele eu queria tanto estar ao chão, e às vezes ficava tonto, confundindo aquilo com uma necessidade.

E à medida que os dias foram passando, e aquela (segunda) noite começou a se perder na esteira dos dias, percebi que aquilo era, de fato, uma necessidade. E manusear essa certeza aguçava ainda mais aqueles olhares, cutucando ainda mais aquela vergonha. Desviado. Torto. As paredes erguidas envoltas do meu eu pareciam cada vez mais altas — como escalar? — e as minhas vontades pareciam desafiar ainda mais rebeldes aqueles olhos, queriam com mais avidez perfurar aquele muro. Passei a sentir mais vontade de todos os que cruzavam o meu caminho, que subiam no ônibus, que pedalavam ao meu lado. Eu me sentia mobilizado — tesão e tensão — , dedicando horas e minutos a deslizar o polegar sobre os troncos sem cabeça, as berinjelas e os pêssegos, as setas para cima e para baixo do Grindr. Naqueles dias me atrasei para o trabalho, e também me masturbei no trabalho. Naqueles dias, encarei de maneira fixa e persistente o volume de cada calça, de cada short que cruzava por mim. Naqueles dias também senti mais ardente a sensação de que estava sendo olhado com os cantos dos olhos. Naqueles dias eu peguei uma faca e perfurei o meu cinto, de maneira que meus jeans e minhas cuecas mordiam com uma ferocidade ainda maior a carne da minha cintura.

Eu estava febril. Um calor que crepitava por dentro, resguardado por uma espessa placa de vergonha, de julgamento, que queimava sempre que cogitava a possibilidade de me submeter, de me ajoelhar, de me apoiar sobre os cotovelos e dar a minha intimidade para alguém, de sentir aquele cheiro de gente, de corpo, de noite, de rua, de sujeira, que levantava dos poros toda vez que os fluidos se fundiam, que os órgãos se chocavam, que os corpos se penetravam.

Puxei o cinto mais um pouco e fiz outro furo mais além. Sentia aquilo me pressionar de maneira pesada, marcante. E aquela pressão, que parecia ser uma mão apertando um personagem de desenho animado, os olhos esbugalhados em sua explosão, me deixava com uma necessidade enrijecida de provar, sabe-se lá para quem — para todos, para mim, para aqueles olhos invisíveis que me encaravam — a posição correta, a forma não tão feia de fazer as coisas. Erguido sobre os pés, equilibrando o peso do corpo sobre eles, com olhos longe do chão, e tronco firme, rijo, mecânico, potente, ativo. Metedor, fudedor, leitador.

Passei a ir com mais frequência ao banheiro, onde no silêncio do box eu afrouxava o cinto e sentia minhas pernas afrouxarem junto. As linhas dos meus quadris estavam mais fundas e queimavam o tempo todo, e quando eu chegava naquele apartamento, que parecia tão vazio de tudo — inclusive de mim -, quedava no marasmo, no cansaço, no ranço próprio. Num sábado vi a noite cair sobre o quarto e a espessura do tesão recair sobre mim, recaído sobre a cama, recaída naquele quarto. Tentei, em vão, procurar uma resposta para aquela coisa que parecia turva diante da naturalidade, que parecia torta diante da normalidade. Aquela vontade de sujar os dedos, a língua, os mamilos. Fui tomar banho — me sentia principalmente sujo, como se minhas articulações ficassem rijas de cascões, rachadas de poeira incrustada. A água quente preenchia a carne viva das linhas na minha cintura. A água queimava, mas a sensação invisível do crepitar não ultrapassava o limite da violência corrosiva do calor. E ali no box eu me senti murcho, derretendo nos azulejos, escorrendo ralo abaixo.

Saí do banheiro quando a água quente já não era tão quente e as linhas dos meus quadris não latejavam — eram então uma dor insistente. O apartamento era só sombras e pairava em mim aquela vontade de ceder, me desarmar, de baixar a guarda, me desnudar de tudo. E foi isso que me empurrou rua afora, no meio da noite. Foi isso que me fez caminhar pelos paralelepípedos escuros da Ganzo. Foi isso que me fez atravessar a Estado de Israel, foi isso que me levou de volta ao Jordão, mesmo que não tivesse sido convidado. Apertei o interfone na noite quieta e ouvi a voz dele questionando quem era aquele visitante não convidado, consumido pela vontade, pela culpa, pela vergonha. Ele estranhou. Quem? Então me tornei o Sam do Grindr. A vergonha ali estourou, num ápice violento, uma coisa agitada, violenta. Mas eu repeti. Samuel, do Grindr. Nunca tinha notado que meu nome saía daquele jeito, meio soprado. Sssssamuel. Nunca tinha notado o embalo da língua e dos lábios. Sammmuuueeeelll. Ali no escuro da rua, ele pareceu bonito, pareceu rodopiar pelo silêncio da noite de forma livre, solto de amarras, livre do couro dos cintos. O u em queda livre quase se chocando no chão; o e num voo raso, raspando o chão, salvando a minha existência, a minha nomenclatura. E por fim o l, perene, estável em linha reta, solto pela noite, interrompido apenas pelo sinal da porta do Jordão sendo aberta. O breve e robótico que anunciava o rosto dele. Aquele belo rosto. A terceira de três.

Nossos silêncios subiram as escadas quase de mãos dadas. Ele me ofereceu uma cerveja quando passamos a soleira da porta. Senti o líquido amargo e gelado me escapar garganta abaixo. Queria que meus joelhos cedessem ao meu peso, e eles cederam. Queria que a minha vergonha cedesse à vontade, que aqueles olhares censores ficassem cegos e me dessem um descanso. Quando senti o peso do meu corpo se esvaindo perna abaixo, me percebi mais maleável, ondulado como meu nome, o ápice do a, a queda conjunta do m e do u, a estabilidade do e a linha reta, fechada, contínua e perene do l. Agarrei as coxas dele, e mergulhei na sua carne, naquele cheiro profundo de intimidade grudado em cada costura de sua cueca. A carne dele ganhava vida no tronco arfante, nos pelos arrepiados, na pau que ficava duro. E me senti no ímpeto de engoli-lo todo com o meu corpo. Meus dedos afundaram em suas coxas e na sua bunda, senti o fluxo sanguíneo daquele pau cheirando a gente, cheirando a ele, em jatos fortes sobre a minha língua. Abri meu cinto e senti um peso se afastar, levado pelas águas do Jordão. Eu estava quente. Não somente por aquele calor que subia da gente, mas pela sensação de estar me dissolvendo, por perceber que aqueles olhos me olhavam cada vez mais cegos.

Quando tive a certeza de que queria todo o corpo dele, a sensação de calor foi tão intensa que tudo se amenizou. Brasas que crepitavam sobre nossas peles. Ali, me tornei só vontade e dei tudo para ele. Da minha carne à minha voz, do meu cu aos meus olhos, das minhas mãos ao meu coração. No espaço silencioso do seu mundo, nos sujamos. Senti a porra escorrendo pelas minhas coxas, pelo meu peito e também pela minha boca. Dei pra ele ali e no seu quarto e no banho. E quando o dia começou a se esgueirar no céu enquanto ele dormia ao meu lado, tomei um banho naquela água morna em jato forte do seu chuveiro. Coloquei seus chinelos, a camiseta solta com suor incrustado nas axilas e o short que ele vestia quando subimos as escadas em silêncio, o short que tirei dele para chupá-lo, o short que mordi quando ele me comeu, quando abri pela primeira vez a minha intimidade para sentir prazer, vontade, dor e alívio. Tudo menos vergonha. Eu poderia sustentar meu peso sobre os joelhos e os cotovelos, de quatro para ele, por muito tempo e mais um pouco. Mas ali, com aquele short que se firmava suavemente na minha cintura, eu só queria andar.

Saí. Atravessei a Estado de Israel e caminhei pela Visconde de Herval. Cheguei à Getúlio, mas não queria voltar para casa, não naquele frescor da manhã que se abria, não com aquele short leve de tudo. Segui adiante, acompanhando a linha das palmeiras enfileiradas no silêncio da avenida, andando pela noite que virava dia num progresso inevitável, impossível de parar. O primeiro 177 do dia passou vazio por mim, o letreiro borrado de sono. Quando alcancei o encontro entre a Getúlio e a José de Alencar, onde as palmeiras acabam e a Praça Menino Deus observa toda a extensão da avenida, no coração do bairro, me senti confortável por não estar sendo observado por aqueles olhos — censores. Sentei na praça vazia, de costas para a igreja modernista e olhei o vazio daquele lugar, daquelas ruas, daquelas palmeiras, um universo de homens em silêncio, de suores escondidos, de gemidos inaudíveis, de submissões inaceitáveis. Pensei no pau dele e na extensão de sua carne; no asseio de sua existência, na sua porra, quente na minha língua. Senti meu próprio pau endurecer. As linhas em carne viva do meu quadril não ardiam. Ali, na noite que não era mais noite, mas sim um tímido dia, elas não latejavam. Cicatrizavam no frescor e no silêncio do Menino Deus.

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