Torta de bolachinha

Glauber Cruz
Construtor
Published in
9 min readAug 3, 2020
arte de Marcelo Casarotto

A estrada parecia não ter fim.

Quase que derretida pelo calor do sol, que abafava o mundo no alto do céu de uma manhã sem nuvens, ela se espichava na direção do horizonte, se torcendo em curvas fechadas aqui e ali, sempre exalando um bafo gelatinoso que dava sensação de que tudo estava mais lento. Era a única coisa que Nico conseguia ver ali, no confinamento do banco traseiro do Fusca, sob a guarda dos cotovelos de Tio Alberto e Tio Albrantino, cada qual com seus 1,98m de altura. O calor lhe deixava com os olhos pesados, como se estivesse acordando de uma sesta depois do almoço.

Era um dia amarelo de tão quente, de um janeiro em que o sol pareceu mais próximo do chão. Mesmo o vento que invadia o carro pelas janelas tinha algo de sufocante, como se estivessem todos com a cabeça na boca do fogão enquanto Tia Tide assava bolo de milho. Quando saíram de casa de manhã bem cedo, por insistência de Tio Vilmar que odiava esperar, o calor já esquentava as paredes da casa. Nico acordou com a movimentação dos tios pela casa, fazendo os preparativos da viagem, cada um estalando a língua dentro de suas bocas tornadas inevitavelmente murchas pelos escorrer do tempo.

Saíram quando os ponteiros dos relógio recém tinham passado das 8h, sob os resmungos de Tio Vilmar no volante, logo silenciados pelos olhares de sua irmã mais velha, Tia Tide, que ocupava o banco do carona com uma toalha no ombro que de tempos em tempos ela passava na testa e no pescoço. Com um rosto reluzente de suor e firme em sua negrura, livre de rugas mais profundas que acusassem os seus 74 anos de vida, segundo as lendas familiares ela lançava aqueles olhares de reprovação desde que nascera. Silenciosos, afiados e definitivos, eles instauraram dentro do Fusca, durante todo o trajeto, o mais absoluto silêncio.

Passaram por estradas de terra que eram mais pedras do que terra; se balançaram em pontes suicidas de madeira sobre fiapos de riachos; desceram e subiram morros e passaram por campos tão grandes que se esticavam, empanados por aquele calor, até o horizonte. Tio Vilmar dirigia com muita atenção e todos ocupantes do Fusca sabiam que ele estava mais preocupado em relembrar com clareza os seus tempos de motorista do que de fato chegar no ponto final da viagem. Mesmo assim, chegaram.

As águas do rio corriam sob uma ponte alta, erguida em pedras já carcomidas pelo tempo. Uma ponte tão antiga que se Tio Vilmar e Tia Tide somassem as suas idades, ainda sobraria espaço para colocar a idade de Tio Alberto e Tio Albrantino, cada um com seus 42 anos, e os 12 anos de Nico para igualar a idade da estrutura. Tio Vilmar estacionou o Fusca sob a sombra de árvores que se erguiam firmes aos pés de um barranco pelo qual desciam aquelas gentes todas em seus carros velhos, com as suas toalhas de mesa e seus isopores com latas de cerveja. O rio não era, pelo menos ali, aquela traço de violência que Tia Tide dizia ser, e que levara, ao longo dos tempos, dezenas de vidas correnteza abaixo. Ali, ele marulhava de maneira tranquila, com uma porção de gente esparramada à beira da areia, ou dando saltos de cabeça na espuma da correnteza. Algumas mães gritavam para os filhos cuidarem as pedras, enquanto outras preparavam o chimarrão sentadas à beira d’água. Aqui e ali as pessoas mergulhavam e voltavam à superfície, sentindo o prazer da ausência daquele bafo opressivo, daquela gelatina invisível que pairava no ar e tornava tudo mais espesso, sonolento e preguiçoso.

Eles retiraram do carro as sacolas trançadas que Tia Tide usava para ir ao mercado, ocupadas por potes com sanduíches embalados em papel alumínio. Seguiram pela beira da praia, desviando dos grupos que faziam churrasco, davam gaitadas, brigavam entre si. Entraram no mato, seguindo a trilha que era tão funda que parecia existir desde sempre e que fazia curvas fechadas sob galhos de árvores que se agarravam perfeitamente em forma de arco. Vez ou outra eles topavam com algumas famílias que riam do calor amarelo ali, na frescura verde, ao som daquele tchibum das pessoas sendo engolidas pela água em algum lugar do rio próximo dali. Era um estranho cortejo aquele: ágeis para a idade e em roupas leves e desbotadas pelo sol de tantos verões, Tio Vilmar e Tia Tide iam na frente. Nico, miúdo demais para uma criança de doze anos, ia logo atrás. Por último, como sempre, Tio Alberto e Tio Albrantino, com as roupas idênticas, a calvície idêntica, a pele escura idêntica, a vida idêntica.

Serpentearam o matagal até encontrar o rio novamente. Avançaram pela beira d’água até chegarem em um trecho onde a solidão fazia companhia ao som de uma queda d’água mansa. O último suspiro da lentidão daquele dia amarelo de tão modorrento. As águas do rio eram escuras, pois o fundo era recheado de pedras ameaçadoras cobertas de limo. Ainda assim, aqui e ali era possível vislumbrar alguns peixes cintilando entre uma pedra e outra. Por alguns instantes, eles apenas quedaram numa contemplação silenciosa daquelas águas que iam sem voltar num fluxo contínuo e tranquilo, até que Tia Tide bateu uma palma e despertou a todos. Eles sabiam que quando Tia Tide batia uma palma, alguma providência deveria ser tomada, pois daquele exército capenga de homens velhos, solteirões ou acometidos pela infância, ela era a comandante.

Ninguém notava, mas aquela situação a deixava tensa, fazendo com que uma insolente ruga de preocupação teimasse em riscar a sua pele maciçamente negra, no canto esquerdo da boca. Era assim que ela ficava quando tinha que fazer coisas difíceis. Há muitos anos, quando a boca de Tia Tide ainda era envolta por lábios carnudos de um rosa que contrastava com aquela pele que parecia ainda mais reluzente, aquela mesma ruga tensionara lábio, boca e maxilar quando ela negou o amor de Edmundo. Ele tinha os ombros um tanto quanto caídos, uma pinta no pescoço, a pele escura como a dela e os olhos tristes como o feriado de Finados. Era dono de uma beleza assustadoramente simples que se instalou involuntariamente no fundo do coração de Tina, a irmã mais nova de Tia Tide. Sabendo que aquilo fazia com que a irmã fosse fisgada por pontadas nas costas, derretesse em dias de febre e chorasse noites a fio, pedindo pelo fim da vida, Tia Tide então abriu mão daquele amor, daqueles ombros caídos e daqueles olhos tristes. Fechou-se para Edmundo e armou um engenhoso esquema que envolvia ele, a irmã, encontros, desencontros e, por fim, a paixão de um pelo outro. Abriu mão do sentimento que a fazia sorrir naqueles dias tão distantes sem saber que seria a primeira coisa de muitas outras que abriria mão ao longo da vida.

A irmã e Edmundo casaram e, alguns muitos anos depois, tiveram uma filha, Ângela, que anos depois, ao se aventurar com um rapaz de riso largo e fácil apesar da voz potente e do supercílio cerrado, teria um filho, Nico. O guri ali, na beira do rio, não tinha nenhum traço do pai, ou da mãe, ou da vó. Era um retrato rejuvenescido do seu avô Edmundo, emergido do poço sem fundo da memória e de um passado empoeirado e arrependido.

“Vamos fazer isso logo” ela sentenciou.

Tio Alberto e Tio Albrantino se olharam, enquanto Tio Vilmar limpou a garganta com um pigarro. Retirou de uma das sacolas a urna que Tia Tide enrolara naquela toalha muito antiga, toda puída, com um desbotado que era o desbotado do desbotado, florida por ramos em linha verde que Tina fizera quando ela completara vinte anos — não queria que a urna ficasse à vista do guri.

Tia Tide pegou a urna das mãos do irmão com os dedos firmes e compridos em calos que por anos e anos seguraram as paredes de toda a estrutura familiar. Retirou os chinelos e, com a ajuda de Tio Vilmar, tateou com os pés esbranquiçados de garrões levemente rachados as pedras envoltas em limo. Com a água gelada alcançando as canelas, ela abriu a urna num movimento rápido, como se o conteúdo fosse escapar assim que a tampa fosse retirada. Mas não havia vento, e cinzas humanas não tinham pés. Enterrara pai, mãe, irmãos, primos e sobrinhos. Aquele ritual era diferente, mas ainda assim era um enterro.

Em instantes, ela colocou os pais de Nico de volta a nadar naquele rio de águas escuras e pedras limosas, no meio dos peixes pequenos e cintilantes, da mesma maneira que eles fizeram quando se conheceram em um longínquo verão amarelo de tão quente; e depois quando começaram a namorar; e depois quando se amaram pela primeira vez; e depois quando entraram para um apartamento com quarto, sala, cozinha e banheiro; e depois quando conceberam Nico. O pó logo sumiu na espuma da correnteza, se escondendo sob as pedras ou então rodopiando pelo ar até alcançar o bafo amarelo daquela tarde de verão.

Quando Tia Tide tampou a urna novamente, todos soltaram o fôlego e olharam de soslaio para o guri, que fitava o rio e as cinzas e os peixes com aqueles olhos tristes que herdara do avô. Tio Vilmar sentia tanto dó. Lembrava muito bem do dia em que seus pais faleceram. Ela, de um fulminante ataque no coração, numa manobra comandada pelo tempo e pela idade. Ele, dias depois, de um fulminante ataque de solidão, sem saber como se portar num mundo sem a existência da mulher que sempre amara. Foram os piores dias da vida de Vilmar, tão ruins que ele só voltaria a viver uma tristeza como aquela vinte anos depois, quando os caminhos da cidade através da qual ele circulava como motorista de ônibus começaram a ser pouco a pouco corroídos pelo esquecimento e pelo medo do esquecimento. Nem conseguia imaginar como estava o coração daquele menino, tão pequeno que ele nem cogitava em lhe chamar por Nicolas, seu verdadeiro nome.

Tia Tide devolveu a urna vazia para Tio Vilmar. Bateu a sua palma e então eles começaram a movimentação de montar ali mesmo o acampamento que consistia em uma toalha, nos potes com sanduíches, algumas almofadas e garrafas de suco de melancia meio congelado, meio derretido. Puseram-se a comer ali, na beira d’água, ouvindo o som da algazarra das famílias próximas, da correnteza tranquila do rio, dos biquinhos insolentes, das lembranças de todos e de cada um. Nico mastigava seu sanduíche devagar, para sentir por mais tempo o gosto daquele queijo que tinha um sabor específico entre o gostoso e o enjoativo e que fazia com que seus pais viessem à memória de uma maneira mais vívida. Era como se estivessem ali, cada um mastigando o sanduíche da Tia Tide, que eles tanto amavam e falavam que era o melhor sanduíche do mundo.

Quando engoliu o último pedaço, se aproximou das águas, sob um alerta de Tia Tide de que as pedras eram escorregadias demais. O menino sentou em uma pedra e quedou na contemplação dos próprios pés que, imersos até a canela, ficavam disformes com o dançar das águas. Os peixinhos começaram a rodear seus pés e mordiscá-los com um carinho tranquilo. Pareciam dizer, enquanto cintilavam dentro d’água, que tudo ficaria bem.

Quando Tia Tide retirou do fundo da última sacola trançada ainda fechada aquele prato oval de vidro recheado com a torta de bolachinha que Tio Vilmar aprendeu a fazer aos dezesseis anos — que validava o discurso dele de que fazia doces melhor do que a irmã mais velha, e que o deixava feliz por ser uma coisa que ele não esquecia como fazer — os peixinhos já tinham se afastado dos pés de Nico e o menino ainda tinha os olhos baixos de tristeza, porém sem a opacidade da certeza de não ter mais ninguém naquele mundo.

Anos depois, ao comer a última garfada da primeira torta de bolachinha que ele mesmo preparara, rodeado pela bagunça da mudança para aquele que seria seu primeiro apartamento próprio, Nicolas lembraria que, no final das contas, ele que acabaria por cuidar daquele exército de tios desajustados e não o contrário. Lembraria também da torta de bolachinha que começaram a comer quando Tio Alberto deixou o mundo e que ainda não estaria terminada quando, perdido naquele mundo sem o irmão gêmeo, Tio Albrantino seguiria pelo mesmo caminho. Lembraria ainda da torta de bolachinha deliciosa, mas sem aquele toque doce lá no fundo da língua, que Tia Tide preparou quando Tio Vilmar faleceu, engolido pelo Alzheimer, meses antes de Nicolas se formar em Psicologia. Lembraria, por fim, daqueles dias silenciosos mas felizes ao lado de Tia Tide, depois que os outros tios todos silenciaram para sempre e, claro, do dia em que ela fechou os olhos para esse mundo, não sem antes lembrar cada uma das viagens ao Balneário da Insolação, que eles tomaram como hábito fazer sempre que os dias ficavam amarelos de tão quentes. Riu ao pensar que, assim como os pais, os tios, e todos mais que um dia amou, um dia seria ele o motivo para que todos comessem uma gostosa torta de bolachinha.

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