Arlison Rosa “Ser um jovem negro e gay da favela é resistência”
Manhã ensolarada no Rio. Ao lado da linha vermelha, encontra-se a Vila Pinheiros, uma das 17 favelas que compõem o Complexo da Maré e o local onde mora Arlison Lucas Rosa Campos de Souza, jovem ator de 18 anos, que prefere ser reconhecido apenas por Arlison Rosa. O local construído para reassentar os moradores das palafitas sobre os aterros dos manguezais, abriga na Travessa três, uma casinha com portão azul que é onde o encontro ainda dormindo para nossa conversa. Logo depois que chego, a casa recebe a visita de muitos familiares evangélicos, que foram chamados pela mãe, Dona Lidiane, para fazer uma oração pela família. Arlison, que estampa na sua camiseta a imagem de Bob Marley, recomenda que sentemos do outro lado da rua para mais privacidade, já que o assunto pode não agradar os convidados. É em meio a orações divinas, ao barulho de carros da linha vermelha e do sol do Rio de Janeiro que começamos nossa conversa sobre como é ser um jovem negro gay e da favela.
Você nasceu aqui na Maré?
Arlison: Sim, a minha família materna veio refugiada para cá, eles pensaram e tinham como princípio prover uma vida melhor para os filhos, netos e bisnetos. A minha bisavó materna é de Campos, São Fidelis. Ela fugiu de lá com a minha avó e foi morar na Nova Holanda, na Maré. Quando minha minha mãe tinha 6 ou 7 anos, começaram a construir as casas aqui e a minha avó saiu da Nova Holanda para vir morar em Pinheiros. Ela conseguiu uma casa para ela, criou a minha mãe e eu nasci e cresci dentro da casa da minha avó. Com o tempo, minha mãe conseguiu a casa que moramos agora e a minha avó se mudou para o final da rua, na Travessa Três. Tudo na minha infância, adolescência, minhas experiências e descobrimento eu passei a partir daqui da Maré para fora.
O seu pai mora com vocês?
Arlison: Meu pai mora em Bangu com o meu irmão mais novo e a terceira mulher dele, depois da minha mãe. Eu não tenho muito contato com o meu pai, mais por distanciamento dele mesmo. Eu não tenho o que reclamar dele porque ele se fez presente e conseguiu me educar da forma dele. Mas olhando por outro aspecto, a minha mãe é o meu pai e a minha mãe, que está comigo sempre e que luta constantemente.
Você chegou a morar com seu pai em algum momento?
Arlison: Sim, com 11 para 12 anos. Quando eu estava me descobrindo e me assumi para a minha mãe, ela agiu de uma forma muito brusca e me emancipou. Então, quando eu tinha 11 anos fiquei responsável por mim mesmo, porque se uma mãe emancipa um filho, o pai não tem mais como recorrer porque aí a mãe já abriu mão, sabe? E no caso, eu iria passar por uma adoção, só não passei porque a minha avó correu muito atrás para eu não ficar em uma casa de abrigo. Eu tinha muita coisa para viver porque, por eu ser muito jovem e ser obrigado a amadurecer cedo, eu fui imposto a situações em que se estivesse com a minha mãe e o meu pai mais próximo de mim ali, talvez eu não precisasse passar.
Sua mãe te emancipou juridicamente mesmo?
Arlison: Sim, juridicamente. Com 12 anos, eu fui procurar uma escola para mim, de ensino fundamental, e o cara falou “tua mãe tem que fazer”, então eu dei o papel da emancipação para ele, aí ele me respondeu que “você não pode ser matriculado aqui porque a gente precisa de um responsável por você, porque, penalmente, você é de menor, mas, legalmente, você é de maior porque você é responsável por si”. Eu deixei de estudar por vários anos porque eu era emancipado e a escola não aceitava, entendeu? Aí eu tinha que recorrer à minha tia e ao meu pai para ficar procurando escola para mim. Essa e outras questões. O que eu queria mesmo é que a gente conseguisse formalizar um diálogo, que é o que eu não conseguia, não conseguia mesmo. Na minha família não dá, todo mundo quer falar mais alto que o outro, todo mundo quer sobressair sobre o outro.
Com que idade você voltou para a casa da sua mãe?
Arlison: Eu voltei com 14 anos, mas a Maré é a minha casa. Eu tenho uma casa em Bangu e por mim, eu venderia lá para comprar uma aqui, mas a minha avó prefere que eu fique lá do que aqui. Mas a minha vida é aqui. É mais próximo de tudo, tem a linha vermelha, linha amarela, e a Avenida Brasil bem nas paralelas de onde eu moro, é mais próximo do centro, é mais próximo do shopping e de tudo. Eu me sinto confortável, aqui é a minha zona de conforto, entendeu? É mais pela criação. Já em Bangu, eu não conseguia formalizar esse diálogo com o espaço e meus vizinhos, entendeu? Porque o pouco que eu via de eu transitando era só sair para trabalhar e voltar, ir no mercado e voltar para casa. Eles não têm costumes de conversar, parar na porta para conversar com o vizinho, observar a rua, sinto que são pessoas mais fechadas e conservadoras.
Você falou que foi com 11 anos que você se assumiu, mas como foi esse processo para você internamente? Quando que você teve certeza da sua sexualidade, que você era um homem gay, e que você sentiu que precisava falar para as outras pessoas disso?
Arlison: Foi difícil porque minha família tem uma visão imposta a uma religião, que vêm da minha avó e que se torna mais preconceituosa quando eu não consigo fazer aquilo que realmente queria fazer. Para mim, foi mais doloroso porque não tinha conversa, não tinha diálogo. Quando eu era mais novo, todas as minhas atitudes, eu pensava mais nos outros do que em mim mesmo, então nunca pensei muito em mim. Eu nunca conseguia pensar em mim em nenhum momento, e quando eu consegui falar para mim mesmo o que eu queria para mim e que eu me abrisse para a minha mãe, aí que foi o ápice da loucura de tudo. Eu virei a ovelha negra da família, o torto e fui o maior problema para a minha mãe.
Família é uma coisa bem complicada, porque na minha família, eu não sei quem me ama, mas eu amo todo mundo, eu acho que eu consigo amar todo mundo infinitamente, de uma forma única, mas eu não sei ali quem me ama mesmo, quem não gosta de mim porque nossas relações ficam rasas. Eu fico ali em um isolamento psicológico, quem me olha acha que eu estou muito bem mas na minha cabeça eu estou gritando “senhor, o que é isso? O que eu estou vivendo? Quem sou eu aqui? O que eu agora causo para o outro? O que eu agora incômodo no outro?”, estou em constante movimento e aprendizado.
E na sua vida, esse preconceito com relação a sexualidade, veio principalmente da religião? E por todas as situações que você passou, isso te afastou completamente da sua família e da religião?
Arlison: Da religião, sim. O pensamento da igreja que formalizou a ideia do que é certo e errado e tudo que foge disso deve ser pecado. Eu acho que a Igreja, no presente, te impede até de pensar criticamente, ela não deixa o ser humano ter um pensamento crítico das coisas, tem que ser “a Bíblia te disse assim, você tem que ser doutrinado assim e seguir assim” porque senão você já é o desviado, entre outras coisas. E isso implica até mesmo dentro da sua casa quando a sua família tenta seguir isso e não é, entendeu? A minha família não é perfeita ela é totalmente desestruturada e ainda passou por todo o conservadorismo da Igreja que faz eles não terem o pensamento crítico. A minha mãe, agora, tem um pensamento mais crítico de relevar algumas coisas. Hoje eu poderia ser outra pessoa se a minha mãe me aceitasse tão de boa quando eu disse para ela que eu gostava de homem, ela virou na minha cara e falou “eu já sabia”. Então se já sabia, por que essa coisa de que “se você ficar doente, eu não vou ir lá, se você for preso, eu não vou ir lá, porque eu não sou sujeita a isso, eu não sou obrigada a ser assim” e tudo mais, doeu tanto para mim quando eu só queria que ela dissesse ”não filho, eu estou contigo nessa caminhada, é, vamos lá, vamos aprender”.
Isso era tudo o que você queria?
Arlison: Sim, mas quando eu me assumi, a minha mãe pegou toda a minha roupa, fez uma poça d’água imensa e ela jogou tudo ali. Eu tive que pegar a minha roupa de lá e ir para a minha casa lá em Bangu com meu pai para tentar viver a minha vida. Em seguida, ela me emancipou: “não quero mais saber dele, ele é por ele mesmo (…) ah, ele quer dar a bunda? Então é isso, ele dá a bunda dele do jeito que ele quer sem me perturbar”.
Eu ainda estou aprendendo, entendeu? Eu não sei se amanhã estarei vivo ou não, então tento viver minha vida ao máximo. E hoje está tão mais difícil morrer do que viver que eu comecei a pagar meu próprio funeral porque eu não quero dar despesa para a minha família, é nesse lugar, porque eu não quero despesa para os outros. Eu pago R$ 8,90 por mês para pelo menos saber que qualquer coisa que acontecer comigo, eu vou morrer de uma forma mais digna. Da onde a minha mãe vai tirar R$2.000,00 agora se eu morrer? Não sei.
E por que tem tanto medo de morrer, Arlison?
Arlison: Eu penso mais pela passagem. É pesar o que se fez certo, se fez errado se questionar. Eu sou muito inseguro de mim mesmo por ter aprendido a amadurecer cedo, pelo contato do meu círculo familiar ter muito impacto na minha vida até hoje, eu gostando ou não. Então quando me botam nesse lugar de ser humano-passagem, minha passagem talvez não vai ser lembrada, ou talvez sim, mas eu prefiro que não seja. É mais insegurança, é muita insegurança de mim. E outra causa desse medo é que a forma que eu gosto de viver, que para as pessoas não é a forma de se viver. Por ser negro, da favela e gay minha mãe sempre fala que eu tenho que me cuidar duas vezes mais e eu sei disso.
Mas quando foi que, você até falou um pouquinho disso agora na questão racial, mas quando foi que você percebeu que você era negro? E o que isso significava na nossa sociedade.
Arlison: Eu acho que isso foi depois de que eu me assumi, que foi quando eu conheci mesmo pessoas que se ligavam a minha opção, que eu comecei a ir em encontros LGBTs e depois que eu conheci esse cara, o Fernando, a minha vida mudou completamente, da cabeça aos pés, e eu realmente sou outra pessoa. Quando eu comecei a ouvir histórias, de tipo assim, “cara, essa é a mesma coisa que você está passando agora”, de tipo, você ser obrigado a se vestir de uma certa forma por causa da mãe, eu me olhava no espelho e às vezes falava “quem é esse menino?”, porque o meu pai me fazia cortar o cabelo tão baixinho a ponto de eu achar que eu era um ‘‘homem”.
Eu só descobri, só me reconheci e me entendi como negro a partir dos meus 15 anos, quando eu já estava morando com um cara e sofri racismo de um amigo meu branco e hétero, que fazia referência a “Cris e Greg” (do seriado Todo Mundo Odeia o Cris) e chegou a falar para meu ex-marido “mas pô cara, tu anda com várias pessoas bonitas, e tá andando com esse neguinho aí, olha”. Nesse dia, eu parei na frente do espelho e me perguntei “você é feliz?”, foi no mesmo dia que eu separei do meu ex-marido, fiz o auê na minha vida e voltei para a casa da minha mãe, eu olhei para mim na frente do espelho e disse assim: “Porque você foi submetido a tantas coisas“. Eu fui taxado como objeto sexual para o meu ex-marido, que só falava “você é preto”, “você é adotado” e “tem o sangue quente”.
Você sofreu com esse estigma do homem preto, do homem preto gay?
Arlison: Eu não sei o que ele via em mim mas, para mim, era algo mais do que ser bem dotado, então sempre pensava “você gosta de mim como pessoa ou você gosta de mim pelo o que eu tenho, pelo o que eu causo?”. Porque ter tesão e ter amor por uma pessoa são coisas bem diferentes e eu percebi muito que as pessoas podem ter mais tesão do que afeto. As minhas relações são mais tesão do que afeto. Eu conheci um cara que consegui saber que ele gosta de mim e sente afeto, mas porque a gente nunca transou e ele não me vê só como um objeto sexual. Com outros homens que fiquei, eles me cobravam fotos, cobravam relações sexuais, cobravam experiências sexuais. Agora tem vários garotos que dão em cima de mim porque eu estou sendo taxado como objeto sexual. Então, agora eu reparo muito mais nessas pessoas racistas que me reduzem a isso.
Quando você se assumiu, sofreu muito preconceito na sua escola?
Arlison: Sim, de alunos, professores e pais. Já cheguei a ouvir: “Eu não admito o meu filho ser da sala desse menino porque ele é negro, ele é gay, porque ele é alegre e outras coisas” de uma mãe. Teve relatos da escola de Bangu de duas meninas que eu ia para escola todo o dia juntos em Bangu e a mãe dela nos separou depois que eu me assumi na escola. Depois disso, quando voltei para casa, falei para minha mãe que iria parar de estudar. Além da minha dificuldade de concentração nas aulas, o preconceito foi responsável por eu querer sair de lá. Nossa, eu fui o aluno que na escola, na história da escola, precisou chamar mais a mãe. Às vezes uma vez na semana, a minha mãe tinha que ir na escola porque eu discutia com as pessoas ao ouvir “você é inteligente mas é preto”. Mesmo com a professora falando que eu era inteligente eu não me considerar porque as pessoas sempre faziam com que eu tivesse baixa estima.
Por isso, você começou a trabalhar desde cedo?
Arlison: Sim, desde muito cedo. Eu sempre penso que tive que amadurecer muito cedo, eu sou muito precoce e me descobrir muito cedo. Com 11 anos tive meu primeiro trabalho com a minha tia em um buffet de festa, com 13 anos comecei a trabalhar no McDonald’s de jovem aprendiz e depois trabalhei na Continental com administração. Depois, quando eu saí da escola, eu conheci as artes.
Como foi esse processo de conhecer e se reconhecer como artista?
Arlison: O teatro é a minha máscara. Antes de eu entrar no teatro, a minha mãe sempre falou “você vai ser um ator” e eu nunca entendi, mas quando eu entrei para o teatro, foi bem no ápice das brigas familiares aqui dentro da minha casa. Foi quando eu conheci o projeto de orquestras, Orquestra do Amanhã, mas não pude fazer porque eu não estudava na escola que era o projeto, só fazia quem era daquela escola na época. Nesse mesmo ano, um amigo meu, que fazia teatro, me levou para o espetáculo que ele estava estreando e quando eu assisti, eu fiquei muito catatônico porque eu realmente estava vendo tudo que se passava dentro da favela, aí eu entendi que precisava daquilo.
Quando comecei mesmo a fazer teatro, a entrar mais para mim, eu queria mesmo viver uma vida que não era minha, queria uma máscara. O meu processo de atuar foi baseado mais no comportamento familiar porque quando eu saia da minha casa para ensaiar e algo da minha casa ou da minha família não permitia que aquilo não acontecesse, o meu diretor e diretora eram certeiros em trabalhar onde começava o meu ponto de tensão. Quando eu botava as questões que eu passava dentro da minha casa que estava me impedindo de fazer uma atuação lá, eles começaram a fazer uma improvisação para mim se referindo aquilo e virava um era um mar de choros e permitia que toda hora eu estivesse me redescobrindo.
Então o teatro te ajuda com as coisas que estão acontecendo fora do teatro?
Arlison: Eu acho que a minha construção de querer trabalhar com isso é de me encontrar, entendeu? Me encontrar em um lugar em que eu não saberia se estivesse aqui fora sem conhecer o teatro. O teatro me dá liberdade de criar possibilidade que aqui fora eu não conseguiria. Lá eu consigo dinamizar a situação e as circunstâncias e de uma certa forma, lá dentro estou me construindo. Antes dele, eu era só aquele garoto inseguro e hoje eu não sou tanto quanto era há um tempo atrás e o teatro me deu essa possibilidade de criar possibilidades.
O teatro é o que te dá esperança para continuar vivendo?
Arlison: Se fosse para falar, “hoje eu acordei para ensaiar no teatro, para criar possibilidades, para imaginar as possibilidades possíveis que o mundo me oferece, não me culpar por algo que não aconteceu, por algo que eu queria que acontecesse, e a possibilidade está a partir do momento em que me dão a esperança de possibilidade”. Quando eu falo que eu me sinto mais seguro fora da minha casa do que dentro, isso é muito real. A minha mãe, quando eu saio, fica tão preocupada, mas eu falo “mãe, é tão mais seguro aqui fora do que dentro de casa”.
No teatro, eu encontro e ouço histórias, entendeu? Eu quero ouvir histórias que foram contadas de lá, de onde outras pessoas se conhecem, a versão dela, o que elas acham.
E você tem vontade de voltar a estudar? Ou estudar Arte, por exemplo?
Arlison: Eu fiz uma prova que eu espero que consiga logo a conclusão do Ensino Médio. Não espero voltar para escola de jeito nenhum, parei no segundo ano do Ensino Médio e tentei esse voltar três vezes, por três anos consecutivos e não consegui. Parei em um ano e voltei no outro seguinte e não consegui. Se eu hoje for voltar para a escola, eu só volto para terminar mesmo, e eu vou buscar otimizar o mais possível o meu tempo. Eu não quero que a escola seja mais um lugar de preconceito ou de doutrina. Hoje, eu percebo, que só o teatro consegue me entender e que se anos atrás eu não tivesse assistido meu primeiro espetáculo, hoje, talvez, eu não estaria mais aqui.
Conta Preta é uma publicação de quatro entrevistas digitais sobre a vivência de pessoas LGBTs negras no Brasil. As entrevistas buscam associar a história contada em primeira pessoa e a escuta jornalística à metodologia de histórias de vida, com o objetivo de retratar a situação desse grupo vulnerável, refletindo sobre a interseccionalidade do sujeito.