Glaucia Tavares: “É muito difícil ser lésbica no movimento negro e ser negra no movimento lgbt”

Vitória Régia da Silva
Conta Preta
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7 min readJul 8, 2018

Foi em uma tarde de quarta-feira cinzenta que encontrei a DJ e estudante de psicologia da UFRJ Glaucia Tavares Dantas Silva de 27 anos, no campus da Praia Vermelha, na Urca. Foi a nossa terceira tentativa de encontro, visto que a jornada de trabalho, estudo e militância de Glaucia ocupa a maior parte do seu tempo. Em meio a um salgado do Sujinho, um refresco e vários cigarros começamos nossa conversa sobre como é ser uma mulher negra e lésbica em uma sociedade que as coloca a margem.

Onde você nasceu?

Glaucia: Eu morei em São Gonçalo enquanto meus pais estavam casados, até os 15 anos e depois fui morar na casa da minha avó. Sou filha única dos meus pais, mas tenho uma irmã por parte de pai. Faz três anos que meu pai faleceu e tenho uma relação boa com minha irmã, apesar de distante porque ela morava em Bangu. Ela é 12 anos mais velha.

Sua família é composta por pessoas negras?

Glaucia: Esse debate nunca surgiu de maneira explícita, mas minha família é negra. Ele não surgia de maneira militante, mas surgia nos detalhes. Como, por exemplo, através da roupa e dos cabelos que sempre ouvi que tinha que me vestir bem. Venho de uma família com uma cultura negra muito forte, meu avô era compositor de samba e meus tios chegaram a se envolver com isso e fazer parte de grupos na década de 90. O samba sempre foi muito presente na minha família.

Quando você entendeu que era negra?

Glaucia: Eu estudei em escolas particulares até quarta- série em São Gonçalo, uma das cidades mais pretas do Rio de Janeiro, e questão da diferença de classe era muito presente. Foi quando eu estudei no Colégio Pedro II de Niterói que senti pela primeira vez um racismo direto de pessoas brancas e o abismo entre pessoas negras e brancas. A questão de classe e raça sempre foi muito confusa durante minha adolescência, porque as duas tem muita relação.

Em que momento você teve contato com a militância negra?

Glaucia: O Pedro II foi importante para mim para entender a questão de classe e foi lá que eu comecei a me posicionar como uma pessoa de esquerda. Na faculdade isso cresceu ainda mais. A questão racial veio junto, mas de uma maneira mais devagar junto com o feminismo. A necessidade de eu estar politicamente posicionada como pessoa negra para sobrevivência surgiu na faculdade.

E como foi a descoberta da sua sexualidade?

Glaucia: Nisso, entra outra parte da minha vida. Minha mãe é evangélica, neopentecostal e minha família foi se tornando ao longo dos anos quase toda evangélica. O fato de eu ser evangélica até os 20 anos brecou muito a descoberta da minha sexualidade. Eu sentia que era diferente, porque não queria cumprir as expectativas de feminilidade que as minhas amigas cumpriam. Eu não queria estar no jogo de que por ser menina eu tinha que agir de determinada forma. Na adolescência, quando eu ficava com meninos, eu me sentia fazendo um papel, um personagem, mas ainda sem entender o que isso significava. A religião me bloqueou nesse sentido e durante muito tempo, para mim, ser lésbica não era uma possibilidade. Como eu também não tinha contato com pessoas lgbts, a visão que eu tinha dessa população era a da Igreja, que diz que lgbts são infelizes, estão nas drogas e na prostituição. Eu não tinha nenhum exemplo de lgbt bem resolvido e que tivesse uma boa relação com a família. Então, era tudo o que eu não queria ser.

Na adolescência, comecei a jogar futebol e descobri que a maioria das minhas colegas de time eram sapatão. E a partir daí, fui percebendo que as pessoas tinham uma vida, que trabalhavam, estudavam e eram felizes. Nesse momento, descobri que lgbts existem e não são condenados à infelicidade.

Devido a presença da Igreja na minha vida, quando eu percebi que era diferente, eu orava muito a deus pedindo que eu não fosse lésbica. Até que quando tinha 17 anos, a questão da sexualidade veio com muita força. A representatividade na televisão e a internet foi essencial para me descobrir e me assumir. Conversar com outras pessoas e perceber que eu não estava sozinha foi muito importante.

Quem foi a primeira pessoa que você contou da sua sexualidade?

Glaucia: Foi uma amiga bissexual, que conheci porque éramos fãs do Coldplay. Eu me senti mais segura de contar para ela pelo fato de ser ela ser lgbt e porque não frequentamos os mesmos espaços. Foi um momento catártico quando conversamos. Dali para frente me senti mais livre, pelo menos no âmbito da internet, para falar mais sobre isso. Quando tinha 19 anos, fiquei pela primeira vez com uma menina. Antes, de me assumir para todo mundo, só tinha falado com essa amiga.

Como foi contar para seus pais?

Glaucia:Minha mãe descobriu. Foi bem no início da faculdade, em 2012, quando estava namorando minha segunda namorada. A primeira, morava na Pavuna, bem longe de onde moro, por isso consegui levar nosso relacionamento sem meus pais descobrirem. Mas, minha segunda namorada, que era da faculdade, ela descobriu porque tivemos uma DR por telefone. Minha mãe ficou muito decepcionada quando descobriu, questionou minha sexualiade e trouxe muita coisa religiosa para se colocar contra minha sexualidade. Ficamos uma semana sem nos falar depois disso, até que voltamos a conversar aos poucos.

Já meu pai, que é separado da minha mãe e chegou a se casar novamente, eu não cheguei a conversar com ele especificamente. Mas ele foi aos poucos percebendo as coisas. Ele já chegou a me ver com minha primeira namorada quando estávamos no centro, mas nunca falou nada. Ele já faleceu, mas quando teve seu primeiro infarto, fui visitar ele no hospital e ele me perguntou sobre minha primeira namorada e disse que queria que eu fosse feliz. Foi lá que eu entendi que ele já sabia, mas que esperava que eu falasse alguma coisa. Foi um momento muito delicado para mim, porque ele nunca tinha perguntado isso. Foi uma pena que não pude conversar com ele sobre isso, porque faleceu logo depois.

Sua relação com sua mãe melhorou depois disso?

Glaucia: Melhorou no sentido de que sei que ela não fica mais afetada por isso. Ela sabe que estou namorando uma mulher e que a maioria dos meus amigos é lgbts. Como ela é religiosa, ainda solta umas piadas. Eu não sei se algum dia ela vai entender ou se algum dia ela receberá minha namorada. Eu ainda tenho que separar minha vida afetiva da minha vida familiar. A família do meu pai é mais aberta quando a isso, porque depois que meu pai faleceu eu me assumi nas redes sociais em um texto em que falava da relação com meu pai e minha sexualidade. A família dele viu o texto e reagiram muito bem, eu me sinto confortável com eles para levar minha namorada.

Como você lida com as dificuldades de ser uma mulher lésbica negra?

Glaucia: Eu tenho esse desconforto porque é muito difícil ser lésbica no movimento negro e ser negra no movimento lgbt. Eu geralmente tenho mais paciência para lidar com a lgbtfobia no movimento negro, porque penso que essas mulheres negras, por exemplo poderiam ser minha mãe e que muitas não tiveram acesso. Já o movimento lgbt é muito racista e elitista e sinto uma dificuldade muito grande nesse debate.

Você acha que é negado as pessoas negras o direito à sexualidade?

Glaucia: É uma cobrança muito grande em relação a pessoas negras de manter uma sexualidade mais heteronormativa para ser mais aceito na sociedade. Existem menos possibilidade de ser para nós. Eu acho que a gente enquanto pessoas negras não é emancipada ainda e não consegue se entender direito. A gente vive dilemas muito básicos, como receber um salário, o genocídio e o encarceramento da população negra.

Eu chego nos lugares e o primeiro olhar que as pessoas tem sobre mim é que sou negra, por isso, não tem como falar de feminismo e população lgbt sem falar de raça. Isso é algo que me atravessa demais. Eu pontuo a questão racial em tudo, nas minhas experiências e nos meus posicionamentos políticos.

Como é para você ser uma mulher lésbica em uma sociedade heteronormativa?

Glaucia: Quando estou em espaços mais heteronormativos eu sinto que eu sou um corpo estranho e que minha presença causa impacto. Por eu ser preta retinta e sapatão, isso está sempre ligado. Acho que sobretudo por ser preta, que é uma coisa que eu não consigo esconder não importa o que eu faça.

Você leva esses debates para seu trabalho como DJ?

Glaucia: Estar tocando como DJ está sendo muito gostoso. Eu comecei tocando em festas muito ligadas a militância, como a Velcro, uma festa destinada a mulheres lésbicas e a Batekoo, ligada a cultura negra. Quando eu toco em festas na Zona Sul, que não está ligada a militância, eu tenho outra percepção porque já passei por situações em que as pessoas não imaginavam que por ser preta e sapatão eu era DJ da festa e percebo que minha presença nesses espaços gera muito impacto.

Por ser mulher, eu enfrento muito a questão técnica. Eu tenho mais a provar já que é um espaço dominado por homens. A gente tem que ser duas vezes melhor para ter metade do que eles têm. Infelizmente, isso é muito cruel, mas é uma forma de sobrevivência.

Hoje eu me encontro em um dilema muito difícil, porque apesar de gostar muito do curso de psicologia, meu trabalho como DJ está indo a patamares que eu não esperava. Ele está me exigindo mais seriedade e tempo. Eu estou apaixonada pela profissão e quero fazer muita coisa ainda. Eu sinto que quando eu me formar eu vou entrar de cabeça na minha carreira de DJ. Eu não quero deixar de me formar, porque é importante para mim e para a minha família como a primeira que entrou em uma faculdade pública, mas eu sinto que estou construindo uma carreira mais sólida como DJ do que como psicóloga.

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