3 passos para uma publicidade mais honesta

O gosto da publicidade por contar histórias não pode ser à custa da verdade, afirma Ambika Pai, CSO da Mekanism. Ela compartilhou conosco seu processo para garantir a sinceridade criativa

Contagious Brasil | editorial
Contagious Brasil
9 min readJan 28, 2022

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Este artigo foi publicado originalmente em inglês no nosso blog global, onde discutimos os desenvolvimentos mais relevantes em marketing, criatividade e inovação — e também contamos mais de nossos produtos e serviços. O texto reflete a opinião da colunista convidada.

Imagem da camoanha Every Single Person, do OkCupid, criada pela Mekanism

As pessoas que trabalham com publicidade geralmente gostam de se ver como contadoras de histórias. Vale lembrar, contudo, que histórias se destinam principalmente ao entretenimento, envolvendo ficção, dramatização e hipérboles — muitas vezes, à custa da verdade.

Não é surpresa alguma que muitos anúncios sejam repletos de bobagens. Por conta disso, 96% dos consumidores não confiam em anúncios. Já vivemos na era da pós-verdade há alguns anos, mas estamos realmente chegando a um pico desse período.

No ano passado, o jornal norte-americano The Atlantic publicou um artigo detalhando como “os níveis de confiança estão em declínio vertiginoso”, alertando que “quando a confiança social entra em colapso, as nações fracassam”.

Isso me fez pensar: enquanto pessoas com acesso aos maiores megafones do mundo, por que ainda contamos histórias? Não é hora de os anunciantes começarem a contar a verdade? À medida que venho descobrindo como garantir que a verdade permaneça no centro do que oferecemos aos nossos clientes e do que entregamos como parceiros, criei um processo de truth-telling em três passos: desconstruindo o briefing, interrogando o insight e explorando a expertise.

Passo 1 / Desconstruindo o briefing

A pior coisa que podemos fazer é tomar um briefing como escritura sagrada. É nossa tarefa e responsabilidade analisá-lo por todos os ângulos, fazendo as perguntas certas e garantindo que ele seja o mais preciso possível.

Identificar o problema certo, fundamental para criar trabalhos que geram resultado, é meio caminho andado. Importante: cuidado com as tendências culturais em alta no momento, que podem fazer sua marca pegar carona nos assuntos e empurrá-la para o meio da confusão em vez de colocá-la em evidência.

Em 2021, no chamado hot vax summer do hemisfério norte — o primeiro verão pós-vacina contra a covid-19 –, a plataforma OkCupid queria capturar os usuários de apps de relacionamento, categoria que voltava a ganhar força à medida que as pessoas retomavam a vida social com mais segurança. O objetivo era garantir que o OkCupid fosse baixado pelas pessoas e correspondesse ao entusiasmo após o período de seca da pandemia, para se tornar o principal aplicativo de encontros da era pós-covid. Mas o hot vax summer era fugaz, e queríamos ajudar o OkCupid a provocar uma empolgação de longo prazo.

Reformulamos o problema afirmando que o domínio de mercado do OkCupid deveria extrapolar o momento da vacinação. A maioria das pessoas que usa apps de relacionamento tem uma média de quatro aplicativos em seus celulares. À medida que mais aplicativos foram surgindo, a participação de mercado do OkCupid se tornou fragmentada.

Imagem da camoanha Every Single Person, do OkCupid, criada pela Mekanism

O questionário robusto do site ajuda a entregar algoritmicamente as melhores correspondências — desde orientação sexual e gênero até tendências políticas, filosofias, valores, preferências por animais de estimação etc. As perguntas contribuem para um conhecimento aprofundado dos usuários, de modo a conectá-los com as pessoas certas.

Entender profundamente os usuários exigia que o OkCupid fosse o aplicativo que de fato estava focado no que as pessoas estavam sentindo após um isolamento prolongado. A população solteira teve muito tempo para refletir. Essas pessoas se tornaram mais sinceras em relação a quem eram, ao que importava, ao que buscavam e ao significado das conexões humanas em suas vidas. À medida que a vida social ia ganhando novo fôlego, os solteiros começaram a marcar mais encontros, mas não simplesmente retomando suas identidades pré-pandemia. Essas pessoas ressurgiram com novas versões de si mesmas e precisavam saber que não é apenas bom, e sim incrível que elas possam ser elas mesmas ao sair com outras pessoas.

O OkCupid foi a primeira plataforma de relacionamentos a permitir que as pessoas escolhessem seus pronomes. Ativista, a marca tem se mostrado apaixonada pela comunidade LGBTQIA+. Isso somado ao nosso desejo de nos relacionarmos com pessoas que se conhecem melhor do que nunca, nos levou a criar Every Single Person. Com peças nas ruas, a campanha apresentou 16 imagens impressionantes que exploraram como são os encontros hoje em dia, explicando que a marca é para todas as pessoas — de abraçadores de árvores a insones, de românticos a não monogâmicos.

Oportuna e culturalmente relevante, a campanha evitou apenas entrar na onda do verão pós-vacina. Também foi capaz de falar com pessoas com interesses específicos, defendendo uma inclusão radical e demonstrando como qualquer um pode encontrar o que procura no OkCupid.

Passo 2 / Interrogando o insight

Um insight deve fazer alguém dizer: “nossa! Nunca pensei sobre isso dessa forma”. É necessário que haja surpresa, interesse, intriga, mas sem estranhamento. Trata-se de algo crível — todos sentem a verdade contida na ideia — que força a pensar um pouco diferente.

Um resultado de busca do Google, por exemplo, não é um insight. Todo estrategista começa pelo Google, e garanto que todos leem os 10 primeiros resultados do que procuram. O que você encontra no Google é uma observação. Para atingir um nível mais profundo, é preciso perguntar por quê. Muitas vezes. Ir ao cerne da questão. E, finalmente, priorizar o conhecimento — realmente entender algo a fundo — em vez de simplesmente saber a respeito.

Imagem da campanha Made to Save, feita pela Mekanism para o Google nos EUA

Em novembro de 2020, a Mekanism fez uma parceria com a Civic Nation e a Casa Branca para uma campanha que combatesse a hesitação dos norte-americanos em relação às vacinas contra a covid-19. Naquele momento, 40% da população dos EUA se mostrava receosa em relação ao plano de imunização do país. Todo mundo sabia disso. Com base nessa observação, a resposta fácil seria alertar sobre as perdas ao não se vacinar. A maioria das comunicações que vimos nesse período tinha exatamente essa abordagem. Mas quando perguntamos por que, e razões muito mais profundas e variadas se revelaram.

Sim, havia quem questionasse a eficácia e a segurança das vacinas: como tinham sido desenvolvidas, em quanto tempo, como funcionavam, o que se podia esperar delas etc. Mas não parava aí. Ao mergulharmos na questão, no contexto dos Estados Unidos, encontramos um histórico de discriminação, desigualdade e tratamento inadequado no sistema de saúde pública; a crença de que a indústria farmacêutica quer se aproveitar das pessoas; uma profunda desconfiança em relação às instituições e à mídia; e a incompreensão sobre quais informações são confiáveis.

Para que pudéssemos obter um conhecimento profundo do que estava acontecendo, precisávamos abandonar a simples noção de que os norte-americanos estavam desconfiados. No fundo, as pessoas nos EUA questionavam se havia segundas intenções por trás do plano de imunização.

Portanto, nosso desbloqueio estratégico envolvia deixar muito claro que a vacinação não tinha uma pauta política. Made to Save mostra para que a vacina foi criada: salvar vidas, independentemente de visões políticas, interesses financeiros e outros vieses. O insight sobre desconfiança em relação a segundas intenções orientou todo o nosso trabalho. Isso não era algo que poderíamos encontrar em uma pesquisa no Google. Perguntamos “por que” muitas vezes até entendermos as nuances da hesitação de diferentes grupos nos EUA. Passamos dos fatos à compreensão das pessoas de modo muito mais profundo.

Imagem da campanha Made to Save, feita pela Mekanism para o Google nos EUA

Passo 3 / Explorando a expertise

A expertise pode vir da experiência vivida tanto quanto da compreensão de um assunto. Como profissionais de marketing e anunciantes, criamos para pessoas — e somos pessoas. Ter um público-alvo de “mulheres de 35 a 40 anos” é totalmente diferente de pensar em um público como “alguém como eu” ou “alguém como a minha melhor amiga”.

Em 2021, a Frida Mom nos apresentou uma nova categoria de chamada “cuidados com as mamas”, um portfólio de produtos para mães no pós-parto que lidavam com problemas relacionados à amamentação (a rotina em torno do leite materno, a decisão de não amamentar, o ingurgitamento mamário etc.). Fomos incumbidos de ajudar a marca na comunicação destes cuidados com as mamas. Não conseguíamos parar de pensar nesta incrível estatística: 87% das mulheres iniciam a amamentação nos primeiros dias após o parto, mas 60% delas param antes do que gostariam. Por que 60% das mulheres param de amamentar se não é o que elas desejam? Porque ninguém está contando a verdade para elas.

Construímos uma equipe mesclando expertise inerente (experiência pessoal) e herdada (oriunda de pesquisa e conhecimento profundo sobre o tema e as pessoas a quem devemos servir). Nossa diretora geral estava atendendo todas as ligações relacionadas à Frida Mom de casa, grávida de oito meses. Eu estava imersa nas trincheiras da amamentação e da recuperação pós-parto. Uma diretora criativa estava cuidando de duas crianças durante a quarentena e outro comprava couve para aliviar as dores nos seios de sua esposa lactante. Além disso, nossos diretores de criação, estratégia e marca mergulharam em todos os detalhes por meio de conversas íntimas com mães e leituras em fóruns do Reddit, grupos de Facebook e posts no Twitter, no Instagram e em blogs de mães.

Imagem da campanha Stream of Lactation, da Mekanism para a Frida Mom

À medida que trabalhamos para exercer e desenvolver nossa expertise, desconstruímos muitas suposições sobre cuidados com as mamas, amamentação e a realidade pós-parto.

Há uma expectativa de que a amamentação seja uma experiência linda e mágica entre mãe e bebê, o que inclusive pode acontecer. Mas a amamentação também pode ser fisicamente dolorosa e emocionalmente desgastante. Há uma expectativa de que a amamentação seja instintiva, que ocorra naturalmente. Sim, o processo é biologicamente natural, mas o que acontece com os seios não é necessariamente sentido dessa forma — ainda mais se você nunca fez isso antes. A comunicação dessa categoria se concentra em como a amamentação representa um elemento vital para a saúde do bebê. Portanto, amamentar com sucesso deve ser sua maior prioridade. Mamas acima de tudo! Bebês antes de qualquer coisa!

Entretanto, embora seja de fato importantíssima para a saúde do bebê, a amamentação pode significar o sacrifício da saúde da mãe e de seu bem-estar mental.

O quadro pintado pela sociedade e perpetuado pela categoria é muito diferente (e muito mais monolítico) do que a experiência vivida pelas mães. A comunicação da categoria não ajuda em nada a aliviar essa pressão. Mas a filosofia da Frida é que “quando nasce um bebê, também nasce uma mãe”. Então tínhamos colocar as mães no centro das atenções para apoiá-las quando elas mais precisavam.

Isso nos levou a lançar Stream of Lactation, um filme que entra na cabeça de duas mulheres tentando amamentar seus bebês recém-nascidos.

Imagem da campanha Stream of Lactation, da Mekanism para a Frida Mom

O mote é o seguinte: “cuide dos seus seios, e não apenas do seu bebê”. Aqui, detalhes como o uso de folhas de couve para o alívio dos seios ou de uma escova de dentes elétrica para liberar obstruções do leite são os indicadores da verdade.

Os detalhes não estavam apenas no roteiro, mas também na execução da campanha. Nossa diretora era Rachel Morrison, mãe de duas crianças, e a campanha foi interpretada por duas mães. Portanto, tudo, incluindo o leite esguichando no espelho, é real.

A campanha também ajudou a mudar diretrizes. A Frida já havia sido banida do Oscar por um comercial com a temática pós-parto. Por isso, trabalhamos com a NBC para mudar algumas regras, permitindo que mostrássemos seios em lactação na TV de forma inédita. Os resultados foram realmente impressionantes, não apenas em relação a awareness de marca e tráfego, como também — e mais importante — impactando de verdade a cultura.

Da verdade ao poder

Esses exemplos mostram por que precisamos trocar o storytelling pelo truth-telling, para que possamos realmente entrar na mentalidade das pessoas a quem servimos. Devemos trazer à tona as lutas, alegrias, dores e euforias do dia a dia das pessoas, e não tentar envolvê-las em alguma ideia kitsch ou excessivamente fabricada para entreter e divertir. As hipérboles são nossas inimigas. Devemos erguer um espelho para o mundo se enxergar e fazer a nossa parte para que essa postura aconteça de forma genuína. Poder implica responsabilidade, e diria que alcançar 90 milhões de pessoas em um jogo de futebol é um poder considerável.

Tradução: Ricardo Romanoff

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