Clones na moda e nas redes
De deepfakes a NFTs, de avatares de marcas a reproduções de nós mesmos, Cassio Prates reflete sobre todos os “eus” necessários para performar no mundo virtual
Este texto é assinado por Cassio Prates, pesquisador de tendências, cultura e comportamento, que desenvolve direcionamentos estratégicos e direção criativa de comunicação e produto, e aqui escreve sobre a indústria da moda no contexto contemporâneo e como isto se relaciona com o mercado de comunicação e de marketing.
Talvez falar de clones pareça tão antigo quanto aquele discurso do novo normal, que às vezes a moda e a vida tentam introduzir como obrigatório, após estarmos imunizados.
Mas vamos lá. Junho passado, Demna Gvasalia, estilista da Balenciaga, antes da sua estreia mega comentada na alta costura (que pode ser assunto para daqui a pouco), apresentou um coleção denominada Clones no desfile primavera verão 2022.
No teaser do desfile, a primeira fila aparecia em looks quase iguais, pretos, com seus celulares na mão, junto da data e do título da coleção. O vídeo de apresentação iniciava com a frase:
“ Vemos nosso mundo através de um filtro aperfeiçoado, polido, conformado e photoshopado. Não deciframos mais entre não editado e alterado, verdadeiro e falsificado, tangível e conceitual, fato e ficção, fake e deepfake”.
Logo em seguida, o desfile iniciava naquela mesma primeira fila do teaser. Com um look igualmente preto, Eliza Douglas, a artista musa de Gvasalia, abria a coleção. Logo em seguida, muitas dela começavam a aparecer, em um mix de confusão e euforia. O diretor criativo clonou Eliza em todas as modelos desfiladas, colocando-a em diferentes versões, cabelos e gêneros para apresentar todos os looks da coleção.
As roupas apareceram sem muita novidade, apresentado uma edição de looks já conhecidos e possivelmente muito bem vendidos na marca, mas o desfile chamava a atenção pelo fato que estava colocando em questão: o quanto estamos vivendo em um momento de clonagens e, mais do que isso, o quando estamos precisando de clones, tamanho o compromisso social que nos colocamos. Precisamos de muitos nós para dar conta desse tempo tão específico.
Tecnologias de VR/AR ferramentalizaram a nossa identidade virtual e podemos criar diferentes versões de nós mesmos para nos apresentarmos no trabalho, na festa, no shopping e etc. Assim como no desfile, sem muitas novidades, mas com uma versão editada para cada momento: algumas mais comerciais, outras um pouco mais conceituais, mas que, ainda assim, “vendem bem”.
É importante perceber que, mesmo não usando sempre tecnologias propositivas para isto, criamos muitas versões de nós mesmos e nos colocamos na obrigação de estarmos em muitos lugares ao mesmo tempo, comentando, trabalhando e produzindo no nosso Keynote, nos nossos e-mails, no TikTok, no Instagram, no Twitter, nos grupos de Whatsapp. Não só as tecnologias de realidade aumentada nos reproduzem, mas também nós nos reproduzimos. Porém, ainda assim, continuamos humanos. Ou, com sentimentos humanos.
Marcas criam avatares e clones (muitas vezes antiquados) para apresentar um personagem-quase-perfeito que representa a marca, sua atmosfera e sua ambiência para vender looks sobre o fenótipo da tão estereotipada "consumidora" em um plano 3D, sem conflitos e sem defeitos. Porém, ainda assim, criada e pensada por humanos.
Os NFTs, ao trazer um produto real para o virtual, possibilitando que itens de luxo sejam utilizados no ambiente digital, também se adapta à lógica de clones, garantindo mais possibilidades ao produto físico. Um texto de Alex Jenkins, diretor editorial da Contagious, para a edição 67 da Contagious Magazine, fala justamente sobre o valor intangível e irracional destes token e das criptomoedas.
Mas — na minha visão — o que o desfile da Balenciaga reforça em nossos pensamentos (e, por isso, é bastante significativo) é que somos moeda viva de um sistema que nos fez estar sempre consumindo e seduzindo — através de produtos, posts e opiniões que não param de crescer e precisam de muitos de nós para isso.
Quantos “de um só” a gente vê no Instagram comentando sobre tudo, postando sobre muito e seduzindo em forma de clone de um personagem “sem defeitos”, que consegue zerar o seu feed diariamente? Ou o quanto vemos de personagens perfeitos que produzem e ressignificam tudo ao seu redor, em looks já conhecidos, mas disfarçados de “new collection”?
Quantos “eus” são necessários para performar nesse mundo virtual onde quem mais aparece, mais acontece? ( E quanto do meu eu aguenta isso?)
O que torna tudo ainda mais perigoso é o quanto marcas e pessoas buscam nessas “figuras clonadas” uma tentativa de integração completa com uma totalidade social que vem entrando em desintegração (acelerada pela Covid-19 em 2021). O quanto desses clones é mais repetição do que evolução?
Quando marcas apresentam avatares sem defeitos para se representarem, estão colaborando com uma sociedade de consumo onde todos nós, humanos, precisamos ser perfeitos. Quando aceitamos esse tipo de clone, não o da Balenciaga, mas esse que prega sermos a melhor versão de nós mesmos (um pastiche bem resolvido e hackeado da lógica de consumo) estamos igualmente vestindo a roupa errada, que foi sucesso de vendas na coleção passada e não deveria ser mais.
Marcas e influenciadores precisam pensar que, ao fazer isso, estão reproduzindo toda a domesticação e a colonização que foi feita pelas antigas revistas de moda, em outros formatos. Estão clonando o antigo, e não de forma evolutiva, mas repetindo os mesmo padrões e formatos que a própria internet tinha por princípios (talvez utópicos) quebrar.
Com isso, postergamos ainda mais o que deveria ser esse tão comentado novo normal, mais solto, com mais possibilidade de erro e de desejos.
E, pra quem não sabe, todas as roupas do desfile da Balenciaga foram produzidas, desfiladas, gravadas e depois incorporadas ao “ideal de beleza Eliza Douglas”, com tecnologias de 3D e deepfake.