Por que a tecnologia precisa de inteligência emocional

Contagious conversou com Rana el Kaliouby, cientista da computação e CEO da empresa de tecnologia de mensuração de emoções Affectiva, sobre por que a tecnologia precisa de mais inteligência emocional

Contagious Brasil | editorial
Contagious Brasil
8 min readAug 13, 2020

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Este artigo foi publicado originalmente em inglês no nosso blog global, onde discutimos os desenvolvimentos mais relevantes em marketing e inovação. A Contagious dedica-se a fornecer aos seus clientes inteligência criativa e estratégica para ajudá-los a trabalhar de maneira mais inteligente e rápida. Saiba mais em bit.ly/ContagiousBrasil.

Rana el Kaliouby assumiu a missão de humanizar nossas interações com a tecnologia. Pioneira no campo da “inteligência artificial emocional” — ou “IA emocional” –, a ex-pesquisadora do MIT fundou a Affectiva (startup do MIT Media Lab) em 2009 para explorar como o machine learning, combinado com grandes quantidades de dados, poderia identificar emoções humanas e responder a elas.

Seu novo livro, Girl Decoded — que tem como subtítulo “A jornada de uma cientista para recuperar nossa humanidade, trazendo inteligência emocional para a tecnologia” –, é um registro de memórias e um manual de empreendedorismo. A pesquisadora relata o que inspirou seu interesse pela IA emocional e vislumbra um futuro no qual as interações das pessoas com a tecnologia serão mais humanas.

A Contagious conversou com el Kaliouby para saber mais sobre como a IA emocional pode ser usada para transformar tudo — desde a segurança automotiva até iniciativas relacionadas à saúde mental. Também falamos sobre por que a abordagem emocional é útil para o marketing e sobre como ela pode ajudar a conectar as pessoas em tempos de distanciamento social.

Como você define a IA emocional e por que precisamos dela?

O que torna uma pessoa inteligente não é apenas seu QI ou sua inteligência cognitiva, mas também sua inteligência emocional, como você entra em sintonia com as pessoas. Você entende sinais não verbais? Consegue responder a eles e se adaptar em tempo real? É isso que torna as pessoas emocionalmente mais inteligentes.

Após anos de pesquisa, sabemos que pessoas com QEs [quocientes emocionais ou inteligência emocional] mais altos tendem a ser mais persuasivas e simpáticas, além de serem gerentes e parceiros mais eficazes. Acredito que isso também vale para a tecnologia, especialmente para dispositivos que interagem com pessoas no dia a dia.

Portanto, meu ponto central é que a tecnologia precisa de inteligência emocional. E fazemos isso criando algoritmos que entendem a comunicação não verbal das pessoas — expressões faciais, gestos, entonações –, permitindo que os dispositivos absorvam esses dados e se adaptem em tempo real.

Você tem uma visão consolidada para essa tecnologia?

Vamos interagir com a tecnologia da mesma forma que interagimos uns com os outros: por meio da nossa percepção, de conversas e da empatia. Esse é o objetivo final: que haja uma visão das interações da tecnologia conosco da mesma maneira que temos uns com os outros. De modo mais prático, sou apaixonada pela aplicação dessa tecnologia em atividades relacionadas à saúde mental. Hoje, a forma como mensuramos a saúde mental é baseada em relatos subjetivos. Acredito que haja uma oportunidade de analisar biomarcadores faciais e vocais como indicadores de depressão, ansiedade e até mesmo de intenções de suicídio.

Claro, atualmente há essa sensação de solidão e isolamento — embora estejamos conectados em nossos dispositivos, é uma ilusão de conexão. Isso porque estamos perdendo toda essa rica comunicação não verbal que geralmente temos quando estamos juntos em um contexto face a face. Portanto, acredito que haja uma oportunidade para a IA emocional trazer esse tipo de nível mais profundo de conexão quando estamos online.

Ao longo de sua carreira, quais mudanças você viu nas atitudes em relação à IA, particularmente à IA emocional?

Faço isso há 20 anos, primeiro como acadêmica e, nos últimos dez anos, dirigindo a Affectiva. Quando começamos, as pessoas realmente não entendiam o papel das emoções em nossas vidas, que dirá o papel delas na tecnologia. Lembro-me de quando eu e Rosalind Picard, cofundadora da Affectiva, buscávamos investidores para a empresa. Evitávamos a todo custo mencionar “emoção”, a qual chamávamos entre nós de “a palavra com E”. Inclusive, o nome da empresa é Affectiva porque “afeto” é sinônimo de emoção, mas soa menos feminino. Tudo isso mudou nos últimos seis anos ou mais.

Especialmente quando se trata de marcas, mídia e conteúdo, já existe um reconhecimento de que as emoções impulsionam o comportamento do consumidor: o boca a boca, a intenção de compra, as vendas, as decisões de marketing e a nossa memória (moldando o que lembramos e o que não recordamos).

Houve essa mudança voltada à busca do entendimento e da quantificação das respostas emocionais inconscientes de públicos, usuários e consumidores em relação a produtos, serviços, conteúdos e publicidade, de modo a usar isso para ajudar nas tomadas de decisão.

Uma de suas primeiras parcerias comerciais foi com a empresa WPP. Por que sua tecnologia é uma ferramenta valiosa para os profissionais de marketing?

A WPP entrou em contato conosco pela primeira vez em 2011. Tínhamos feito um pequeno experimento no site da Forbes, coletando respostas a anúncios do Super Bowl. Dissemos às pessoas: “Ligue sua webcam. Vamos mensurar suas respostas. Você pode compará-las com as de outras pessoas em todo o mundo que assistiram ao mesmo anúncio.” Foi a primeira fase dessa ideia de coletar as respostas das pessoas, e isso chamou a atenção da WPP, que está no mercado de quantificar o envolvimento emocional de espectadores.

A WPP acabou se tornando uma investidora estratégica e continua sendo nossa maior cliente e parceira. Agora, por meio dela e de outras agências de pesquisa semelhantes, trabalhamos com um terço das empresas que compõem a lista Fortune Global 500 e atuamos em 90 países. Testamos cerca de 30 a 50 anúncios por dia, tudo automatizado. Já avaliamos cerca de 50 mil anúncios em vídeo e temos a capacidade de capturar mais de 9,5 milhões de respostas. São muitos dados, e é fascinante identificar tendências — por exemplo, como os anúncios estão se tornando mais sentimentais e emocionais.

Anos atrás, quando a Contagious falou com a CMO da Affectiva, Gabi Zijderveld, ela explicou que a tecnologia de reconhecimento de emoções da Affectiva permitiria aos anunciantes personalizar a forma como conteúdos automatizados são veiculados. Como você vê essa personalização funcionando?

Imagine que você e eu estamos assistindo a um conteúdo da Netflix, mas temos interesses diferentes. Eu gosto das cenas românticas, talvez você goste mais das cenas de ação. Com base em nossas respostas emocionais, é quase um jogo do tipo “escolha sua aventura” — o caminho a percorrer é diferente, conforme suas reações. Existem oportunidades para recomendar conteúdos. Se ficar evidente, com base nas minhas métricas de envolvimento emocional, que gosto de um tipo específico de filme, seria possível recomendar um conteúdo semelhante sem que eu tenha que responder a inúmeras enquetes.

No livro, você conta que, ao apresentar a Affectiva pela primeira vez a investidores, eles muitas vezes se decepcionaram com sua longa lista de usos potenciais. Qual é o seu foco hoje em comparação com aquele início?

A lista de usos segue crescendo. Somos frequentemente abordados por todos os tipos de pessoas, que querem usar essa tecnologia de diferentes maneiras. Há cerca de cinco anos, falávamos com todo mundo, mas rapidamente descobrimos que essa era uma receita para o desastre. Tínhamos uma versão de nossa tecnologia que você podia licenciar. Chamamos isso de “habilite seu aplicativo ou dispositivo para emoções”. Mas como empresa, você precisa se concentrar e resolver um problema específico de alguém. Por isso, agora estamos focados em análise de mídia, que é por onde começamos. Continuamos a ver muito crescimento nesse aplicativo — e em tudo relacionado às respostas do público, à lealdade e à percepção das marcas. Também estamos muito focados na área automotiva. [A empresa desenvolveu uma tecnologia que analisa expressões faciais e vocais para detectar comportamentos potencialmente perigosos ao volante, como cansaço e distração, com o objetivo de prevenir acidentes.]

Atualmente o que tem entusiasmado você?

Tendo em vista o momento em que estamos, com todos trabalhando em casa, ansiando pela sensação de conexão humana, sinto que há uma oportunidade de levar nossa tecnologia para eventos virtuais transmitidos ao vivo, como conferências e webinars. Tenho participado de muitos, e é realmente perturbador fazer uma apresentação para centenas de pessoas sem poder vê-las — ou, pelo menos, ter uma ideia do quanto elas estão engajadas. Imagine poder capturar as respostas do público em tempo real e compartilhá-las com todos, criando a sensação de uma experiência compartilhada. Estou animada com essa ideia, tentando levá-la adiante com os parceiros certos para executá-la.

Em Girl Decoded, você fala sobre a importância da privacidade de dados. Quando a Affectiva estava apenas começando, como você sabia que as questões de privacidade e violações de confiança se tornariam um dos maiores problemas enfrentados pelas empresas de tecnologia?

Percebemos muito cedo, quando começamos a empresa há dez anos, que esse tipo de dados — compreensão das respostas emocionais e cognitivas das pessoas às coisas ao redor — é muito pessoal, às vezes o mais pessoal que se pode ser. Para encorajar as pessoas e para que elas compartilhem esses dados, tivemos que fazer da privacidade e do consentimento um de nossos valores fundamentais.

O que você acha que as empresas deveriam e poderiam fazer para garantir a confiança dos consumidores?

Há alguns caminhos. Em primeiro lugar, o conceito de realmente implementar o consentimento e o “opt-in” com transparência. Em muitos dos sistemas aos quais você adere atualmente, o idioma é o juridiquês, com páginas e páginas de termos e condições. Como consumidor, você não entende exatamente o que está sendo coletado, como os dados estão sendo usados, quem tem acesso a eles. É realmente opaco. Vejo que as empresas de tecnologia precisam ser abertas, transparentes e honestas sobre como os dados estão sendo usados. Quando pedimos o consentimento das pessoas, por exemplo, para ligarem suas câmeras e compartilharem suas reações emocionais, é claro que temos o juridiquês, mas o simplificamos em um consentimento de três frases como: “Ligue a câmera. Agora faremos isso. Essas pessoas terão acesso aos seus dados.”

A outra questão é essa ideia de assimetria de poder. Empresas e organizações de tecnologia possuem esses dados e podem aproveitá-los como bem entendem. E o consumidor? De que forma ele se beneficia? Qual valor recebe em troca? Precisamos de um reequilíbrio.

Em Girl Decoded você fala sobre uma época em que, mesmo sem financiamento, recusou uma oferta lucrativa de um órgão de inteligência. O que você teve que sacrificar por seus valores de confiança e privacidade?

Quando começamos a Affectiva, havia muitas aplicações dessa tecnologia. Queríamos ter certeza de que nós, como empresa, vivemos de acordo com nossos valores essenciais. Havia alguns setores com os quais não nos envolveríamos, como vigilância e segurança, embora seja provavelmente um mercado lucrativo. Atualmente organizamos uma cúpula anual [Emotion AI Summit] para construir um ecossistema em torno dessa tecnologia. Defendemos os casos em que isso poderia ser muito mais benéfico, como na saúde mental e no setor automotivo, e tentamos desviar o foco das pessoas daquelas outras possibilidades de uso.

Tradução: Ricardo Romanoff

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