Quer estratégias mais afiadas e ideias mais interessantes? Encontre um herege
Fazer perguntas heréticas que sacodem preconceitos e geram debates saudáveis é fundamental para o desenvolvimento de estratégias e ideias criativas de sucesso, afirmam o líder de estratégia da Contagious, Chris Barth, e o cofundador da empresa Paul Kemp-Robertson
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no nosso blog global, onde discutimos os desenvolvimentos mais relevantes em marketing e inovação. A Contagious dedica-se a fornecer aos seus clientes inteligência criativa e estratégica para ajudá-los a trabalhar de maneira mais inteligente e rápida. Saiba mais em bit.ly/ContagiousBrasil.
A primeira regra para se tomar uma decisão é que não se toma uma decisão a menos que haja uma divergência. É o que diz Peter Drucker, aquele influente e tão citado filósofo dos negócios. Sem divergência, sem decisão.
Em seu livro de 1973, Management: Tasks, Responsibilities, Practices, Drucker conta a história de como, certa vez, Alfred P. Sloan Jr., presidente e CEO da General Motors, encerrou abruptamente uma reunião após observar que havia consenso entre os participantes. “Proponho adiarmos uma discussão mais aprofundada sobre esse assunto, até o próximo encontro. Assim teremos tempo para desenvolver divergências”, disse Sloan. O executivo reconheceu que as decisões que emergem de um caldeirão quente de dissenso serão mais robustas do que as tomadas sem o gostinho de um desafio. Sem divergência, sem decisão.
Não vamos forçar você a concordar com Drucker e Sloan — seria contraditório da nossa parte. Mas é difícil acreditar que marcas e agências cheias de homens e mulheres que só dizem sim sejam capazes de produzir, de modo consistente, trabalhos sagazes que chamam a atenção das pessoas. Como qualquer criativo calejado pode atestar, ideias que se destacam geralmente começam com um impasse.
Uma divergência é simplesmente uma tensão em busca de solução. Esse choque de ideias serve como um embate breve e saudável antes que as equipes saiam do scrum com foco na mesma direção. Precisamos concordar em discordar, com a consciência de que em algum momento encontraremos a solução que resolve o atrito.
Os benefícios do constrangimento /
Tensões são o alicerce fundamental do mercado publicitário. Planejadores desvendam tensões culturais para revelar insights, os quais são usados para conduzir a estratégia de uma marca. Criativos exploram essas tensões ao tocar o coração das pessoas ou fazê-las rir com uma chamada ou comercial matador de 30 segundos. Portanto, faz sentido que as empresas também busquem tensões produtivas em seus fluxos de trabalho.
Em nosso livro, The Contagious Commandments, chamamos essas tensões e divergências que revelam oportunidades de “perguntas heréticas” — ou, em um português mais corriqueiro, perguntas heterodoxas. Se a resposta for: “Porque é assim que sempre fizemos” ou “Porque isso não vai funcionar nunca” ou ainda “Porque nenhum dos nossos concorrentes está tomando essa decisão”, TAN TAN TAAN!: você topou com uma pergunta herética. São aquelas questões que congelam o ar em uma reunião de acionistas e que fariam você ser ridicularizado se as proferisse em um discurso de venda.
Nosso conselho: persiga essas ideias. Faça essas perguntas. E, mais importante, se esforce para fazer com que o seu local de trabalho seja um lugar onde perguntas difíceis — e as inevitáveis divergências associadas a elas — sejam bem-vindas como um meio para se chegar a melhores resultados. Afinal, às vezes essas perguntas ridículas e pouco ortodoxas podem levar a ideias tão convincentes ao ponto de não poderem ser rejeitadas.
A bravura do dissenso /
O conceito de fazer perguntas que balançam estruturas não é novo. É uma forma antiga de aprender mais, de ir mais fundo. Qualquer criança de cinco anos sabe que, em algum momento, ao perguntar “por que” sem parar, é possível desvendar os segredos do universo.
Aos 25 anos, trágica e provavelmente você terá se dado conta de que a curiosidade infantil não ajuda a ser promovido em uma carreira corporativa. Como comentamos no livro, isso ocorre porque os adultos estão programados a odiarem os riscos e evitarem as incertezas. Isso também se aplica a quem trabalha com marketing — apesar de estudos provarem que um nível elevado de criatividade (definido como “nova, divergente e relevante”) é muito mais eficaz na venda de produtos do que ideias seguras e convencionais.
Por isso é importante — e financeiramente vantajoso — desenvolver uma cultura de trabalho que fomente divergências e dissenso, um espaço onde as verdades nunca sejam inconvenientes. Nesse sentido, as perguntas heterodoxas são uma maneira inteligente de desalojar o “efeito espectador” — a paralisia que assola muitas empresas, quando hábitos rígidos se consolidam e o medo de balançar a barca resulta na perda de oportunidades.
Lá em 1970, Marshall McLuhan defendeu o poder decisivo das perguntas em um mundo inundado por dados e conteúdo. “Em um ambiente de informação global, o antigo padrão de educação para encontrar respostas é inútil: estamos cercados por respostas, milhões delas, movendo-se e mudando de forma acelerada”, escreveu o pesquisador. “A sobrevivência e o controle dependerão da capacidade de sondar e questionar de modo e no lugar adequados.”
Fazer perguntas heréticas exige coragem, confiança e uma mente aberta. Elas provavelmente levarão você a um território desconhecido — e geralmente sem bússola. Vão forçar você a enfrentar verdades desconfortáveis. Exigirão a saída da zona de conforto do seu segmento, às vezes tornando você, de forma rápida, especialista em setores até então desconhecidos.
Mas como afirmou o visionário McLuhan, as perguntas certas podem oferecer uma vantagem darwiniana em um cenário comercial competitivo.
Na Carlsberg — uma marca de cerveja industrializada que enfrenta uma onda de cervejarias artesanais independentes –, alguém teve a coragem de perguntar: E se encarássemos o fato de que as pessoas pensam que o nosso produto tem gosto de “mijo rançoso do Satanás”? Eis um projeto franco e público para reconstruir o status premium da marca. E imagine a temeridade de uma campanha de mídia outdoor que só tem efeito se animais urinarem nela. Em The Contagious Commandments dedicamos um capítulo ao valor das perguntas heterodoxas e ao papel que essa mentalidade desempenha na construção de uma cultura de marca corajosa. Um ambiente que estimula pensadores curiosos pode representar desafios como esses…
POR QUE NÃO PODEMOS COBRAR MAIS DOS HOMENS QUE DAS MULHERES?
Em 2019, a marca alemã de alfaiataria masculina Paisley estreou na moda feminina lançando uma moeda, a FEM, que ataca a desigualdade de gênero. A FEM vale 21% mais que o euro — mesma porcentagem da diferença salarial entre homens e mulheres na Alemanha. As notas — projetadas com recursos de segurança especiais para evitar usos indevidos — retratam uma série de figuras femininas icônicas que ajudaram a construir a estrada rumo à igualdade de gênero. Elas estão disponíveis exclusivamente para mulheres. Idealizada pela MAYD, de Hamburgo, a campanha foi um sucesso. Todas as 25 mil notas da FEM foram trocadas em duas semanas — e outros varejistas demonstraram interesse pela moeda. Além disso, todas as peças da coleção feminina e limitada da Paisley foram vendidas.
POR QUE NÃO PODEMOS MOSTRAR SANGUE?
Aquele líquido azul sendo derramado em absorventes era a norma até que a Bodyform fez uma pergunta provocativa: podemos ser a primeira marca de higiene feminina a mostrar sangue de verdade em um anúncio? Criada pela agência londrina Abbott Mead Vickers BBDO, a campanha Blood Normal foi idealizada para quebrar tabus, apresentando um mundo no qual a menstruação é vista como parte normal do dia a dia. O comercial de lançamento apresentava uma mulher interrompendo um jantar para pedir absorventes e um homem comprando o produto em um supermercado. Cenas mostrando sangue real foram exibidas sem edição nos mercados escandinavos — e pixelizadas em territórios onde havia algum tipo de regulação sobre o tema. A mensagem de mulheres “vivendo sem medo” gerou 80 milhões de impressões e seis milhões de visualizações no Reino Unido ao longo das primeiras três semanas em que a campanha esteve no ar. A gerente de marca global da Essity, proprietária da Bodyform, Martina Poulopati, disse à Contagious: “É mais provável que vejamos sangue em cenas de terror, na cultura popular, do que algo tão normal quanto uma mulher falando sobre sua menstruação”.
E SE PARÁSSEMOS DE VENDER NOSSO PRODUTO?
Em um esforço para tornar sua indústria mais sustentável e reconhecer o impacto da produção de carne no meio ambiente, a Greenfield Natural Meat encorajou seus clientes a moderarem o consumo de carne, evitando-a no primeiro dia da semana. A marca trabalhou com a Havas, do Canadá, para lançar a campanha Meatless Mondays no ano passado. Clientes que assinaram o compromisso de vegetarianismo ocasional receberam um cupom de desconto para a compra seguinte. A Greenfield também escondeu a opção de pedir carne pelo seu site nas segundas-feiras.
E SE FECHÁSSEMOS NOSSO PAÍS?
A campanha turística oficial mais contraintuitiva só pode ser esta, da Visit Faroe Islands. O conselho de turismo local chegou à conclusão de que, se o aumento recente no número de visitantes ao arquipélago de 18 ilhas se mantivesse, o país precisaria de ajuda. Com isso em mente, tomou-se a corajosa decisão de fechar o país “para manutenção”, impedindo a entrada de visitantes ao longo de um fim de semana em abril de 2019. Nesse período, muitos dos 49 mil habitantes das Ilhas Faroé trabalharam em projetos de conservação, bem como na reparação de trilhas, construção de mirantes e instalação de sinalizações. Eles foram ajudados por um grupo seleto de turistas voluntários — com consciência ambiental –, recrutados por um vídeo apresentado pelo primeiro-ministro do país. Provando o valor do princípio da escassez identificado pelo psicólogo Robert Cialdini em seu livro Influence, milhares de pessoas se inscreveram para disputar um dos 100 convites disponíveis.
POR QUE UM PACOTE DE BATATINHAS NÃO PODE SER UMA PASSAGEM AÉREA?
A companhia aérea europeia low cost Transavia emergiu dos sites de comparação de preços em 2015, colaborando com a rede de supermercados Carrefour para criar uma série de lanches que se transformavam em passagens aéreas. Esses produtos podem ter um preço mais alto do que itens semelhantes nas prateleiras, mas esse viés de ancoragem inteligente desenvolvido pela agência Les Gaulois, de Paris, usava a estratégia clássica do Blue Ocean — o conceito identificado pelos professores W Chan Kim e Renée Mauborgne, do INSEAD, que diz que as marcas podem ter acesso exclusivo a consumidores quando se distinguem totalmente de qualquer concorrente. A ideia apresentou um pesadelo logístico para a agência, mas transformar um pacote de batatas fritas de 40 dólares em uma passagem só de ida para Barcelona foi uma forma radical de sinalizar aos consumidores o quão fácil é voar com a Transavia.
Jogue as chaves fora /
Estimular uma cultura de perguntas heréticas é uma maneira inteligente de se preparar para o futuro. Na época em que era socialmente aceitável trabalhar no Facebook, a empresa implorou aos funcionários que investigassem as lacunas em seus produtos e serviços, porque “abraçar a mudança não é suficiente”. Em seu Little Red Book, manual distribuído internamente depois que a plataforma atingiu um bilhão de usuários, uma chamada alertava: “Se não criarmos algo que mata o Facebook, outra pessoa o fará.” Isso ecoa um exercício que a Contagious gosta de propor em workshops com clientes, intitulado: “A melhor maneira de proteger sua casa contra ladrões é jogar as chaves fora”.
Essa atitude força você a buscar os pontos fracos e analisar uma determinada estrutura pelo olhar do seu adversário. As perguntas heterodoxas permitem que você faça o mesmo com a sua empresa ou marca. O diretor-executivo do Centro de Liderança do MIT, Hal Gregersen, tem um exercício que ajudará você a recuperar as chaves. Ele costuma falar sobre “questionamento catalítico” e como perguntas podem levar você a contornar soluções óbvias e encontrar caminhos mais criativos.
Hal sugere um exercício denominado question storming, no qual as pessoas que tentam resolver um problema geram pelo menos 50 perguntas sobre o desafio que estão enfrentando. É uma tarefa difícil, mas superar o “não” pode ser desproporcionalmente eficaz se comparado ao brainstorming tradicional, que tende a gerar soluções mais lineares e cômodas. No meio do processo, Hal contou à Fast Company, as pessoas geralmente perdem o fôlego e dizem: “Não tenho mais perguntas. Travei”. Ao que Hal responde: “Siga em frente. É esse passo adiante que às vezes pode levar a algumas das maiores perguntas”. Afinal, não existem perguntas idiotas. E ideias brilhantes muitas vezes vêm de onde você menos espera.
Recentemente, na Contagious Brasil, fizemos um mini-talk sobre o tema para o Instagram do Grupo de Planejamento de São Paulo. Você pode assisti-lo aqui.
Tradução: Ricardo Romanoff