Tempos estranhos: por que a publicidade oscila entre cinismo e sinceridade

A mudança da publicidade do cinismo carregado de ironia para a sinceridade total combina com as forças de Felix Richter como criativo — mas, para o codiretor de criação da Droga5, essa não parece ser uma boa notícia para a sociedade

Contagious Brasil | editorial
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7 min readApr 8, 2021

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Este artigo foi publicado originalmente em inglês no nosso blog global, onde discutimos os desenvolvimentos mais relevantes em marketing e inovação, e reflete o ponto de vista do autor convidado, Felix Richter.

Foto: Nathan Dumlao via Unsplash

Quando comecei meu primeiro trabalho em publicidade no início de 2010, o comercial “The Man Your Man Could Smell Like” da Old Spice tinha acabado de ser lançado no fim de semana do Super Bowl. Era o auge de uma tendência crescente do que poderia ser descrito como publicidade pós-moderna, em que o comercial usa autorreferência, ironia e absurdo para reconhecer o que ele é: um anúncio, uma interrupção do entretenimento do espectador.

Foi uma ótima estratégia para atrair um público cansado de anúncios e uma forma de as marcas parecerem inteligentes, atraentes e, pelo menos uma vez, sinceras.

Skittles, Newcastle Brown Ale, Volvo, Virgin Atlantic — todas elas usaram o "tratamento pós-moderno". Era um formato ótimo e o tipo de trabalho que todo jovem criativo queria ter no currículo. Na maioria das vezes, a abordagem criativa era simples: literalmente, dizer qual era o briefing e depois divertir-se com a situação ou até mesmo tirar sarro do briefing no próprio anúncio.

Eu tinha duas opiniões sobre esse tipo de publicidade. Por um lado, admirava a esperteza e a criatividade franca e sem filtros. Por outro, sabia que não me sairia bem fazendo esse tipo de anúncio. Todo criativo tem uma certa flexibilidade, mas também tem um centro de gravidade, uma voz central ou um tipo de trabalho que vem mais naturalmente para uma pessoa do que para outras. Roteiros engraçados não eram a minha coisa. Uma vez, levei várias peças “engraçadas” para o meu diretor e, quando terminei a apresentação, ele falou: ‘Você acabou de dizer um monte de palavras e depois começou a rir — é isso que é humor na Alemanha?”

Então, trabalhei em marcas que ainda acreditavam que precisavam de um tom mais sério. Mas com os anúncios pós-modernos aclamados mundialmente, parecia que fazer um trabalho sério e inspirador tinha ficado cada vez mais difícil. Em um ambiente de ironia constante, qualquer tentativa de inspirar ou comover as pessoas — ou de ser sincero — parece algo muito artificial ou, no mínimo, ingênuo.

Foto: Abby Savage via Unsplash

Obviamente, o mercado estava — e ainda está — simplesmente ecoando o “zeitgeist”. Por pelo menos uma década, filmes, TV e literatura ofereceram um fluxo constante de conteúdo cínico, autorreferencial e irônico (Clube da Luta, South Park, Family Guy). Culturalmente, foi a era do hipster, que, em vez de defender um conjunto claro de valores, parodiava as subculturas e contraculturas anteriores como punks e beatniks ou, na outra ponta do espectro, os arquétipos ultramasculinos do meio-oeste dos Estados Unidos. Jeans skinny, correntes de elos, camisas xadrez, barbas longas e chapéus da John Deere eram usados ​​para expressar algo diferente do que antes representavam.

Uma boa análise do fenômeno pode ser encontrada em um ensaio de David Foster Wallace, intitulado E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction (“E Unibus Pluram: Televisão e Ficção nos EUA”, em tradução livre). Nele, o autor descreve a cultura pós-televisão como um concurso de papagaios em que aqueles que estão tentando ser genuínos inevitavelmente perdem, apontando que a ironia depende do ridículo da honestidade e que, em um clima de ironia constante, qualquer coisa verdadeiramente sincera será considerada sem graça ou cafona. Lembro de me sentir convencido de que ele estava certo e de que seria impossível romper com esse ciclo de autorreferência e ridículo implícito e que a publicidade, junto com todo o resto da cultura criativa, giraria para sempre em formas mais irônicas, absurdas, e "metas" de si mesma.

Mas eu estava errado.

É difícil dizer exatamente como isso aconteceu, mas em algum momento, nossa cultura criativa deu um giro de 180 graus.

Pode ser que a mecânica das mídias sociais e uma combinação de enormes problemas sociais tenham tornado a atitude pós-moderna inadequada. Talvez os efeitos combinados da crise financeira, do aumento da desigualdade, da ameaça de colapso ambiental, da erosão de verdades baseadas em fatos como base para narrativas universais compartilhadas e, por fim, uma pandemia global, tenham feito com que o humor esperto e autodepreciativo parecesse surdo e trivial.

Ou talvez a atitude pós-moderna tenha pesado a mão e meio que destruído a si mesma.

Embora a ironia e o sarcasmo já tenham sido considerados as formas mais inteligentes de humor, no mundo online enrolar as pessoas e não dizer claramente o que você quer dizer se tornou o jogo dos trolls — usuários do 4chan e similares.

Seja qual for o motivo, o apetite da classe criativa pelo riso afetado desapareceu nos últimos cinco anos. Em vez disso, os esforços sinceros para impulsionar mudanças positivas se tornaram as coisas mais celebradas na arte e na cultura. Alguns destaques da nossa indústria incluem a campanha da Nike pela igualdade, em 2019, e o movimento #OptOutside da REI, bem como uma boa quantidade de projetos da Droga5 relacionados a causas. Uma rápida conferida na lista de vencedores do D&AD Yellow Pencil em 2020 revela o quão difundida essa tendência realmente é: apenas cerca de um quarto deles não tinha uma conexão direta com uma boa causa ou benefício social. O clima cultural passou de uma ironia fria para um moralismo intenso. Agora, os anúncios que oferecem um ponto de vista e defendem as crenças de sua marca, mesmo que isso possivelmente possa alienar uma parte de seus clientes, são frequentemente os vencedores.

Há muito o que se gostar nesse desenvolvimento. Tom de voz e preferências pessoais à parte, parece uma boa ideia querer tentar e fazer coisas legais, principalmente na publicidade, que ocupa uma posição peculiar na máquina capitalista. Também é bom poder falar sinceramente sem medo do ridículo e questionar o “valor nutricional moral” das coisas antes de comprá-las. Reclamar de premiações que recompensam a “intenção moral” de uma comunicação em detrimento de sua “excelência no craft” pareceria mesquinho à luz do progresso real que muitos desses projetos aclamados podem desencadear.

Talvez, o que seja preocupante é o que essa situação na publicidade sugere sobre a sociedade em geral. O sociólogo Niklas Luhmann certa vez apontou que “moralizar é a resposta imunológica febril da sociedade a problemas que ela não consegue, de outra forma, resolver (…) e febre pode ser algo perigoso” — o que parece fazer sentido, considerando o tom das últimas eleições e a contínua e crescente polarização nos Estados Unidos.

E agora? A atitude moralista vai se desfazer, assim como aconteceu com a atitude pós-modernista de outrora? Há um fluxo crescente de vozes apontando que os esforços das marcas para se alinharem a uma causa nobre parecem cada vez mais falsos. É verdade que as realidades complexas de um mundo globalizado e o papel que as marcas internacionais desempenham nele muitas vezes não podem ser conciliados com a mensagem de moralidade e igualdade que seus anúncios querem transmitir. Como resultado, pode ser que vejamos um abandono do marketing baseado em causas e um retorno ao tom autodepreciativo do passado.

Em um jeito mais otimista de ver as coisas, uma série de acontecimentos positivos recentes — uma nova administração política nos Estados Unidos e a perspectiva do fim da pandemia num futuro próximo, junto de uma atenção há muito esperada sobre a desigualdade sistêmica — renovaram a esperança da classe criativa, fazendo com que uma toque de subversão pareça apropriado novamente.

E uma terceira interpretação seria a de que estamos simplesmente tão cansados ​​do fluxo interminável de más notícias que queremos escapar de volta ao humor.

O Super Bowl deste ano, que apresentou muito mais anúncios leves do que sérios e relacionados a causas, pode ser interpretado como uma confirmação de uma ou de todas as três ideias: marcas com medo de serem chamadas de hipócritas estão recuando do marketing de causas e migrando para uma promoção comedida do que quer que seja que estejam vendendo, estamos vendo um retorno genuíno ao humor como um sinal do otimismo crescente ou trata-se de um simples escapismo.

Embora as placas tectônicas das tendências criativas continuem se movendo para frente e para trás sob nossos pés, uma coisa permanece inalterada: o público não se deixa impressionar facilmente. Pelo contrário, a batalha por atenção e confiança continua crescendo. O que significa que só uma coisa parece certa: independentemente do caminho que a publicidade criativa escolher seguir, ela vai ter que ser extremamente envolvente. Do contrário, não terá a menor chance.

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Perfil do time editorial da Contagious Brasil. Publicando reflexões, análises e referências para excelência criativa e estratégica.