27.11

Anna Carolina Rizzon
voltas
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2 min readNov 27, 2020

Diário de quarentena vinte e seis. Dia vinte e sete do onze. Tô com um livro da minha ex que preciso devolver, mas não quero. Tem todo o trabalho de “e aí, como cê tá, andei te ignorando, né, hehehe, nem foi por nada não, é que tá foda, assim, foda, e, sei lá, acho que não faz mais sentido agora, né, eu finalmente me matriculei no curso de cinema, documentário, cê acredita, acho meio absurdo e ao mesmo tempo muito óbvio, e me apaixonei de novo, muito, ambas inacessíveis, ou, sei lá, eu que sou muito acanhada, cuidadosa, medrosa, cê já me falava isso, e, assim, é estranho, porque é péssimo e é ótimo, eu achei que nunca seria feliz como fui ano passado, quando a gente se separou, e eu já falava de uma delas pra você e você achava fofo, achava bonita a fantasia, eu também acho, e você tava apaixonada também, mas, sei lá, cê não fantasiava, ou melhor, fantasiava, mas era uma fantasia cheia de dúvidas e isso me intrigou, enfim, tô com seu livro aqui e não quero estar mais, como fazemos?”. Só que também não quero me desfazer, porque, convenhamos, sacanagem. Eu não gostei do livro. Ainda assim, tô olhando pra ele, inerte, na minha estante, com todos os livros que amo e que são meus, as letras gigantescas do título na lombada, zombeteiras, até: eis-me aqui, apesar de você. O que fazer com as coisas que não posso/quero/tenho como devolver, mas também não quero mais carregar comigo? Letícia diz pra guardar. Como? Debaixo de Szymborska — cujo primeiro volume de sua coletânea de poesias está com minha ex, aliás? Enfurnado com os livros que eu sei que não vou ler? Dentro duma gaveta, pra nem precisar olhar? E outra: é um “guarda pra devolver depois”, quando qualquer coisa que se viva à parte não parecer mais uma confidência?; é um “guarda porque é o tipo de coisa da qual não se desfaz”, os livros dos outros, os outros que já foram tão parte da sua vida que os pertences se misturam?; é um “guarda como você guarda as sopas que sabe que não vai tomar”, porque é correto?; ou é um “guarda que agora é seu também”, nem que seja pra revisitar com a ternura que reservamos ao que temos conosco por acaso, ou acidente? Enquanto não sei, espero que ela nem se lembre dele.

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