a decisão de não falar

Mariana Martins Vieira
Contexto Poético
Published in
2 min readFeb 17, 2020

são coisas tão amargas e pontiagudas que tenho guardado em meu esôfago que tenho medo de vomitar ao falar. são pensamentos tão desgastantes que jogá-los fora é, ainda assim, desfazer-me. são situações tão delicadas, tão desesperadoras, que fugir é isolar-me num círculo de fogo. é tão assim que não consigo usar nada mais que orações subordinadas adjetivas explicativas para descrever. são muitos “que” e muitos “assim” para me referir ao que não consigo esquecer. a dor é tão grande que virou o véu de uma fantasia. e o escape, o tão sonhado escape, uma seda amarrada em meu pescoço. e estou sem ar.

e não vou terminar esse texto pela beleza poética inusitada do meu não-final. há coisas das quais preciso falar que a beleza jamais comportaria. inclusive, minha pouca beleza tem a finalidade de não ser limite para meu sentir. e por isso escrevo um texto sem limites. o véu da dor me permite mergulhar. mas já estou a fugir.

do que preciso falar? da sensação de insuficiência? ou da sensação de total falta de controle da vida? ou da minha zerada vontade de ter algum controle? ou da desistência de viver porque a dor já tomou tudo? ou da rejeição de mim do meu corpo e do meu corpo de mim? ou do desconforto em qualquer lugar porque antes há um desconforto em assim existir? ou do medo de continuar mesmo que daí venha toda a força da minha existência? ou da coragem em permanecer mesmo quando já se foi? ou da descoberta de que se doar quando não se tem nada é a maior cura possível?

a solidão é extrema porque não tenho sequer a mim. porém, mergulhando na ilusão do véu da dor, direi muitas vezes que tenho a mim. e que tenho a minha dor. mas não quero mais possuir nada, nem a mim. e esse tem sido o problema. eis que tenho passeado por uma corda bamba que separa duas várzeas da minha alma: o ser e o não ser. o que serei, ou não serei, depende do meu cair.

tenho vergonha de compartilhar a exaltação da minha dor, porque sempre rotulo como drama de licença poética e, depois que passa a necessidade afobada de escrever, afirmo que isso não sou eu. a verdade é que nada sou eu. tenho vergonha de mais uma vez romantizar a dor com a facilidade poética que minhas palavras saem de mim, porque reforça a necessidade dela no meu corpo. o problema é que até meu mísero oi é um pouco poético, da poesia não fujo. tenho vergonha de dilacerar minhas entranhas e depois expor como obra de arte. como se fosse bonito se sentir assim. felizmente ou infelizmente, é a missão que me foi dada pra essa vida: sentir e traduzir, sentir e traduzir. não importa qual sentir, não importa a feiúra da dor: preciso traduzi-la. e muito astuto foi quem decidiu os pormenores disso, colocando-me para ter o português brasileiro como língua mãe. com a riqueza dele posso traduzir o mais minúsculo e invisível sentir. mas ainda não cheguei lá. ainda tenho decidido não falar.

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