manifesto de iniciação à idade adulta

Mariana Martins Vieira
Contexto Poético
Published in
7 min readFeb 26, 2020

tenho escolhido dormir para passar o tempo. mesmo que eu tenha planejado fazer coisas legais nessas férias, tenho tido que fugir da realidade dos pensamentos – que nunca são reais – pelo único meio ainda saudável: o sono. mas às vezes nem ele me permite fugir. fugir, que palavra horrorosa. não combina comigo. mas tem sido até um pouco parceira.

eu ficava feliz em fazer muitas coisas. aprender novas línguas, descobrir um álbum novo, desenvolver uma nova habilidade, aprender um assunto novo… não é que não fique mais. só tenho dado um tempo dessa alegria. tenho experimentado, num estágio avançado do que um dia preparei pra mim, a alegria para o outro. hoje o que me enche de serotonina é qualquer boa notícia sobre o outro, mesmo que esse seja um alguém que pouco conheço. é uma alegria diferente, confesso. uma que não consigo barrar a expressão. derreto em sorrisos se você me contar que adotou um gatinho. e é tão natural, tão eu, tão sem esforço, que não consigo evitar. tenho me tornado mais criança mesmo ainda nem sendo adulta.

outra coisa engraçada é que há muito tempo parei de ter ambições pra mim. se me perguntam se quero uma casa digo ah, quero. claro que sei o quanto é nobre lutar por uma casa, o bem onde se concentram nossos bens e nossas virtudes na forma de alimento e amor, na forma de família. claro que quero, e muito, nesse sentido nobre. mas, antes disso, meu olho brilha muito quando digo que antes quero fazer muita coisa nesse mundo. quero lutar por muita coisa, – não com militância de internet que tem mais ego do que altruísmo, – quero lutar com minhas garrinhas no palco do mundo. e quero lutar pelas pessoas em prol de um ideal, não para um ideal me esquecendo das pessoas. e quero servir. quero servir ao próximo. não como a heroína. como a também necessitada. minhas ambições são para o mundo, para os outros, para o todo. e não é burrice tê-las, assim, no mundo cruel e devastador de hoje. mas digo que é coragem.

as ambições restantes que posso chamar de minhas, e somente minhas, são de uma delicadeza quase infantil. quero continuar consumindo arte como bebo água. tudo que é arte vai morar no meu corpo. se tenho um lado do meu ser dedicado ao outro, tenho um dedicado à arte. contemplar arte é equivalente a contemplar o outro (porque todo outro é uma arte): me enche de serotonina. além disso, quero contemplar o mundo. aquele típico sonho de todo mundo nesse mundo; conhecer o mundo. é que realmente não faz sentido ter uma casa e não conhecer todos os quartos dela. (por isso donos de mansões costumam não ser muito completos por dentro.) é uma ambição grande pra quem vem da classe média, eu sei. ainda mais para quem, como eu, vai continuar nela. com orgulho. mas não costumo desistir das minhas poucas ambições: carrego-as comigo pela vida toda para um dia me deparar com o feito realizado não sei por quem, não sei como. provavelmente por mim, que estava tão ocupada servindo que não percebi a oportunidade chegar.

utópico né? muitos vão me dizer que é utópico e bobo. “coitada, ela é jovem, não viu ainda o que o mundo faz com as pessoas”. concordo e vou além, sou criança. e é com grandioso orgulho que vos digo isso. crianças têm uma resiliência incomparável. persistência, nem se fala. fluidez. muuuuita neuroplasticidade. alegria genuína. falta de ego (não o ego egoístico, mas o ego do freud, aquele que dita as regras sociais.). naturalidade. fantasia.

coisas que perseguimos no mundo adulto, crianças têm. coisas que nem sabemos precisar no mundo adulto, crianças têm. e eu, sendo obrigada pelo tempo a aterrissar no mundo adulto, carrego à força meu eu criança para me fazer sobreviver. e viver, que é o clichê mais importante. tenho entendido a preciosidade das crianças de forma tão clara e intensa que desejo muitas vezes ser pediatra, para proteger as crianças pelo menos das dores da carne, ser a guardiã. porque elas são guardiãs de tanta coisa, tantas virtudes. e os adultos parecem que esquecem as virtudes quando aterrissam e se deparam com o capitalismo depravando tudo, até eles. não os julgo. é mesmo triste e desolador. toda década dizem que as crianças são o futuro da nação, mas quando elas chegam ao futuro, fazem questão de fazê-las esquecer que já foram crianças e que já foram o futuro da nação. alguns esquecem que estão no futuro. outros esquecem até o que é nação, coisa que toda criança por natureza sabe.

no mundo adulto, a fantasia é obrigatoriamente trocada pela alienação. vejo sempre gente pedindo, procurando, implorando pela alienação. mas a alienação não é capaz de permitir sonhar novamente, é só uma anestesia para o tanto que já se viveu e se sofreu e se viu sofrer. a alienação é a mordaça. já a naturalidade é trocada pela etiqueta social. meu deus, se tem uma coisa idiota, é isso. não estou falando sobre ser socialmente proibido arrotar numa mesa de restaurante. estou falando sobre todos termos que nos comportar como bonequinhos. e até mesmo quando se foge aos padrões, ainda se tem um padrão dos despadronizados pra seguir, pois como a sociedade não é mais social e sim capital, é fácil produzir muitos bonequinhos. e é lucrativo ter certa variedade.

enfim, dando sequência: desenvolvemos ego com o passar dos anos. é um processo psicologicamente natural, não culparei nosso cérebro por algo que ele, em sua prisão biológica, não pode evitar. mas às vezes esse ego freudiano nos assola. porque são tantas normas sociais, e tão dolorosa a exclusão social (não a capital, porque essa não existe mesmo no cerne da mais ínfima pobreza, mesmo para o adjetivo paupérrimo, porque até a pobreza pode ser capitalizada), que o ego fica louco, tremendo de medo, infla de temor para conseguir validar tudo. nisso, perdemos até o nosso id.

outra coisa que é substituída é a alegria genuína. no mundo adulto, é mais comum a alegria comprada. muito interessante essa, pois é o mais próximo que se consegue chegar da fantasia. mas o legal é que pra muita gente, muitas vezes, a alegria genuína não é completamente substituída, pois ô virtudinha forte, hein?! graças a deus. por isso ela é a porta de retorno para o mundo infantil.

a neuroplasticidade não é substituída, é biológica e naturalmente reduzida. porém, claro, muitos comportamentos do mundo adulto contribuem para que ela se mantenha reduzindo e não evolua, o que é sim, neurocientificamente falando, possível, dentro dos limites biológicos. contudo, a neutralização da neuroplasticidade é uma das grandes estratégias de transformação gradativa de crianças, pessoas verdadeiras, em corpos dóceis.

a fluidez, obviamente, é destruída pelos processos anteriores. não em todas as pessoas, não completamente. graças. a persistência toma caminhos complexos: ora obsessão, ora cegueira, ora ilusão. ela muitas vezes é o fator agregador de rebanho. mas, em seu estado original, também não consegue ser destruída. felizmente, vejo muita gente persistindo por coisas nobres. e isso me enche de muita serotonina.

a resiliência é que é uma coisa engraçada. os adultos redescobriram essa palavra recentemente e, no ápice de profundidade e reflexão que alguns conseguem chegar, muuuuitas tatuagens foram feitas. não se sinta ofendido se você tem uma tatuagem com resiliência. parabenizo-lhe. mas é que essa palavra tem um significado tão profundo, do qual deriva a nossa própria vida, que para ela deveria ser tatuado um texto. nossas vidas são a própria expressão da resiliência. cada dia nosso é uma tatuagem no tempo da qual a tinta nunca é sangue, nunca é suor: é resiliência. por isso os dias de criança são mais marcantes, por isso os dias de criança são mais felizes. e quando ganhamos o complexo de adulto, esquecemos disso. esquecemos a mais profunda das filosofias da vida. esquecemos que a vida é filosofia e que ter resiliência é mais que resistir, é mais que superar. é inspirar tempo e expirar evolução. e essa definição nunca dão de graça nos dicionários.

esquecemos de muita coisa nessa passagem. mas não precisamos esquecer. acima de tudo, não precisamos fugir. não precisamos fugir de quem nós somos. não precisamos nos amortecer no leito das coisas compradas, das ideologias artificiais, da arte a que falta arte, do mundo ao qual falta mundo. não precisamos nos anestesiar de sentir a dor do outro. não precisamos aceitar o que o mundo faz conosco, ele é nosso. antes, não podemos aceitar o que nós fazemos conosco. porque nós somos o mundo. precisamos lembrar e não fugir disso. precisamos não nos amortecer, mas nos incomodar. precisamos curar, não anestesiar. precisamos sentir e não chorar. sobretudo, ter a coragem de sermos crianças. e não interpretar tolamente que crianças são tolas, pois nenhuma é. nós é que nos tornamos tolos demais para perceber a sabedoria. por fim, direi ousadamente que as crianças são o futuro da nação, mas que somos todos crianças e que o futuro nunca chega porque nada existe além do presente. e é um presente presenciar o presente como se fosse um presente. e é.

obrigada aos professores de filosofia e sociologia que me guiaram até aqui e me encheram de virtude. aristóteles, obrigada por me ensinar o que é virtude. platão, obrigada por me mostrar o mundo das ideias e por me conduzir para fora da caverna. durkheim, obrigada por demonstrar o que é coerção social. debord, obrigada por explicar a sociedade do espetáculo. bauman, obrigada por lembrar que tudo é líquido.

um dia será tudo gasoso, mas, por enquanto, prossigo solidificando meu conhecimento. não agora. falei demais para quem tinha decidido no silêncio repousar. agora vou voltar a dormir. mas, dormir na caverna, nunca mais.

e para aqueles que certamente vão ter piedade e pena da minha juventude infantilizada, digo: talvez mais tarde, já bem adulta, no auge da minha alienação dócil amortecida, eu volte para dizer o quanto fui utópica e boba. e vocês, tão mais anestesiados que eu, com certeza estarão aqui para dizer “eu avisei”. mas, talvez eu volte, de uma utopia não tão utópica, para dizer: sim. ainda sou criança. e sou feliz.

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