A namorada de Norman Bates

Caio Araújo
Continuistas
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4 min readJun 16, 2015

Um batom vermelho toca os lábios carnudos Dela, que se prepara para encontrar o namorado. No espelho, através dos óculos novos e estilosos, ela pisca para si mesma, recuperando a autoconfiança, antes de dar uma borrifada de perfume e sair, batendo os saltos com firmeza sobre o assoalho.

Ela confere, por duas vezes, se a porta está trancada, coloca os fones de ouvidos e caminha pelo corredor branco, coberto por tacos que rangem.

O elevador demora a chegar ao décimo quinto andar. Quando as portas se abrem, não ver ninguém à sua frente é quase como uma saudação dos elevadores de Douglas Adams. Ela ri e responde em sua mente — Boa noite, querido!

Enquanto desce, Ela olha para todos os lados do elevador e os vê se aproximando. Os solavancos sentidos a cada andar que a caixa de metal atravessa fazem com que ela sinta o gosto do tempero da comida mexicana comida no almoço.

Na rua, a chuva já é forte o suficiente para que ela procure pela sombrinha no espaço infinito existente em sua bolsa. Depois de alguns segundos tateando celular, maquiagem, escova de cabelo, ela encontra o acessório que procurava.

A água suja já corre pela calçada. Nessas condições, subir a Bahia não parece tão glamoroso quanto conta a frase de Rômulo Paes.

Os Smiths acompanham-na durante a caminhada, enquanto ela pensa se conseguirá sobreviver por, ao menos, 500 dias com o homem que ninguém conhece e do qual muito pouco se sabe.

Os amigos perguntam. Ela não sabe explicar e sempre paga um sundae de chocolate para que mudem de assunto.

São onze da noite e a Praça já está muito escura. Os corredores e caminhantes encerraram as atividades e os casais começam a ocupar os bancos, ocultos sob as árvores. Ela está no mesmo lugar no qual, há um ano, espera por Ele.

Ele chega pelo lado mais escuro da Praça. Ela não se assusta porque sabe exatamente para onde olhar.

Oi. — Ela recebe a saudação com um beijo e sente seu rosto molhado pela chuva se anestesiar.

Ela se embriaga de felicidade. Nada nem ninguém seria capaz de compreender, em toda sua plenitude, a relação deles e, naquele instante, Ela estava no paraíso.

A viagem ao paraíso é interrompida pelo telefone Dele, que atende com um sonoro — Ei, mãe.

Ele se afasta e tem a camiseta tomada pela água. Ela solta o corpo sobre o banco, desapontada, enquanto uma poça se forma sob seus pés.

Ele desliga o telefone.

O que ela queria? — Ela pergunta. — Nada! — Ele responde.

Os dois caminham sob a chuva, que engrossa a cada passo.

Tá chovendo muito. Vamos lá pra casa? — Ela se arrisca a perguntar. — — Ele a deixa sem resposta, mas segue em direção da casa Dela.

Ela gira a maçaneta duas vezes antes de abrir a porta. Ele entra. Suas roupas pingam água sobre o assoalho. Ela pega duas toalhas para se secarem e vai para a cozinha. Lá, abre uma garrafa de vinho barato, a última do estoque.

Ele quer comer. Abre a geladeira e encontra um frango congelado. Com a faca de açougueiro, Ele esfaqueia a ave com satisfação. O coração Dele dispara. O frio da carne queima suas mãos, mas ele continua e, facada após facada, a pele é esmagada e os ossos retirados. Logo, restam apenas pequenos cubos de carne, que ele tempera com sal e joga na panela molhada de azeite.

Da janela, Ela observa a chuva cair, enquanto toma um gole de vinho. Ele coloca sal nas feridas de suas mãos.

Ela bebe. Uma taça já é suficiente para ruborizar sua pele e aquecer seu corpo. Ele se excita ao comer os pedaços do frango despedaçado.

Eles vão para a cama. O coração Dela dispara. Na tevê, “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” é exibido. Enquanto Joel deleta Clementine de suas memórias, Eles transam. Ela vê elefantes coloridos. Ele goza. O telefone Dele toca. Ele sai do quarto, nu, e atende.

Ele desliga. Ela pergunta.

A sua mãe existe de verdade?Existe, e eu tenho que ir. — responde Ele, vestindo-se. — Ei! São quatro da manhã. — Ela retruca. — São quatro da manhã e eu tenho que ir. — Ele fala, resoluto.

Ele sai. Ela chora, desejando sofrer muito, para não ser capaz de amá-lo.

O Sol está nascendo. Ele chega em casa, abre as cortinas e chama pela Mãe. Ele entra no quarto e a vê, sentada na cadeira de balanço. Ele toca carinhosamente o tecido frio de seu corpo, beija sua testa e vai dormir.

FIM

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