Parte 5: o pária social

Caio Araújo
Continuistas
Published in
6 min readFeb 5, 2016

Representação do pária no cinema

A concepção dos psicopatas no cinema moderno é muito mais simbólica que física. Modesto (2008) aponta que a multiplicidade de planos de filmagem, aliada ao roteiro, livre de entraves culturais, transformaram-nos em seres palpáveis e assustadores. O elemento destoante surge, então, de um ambiente propício para seu bom desenvolvimento como cidadão. Os monstros reais são objeto de estudo porque, no início da narrativa, não têm traumas sociais aparentes capazes de transformá-los em criminosos. Os personagens são desenvolvidos a partir de indivíduos comuns, física e psicologicamente.

Com a inserção de personagens com características vis, personificando o indivíduo destoante da sociedade, os conflitos ganharam em complexidade e enriqueceram a narrativa. Contudo, embora a simples presença física do anti-herói na trama signifique uma maior representação da sociedade na história. A forma convencional de atuação não conseguia transmitir características psicológicas relevantes com fidelidade condizente à subjetividade do imaginário dos personagens, é o que afirma Rosenfeld (2009). Para tentar reparar essa lacuna, os atores adotaram técnicas teatrais de interpretação. Instituiu-se, a partir dos anos 1970, um modelo de atuação que prezava pela participação mais ativa e física em cena. A Actors Studio Drama School é um exemplo de escola criada para atender a esse novo grupo de atores.

Segundo Frome (2001) a Actors Studio Drama School foi fundada em 1974, por nomes como Elia Kazan, Robert Lewis e Cheryl Crawford. Busca desenvolver o sistema de atuação criado por Stanislavski, a partir de um programa de três anos. Esse modelo consiste na transformação, em cena, de características psicológicas dos personagens, podendo ser utilizadas overactings e a dramatização é perceptivelmente mais intensa. Durante esse curso, os alunos aprendem a atuar, escrever e dirigir.

A cada década os personagens se tornaram mais complexos, evoluíram com o ator. Scorsese (2004) aponta que suas características psicológicas foram aprofundadas, e a concepção de bom e mau simplesmente foi transformada. Os conflitos dos personagens mudam de acordo com a situação social, política e econômica do período de realização do filme.

Reafirmando essa concepção de lugar de realização, Scorsese (2004) exemplifica que, em meados do século XX, a “fronteira americana” foi amplamente utilizada como uma representação da “terra sem lei”. A motivação era simples: um buscava eliminar o outro. A expansão para o oeste serviu como gatilho para histórias de vingança, vaidade e crueldade. Houve, então, no cinema de Hollywood, uma primeira mistura de características de heróis e vilões.

Scorsese (2004) explica que, nos anos 1950, a crítica e a distorção do herói nos westerns refletiam a sociedade da época, e não o modo de pensar do Velho Oeste. Os Imperdoáveis (1992), por exemplo, é ambientado em 1880, mas apresenta um retrato da mentalidade contemporânea, da morte sem glamour que caracteriza a sociedade dos anos 1990.

A partir do final da década de 1960, as características dos personagens ganharam uma nova abordagem no cinema. Biskind (2009) afirma que os atores da época passaram a representar indivíduos comuns, de fácil identificação do público. Os diretores conquistaram o direito de inserir suas próprias concepções nos filmes e acabaram com o paradigma do modelo de perfeição legendária dos protagonistas. Para o modelo de cinema atual, essa relação entre personagem e espectador é necessária, visto que o público busca se identificar com o ator, perceber a sociedade à qual ele pertence nas salas de exibição. Os personagens ganharam complexidade e suas atitudes tornaram-se um reflexo de sua cultura. Os atores representavam figuras cotidianas. Não havia mais olimpianos em Hollywood.

O público vê a narrativa como um retrato do real. Partindo desse pressuposto, o diretor vê a necessidade de quebrar a concepção do senso comum e confundir o espectador, para que ele mesmo perceba as falhas na sua cultura social. Modesto (2008) explica que esses indivíduos analisados pelo público representam uma fatia de sua sociedade, são um exemplar de muitos outros que coabitam no mesmo meio urbano. Visto que a população é, atualmente, menos suscetível a histórias de terror, foram criados personagens-modelo, com a função de alertar seus conterrâneos sobre falhas no sistema.

Até meados da década de 1960, as diferenças que separavam os personagens que representavam a lei e os fora-da-lei eram maiores do que se tornaram. Os heróis não necessariamente são personagens idôneos. Biskind (2009) comenta que a última grande geração de diretores, a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’Roll, teve seus méritos por voltar a retratar, mesmo em ficções, a sociedade palpável ao público, sem adotar postura documentarista. Esse perfil fora visto pela última vez em Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Esse retorno também pode ser efetivado pelo surgimento das referências europeias.

Para Modesto (2008), há um processo de identificação do público com o criminoso. A formação acadêmica, o carisma e os bons antecedentes se misturam a seus princípios, metodos e motivações criminosas. O vilão se transforma em uma espécie de justiceiro. A ausência de racionalidade dá-lhe características de anti-herói, que facilitam a crítica social e identificação do espectador.

Para melhor trabalhar o terror no espectador, o roteirista se apropria de características monstruosas, como o canibalismo, e as insere em seu personagem. Modesto (2008) afirma que a fragilidade do corpo humano sempre foi tema de terrores e colabora na concepção da realidade buscada pelos cineastas.

O impacto que essas obras acarretaram ao público são extremos e imensuráveis. Um exemplo é o atentado ao democrata Ronald Reagan por um cidadão que, supostamente, teria acabado de assistir ao filme Taxi Driver (1976). A construção dos protagonistas e o retrato da realidade apresentados em cena justificam a mais fácil assimilação dos personagens e colocação e aplicação, na sociedade, das ideias encenadas nos filmes.

Modesto (2008) argumenta que esses personagens têm eloquência. O real protagonista/herói perde destaque e suas características negativas aproximam-no do antagonista. A falta de racionalidade e o desrespeito às convenções sociais, que separariam ambos, são colocados sobre uma linha muito tênue. Por outro lado, a lógica e possíveis experiências psicológicas violentas reveladas durante a narrativa humanizam o criminoso e o absolvem perante a sociedade, independente do desfecho do filme.

A ilegalidade sempre esteve presente no cinema e, assim como os westerns permitiam os cineastas trabalharem-na, os filmes de gângsteres mostraram as vitimas de um ambiente empobrecido até a década de 1920. Scorsese (2004) justifica que esse perfil foi sendo transformado e se tornou um retrato da violência urbana crescente dos anos 1930. No final da década, os mafiosos eram uma representação do sonho americano. As gangues passaram a fazer parte do cinema, abarcando outros gêneros com elas. Enquanto alguns filmes traçavam a sociedade como um sistema corrupto, após a Segunda Guerra Mundial, o gângster se tornou um homem de negócios, organizando estados paralelos à ordem socioeconômica vigente.

Modesto (2008) ressalta que, a partir do final da década de 1990, seres monstruosos, vampiros e psicopatas ressurgiram no cinema norte americano. Esse fenômeno deu-se pela falta de interesse do público por figuras cujas características representem uma humanidade incorruptível. Os psicopatas são colocados nessa lista de aberrações, principalmente, por suas características psicológicas e inconstância de comportamento, que os tornam tão ou mais assustadores que a repulsa física causada ao ver seres asquerosos.

No cinema, Modesto (2008) argumenta que a presença dos psicopatas interfere na forma como o público capta a narrativa. O que se espera é compreender a lógica do assassino ou do criminoso. A minúcia e peculiaridade com a qual são cometidos os crimes tornam-os peças de um quebra-cabeça, que o público busca montar para descobrir o que levou a tal ato. O personagem, no caso, é elemento de estudo, visto que seu perfil psicológico e sua formação cultural constantemente carregam em si uma crítica social.

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