Parte 10: análise — Taxi Driver (1976)

Caio Araújo
Continuistas
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7 min readJun 17, 2017

Taxi Driver é um épico que conta a história de Travis Bickle. Seu emprego, como taxista, funciona como elemento de conexão para a apresentação do retrato da Nova York degenerada e violenta dos anos 1970. O personagem de Robert De Niro apenas quer fazer parte da mesma sociedade que o ignora. Quando percebe que não consegue sair do meio de homens excluídos, cuja rotina consiste em cinemas pornô e noites de trabalho estafante. A jornada de Bickle é um retrato da pessoa vazia, sem perspectiva em um meio também sem perspectiva.

Uma prostituta de treze anos e um homem sem perspectiva. Essa é a definição dos protagonistas de Taxi Driver. Iris (Jodie Foster) e Travis Bickle (Robert De Niro) são retratos da sociedade corrompida dos anos 1970. Após o assassinato de John Kennedy, em 1963, Malcolm X, em 1965, e Martin Luther King, em 1968, as motivações revolucionárias passaram a ser reprimidas com violência. LoBrutto (2008) afirma que essa série de ações criminosas da década geraram reação semelhante da população, estabelecendo um espírito controverso da sociedade da década seguinte.

Martin Scorsese capta a sensação da Nova York onde a marginalidade é vista nas ruas. Sua direção utiliza de artifícios como os planos distantes e a pouca iluminação para retratar a personalidade oprimida e alienada dos cidadãos da época. Também se apropria dos planos fechados do cinema noir, embora esses transcendam a outro patamar, analisando psicologicamente a testemunha ocular de uma sociedade corrompida.

Cortes de cenas que colaboram na caracterização de Travis Bickle.

O roteiro, escrito por Paul Schrader, cria um ambiente que retrata a sociedade à qual Bickle não quer pertencer. A trilha de Bernard Herrmann, compositor dos filmes de Alfred Hitchcock, auxilia nessa introjeção do espectador no personagem de De Niro. Bickle tem o mesmo perfil existencialista do “Homem Subterrâneo”, criado por Dostoiévski. Um ser sem perspectiva, cujo discurso é forjado pela sociedade, um personagem que busca agir, mas não sabe como.

O homem branco foi colocado no centro da narrativa. Ebert (2008) explica que Nova York é habitada por homens que, assim como Travis, não conseguem ter as mulheres que desejam. Seres decrépitos, corrompidos pela guerra, que sofrem com a readaptação ao ambiente urbano. Esses homens vão atrás de prostitutas e filmes pornô. Veem isso como uma atitude cotidiana e aceitável. Travis vê o ambiente da Rua 42 como condenável, mas é atraído para lá. Todos são iguais aos demais. A rejeição de Bickle está presente, por mais que toda a narrativa busque o distanciamento, desde as características imagéticas à concepção psicológica do personagem.

LoBrutto (2008) aponta que todos os movimentos em prol da liberdade sexual e dos direitos iguais alienaram os homens brancos heterossexuais, que passaram, a partir daí, a utilizar de métodos violentos para reafirmar sua posição de dominação social. Visto que os soldados que retornavam da Guerra do Vietnã eram tratados como assassinos, passaram a corresponder a essa alcunha. Um exemplo acontece quando Bickle convida Betsy (Cybill Shepherd) para sair. Sua agressividade é explicitada a partir de seu comportamento.

Cenas entre Travis e Betsy. A crítica de Taxi Driver está inserida também nas atitudes de De Niro.

LoBrutto (2008) argumenta que os cinemas pornô cresceram e o mercado do sexo deu incentivo à prostituição. A música focava no espírito demoníaco e na ilegalidade. A personagem de Jodie Foster retrata um perfil de pessoa que, independentemente da idade, fica à mercê da sociedade. Essa foi, inclusive, a primeira vez que a atriz teve que criar um personagem que realmente exigiu uma interpretação, um personagem que fugisse da concepção de atores mirins. Bickle via Iris como uma alternativa de agir e fazer justiça, virar um herói local. Contudo, seu despreparo leva a uma sequência de tensão impressionante. Uma troca de tiros com dois marginais é tão eficaz cinematograficamente quanto cenas de ação de blockbusters.

Iris age como uma profissional do sexo.

Taxi Driver é um mergulho no submundo de Nova York. A densidade da trama parte de uma história simples, de amor não correspondido, que motiva ações de vingança/justiça. Bickle estava disposto a agir, seja para o bem ou para o mal. Em uma época de depressão nos EUA, Robert De Niro consegue retratar as características de uma pessoa vazia, sem motivação, cuja rotina estafante se baseava em dirigir taxis e frequentar cinemas pornô. É um excluído que busca vingança por motivos políticos e afetivos, busca ação e a limpeza da cidade.

Embora referenciado por Dostoiévski, há uma influência direta do personagem Travis Bickle em outras narrativas. O roteirista de histórias em quadrinhos Alan Moore afirma ter criado um de seus “Watchmen”, o controverso Rorschach, a partir da interpretação de De Niro. Um personagem do mundo real, que critica a sociedade, a escória do submundo de Nova York.

A visão filosófica de Taxi Driver é a visão do justiceiro. O filme é uma espécie de justificativa para as ações de Bickle. O clima de redenção é colocado em evidência em detrimento do ponto de vista ético. Conard (2007) aponta que a concepção de Scorsese foi de contrapor o slogan da campanha do senador Palantine “Nós somos o povo”, retratando a verdadeira situação precária da população norte americana. A película retrata a história de um personagem que permeia a concepção e estruturação social. É um pária. Indivíduo não integrante da sociedade, um anti-herói cuja intenção é punir e eliminar a cidade da escória de suas ruas.

O mundo de Bickle não é, essencialmente, comum. Toda a ação do filme parte exatamente do princípio contrário, de sua repulsa por aquela atmosfera desagradável de perversão e criminalidade. O personagem de Robert De Niro vive em um paradoxo, ele não identifica a periferia de Nova York como um ambiente sadio, no entanto, é fruto daquele meio. Scorsese busca traduzir, em cada plano, a partir da sonorização e fotografia, as ruas fétidas e escuras tão detestadas por Bickle.

Travis Bickle não é chamado porque não é referência ou exemplo de cidadão. Por esse motivo, é ele quem busca incessantemente um objetivo. Ele quer fazer justiça com as próprias mãos, mesmo que seja limpando as ruas de sua escória, eliminando candidatos liberais, promovendo o conservadorismo, ou protegendo crianças indefesas. O personagem buscava apenas uma motivação que servisse de contraponto à sua rotina monótona.

Bickle e Sport representam a violência da sociedade norte americana.

Como não há chamado, e sim uma busca, o personagem não foge. A dúvida que concerne a Bickle é se ele corromperá apenas as regras éticas ou os princípios éticos e morais. Se De Niro representará um ser cuja ideologia sobrepõe-se à sociedade ou se ele buscará simplesmente proteger cidadãos corrompidos, evitando que o futuro lhes seja um pouco pior, representando, assim, o exemplo de, um herói local.

Scorsese constrói uma narrativa complexa a partir de um núcleo simples. Os poucos personagens são muito explorados e sua presença e constituição podem ser percebidos em Taxi Driver. Dessa forma, a trama se delineia sem que os personagens percebam mentores ou outras referências no seu processo de construção psicológica. A única que tem uma espécie de mentor é Iris. Sport (Harvey Keitel) tem um comportamento ambíguo de falsa proteção à personagem de Jodie Foster.

As provações são mais de caráter psicológico do que baseadas em ações. O roteirista Paul Schrader apresenta as dificuldades na forma de opções para Bickle. O que se percebe desde o início de Taxi Driver é que ele iria agir de alguma forma. A ação final e os momentos de tensão foram inseridos pontualmente no filme. Depois da escolha feita pelo personagem, ele vai de encontro aos confrontos.

Bickle, mesmo desrespeitando várias leis, é visto como um herói local.

A recompensa também não vem na forma prevista para o herói de Campbell, assim como toda a jornada de Scorsese, as motivações são sutis e partem da do subconsciente dos personagens. A satisfação de tarefa cumprida está no fato de Bickle não ser mais um indivíduo comum, mas um ser largado em uma sociedade vil. De Niro representa um homem comum, cuja recompensa é a própria salvação.

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