Parte 11: análise — Touro Indomável (1980)

Caio Araújo
Continuistas
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6 min readJun 24, 2017

LoBrutto (2008) aponta que a geração dos anos 1970, nos Estados Unidos, presenciou uma série de fatos históricos que influenciaram diretamente nessa geração e transformaram a história do país. Touro Indomável representa a redenção de Scorsese, e é, também um ressurgimento de perspectiva da sociedade norte americana. Quando o diretor se livrou das drogas e, auxiliado por Robert De Niro, pode reafirmar seu trabalho. Contudo, o aval da United Artists para o início das gravações apenas aconteceu devido ao sucesso de crítica e publico de Rocky: um lutador (1976) que, ao contrário de Taxi Driver, representava a superação do cidadão americano sobre todas as adversidades.

O filme trata a história real do pugilista Jake LaMotta, que, conforme aponta Ebert (2008), saiu das favelas do Bronx para se tornar campeão de pesos-médios, ganhou e gastou milhões de dólares e acabou cumprindo uma temporada na prisão por corrupção de menores. Esse personagem é apenas mais um dos muitos que acompanham as experiências pessoais do diretor, isso explica as interpretações extremamente emocionais.

Sequência que mostra a conquista do título mundial dos pesos-médios por LaMotta.

Ebert (2008) aponta que Scorsese e Paul Schrader são aficcionados por histórias verídicas de personagens violentos e cheios de culpa. O autor explica que, mesmo sem extravasar os sentimentos de La Motta, percebe-se a sua complexidade e cada ação é posta no sentido de caracterizar o pugilista psicologicamente. O personagem é um ícone da sociedade americana que estava se restabelecendo após a Guerra do Vietnã. Livres da iminência de um confronto com a União Soviética, os cidadãos puderam se concentrar na reordenação de uma estrutura familiar.

Tomadas e planos que colaboram na composição psicológica dos personagens.

Casillo (2006) ainda afirma que, em toda a obra de Scorsese, existe um vasto cabedal retirado da cultura católica italiana. Scorsese também se referencia na máfia italiana, que se estabeleceu nos Estados Unidos na virada do século XIX para o século XX. Touro Indomável se apropria desse conceito na criação de um contexto sólido para o desenvolvimento da trama. Outros aspectos que colaboram na esquematização da narrativa são elementos técnicos como a edição, que alterna entre momentos muito dinâmicos, durante as cenas de luta, e muito lentos e com enquadramentos simples, nas tomadas que retratam a vida íntima de LaMotta. A fotografia de Michael Chapman também conseguiu, mesmo em um filme preto e branco, caracterizar com fidelidade a história, desde elementos simples, como as cores do sangue e das luvas passando pelos flashes da tomada inicial, até o alto contraste da cena interpretada por De Niro na prisão.

É um filme sobre força bruta e, segundo Ebert (2008), aborda a incapacidade do homem em perceber e compreender a figura da mulher e sua relevância em uma sociedade ainda machista. Para os homens do cinema de Scorsese, elas são virgens ou vadias. Percebem-nas como uma ferramenta de satisfação sexual. O homem, quando satisfaz sua necessidade, é tomado pelo ciúme e age com desdém perante a mulher em questão.

Ebert (2008) aponta que esse ciclo vicioso é explicado pela psicanálise freudiana a partir do Complexo Madonna-Whore (ou mãe-puta), no qual, pela ausência de carinho materno, o homem remete a mulher amada à imagem da mãe e vê a prática sexual como incestuosa e satisfaz suas necessidades com prostitutas. Toda essa ação masculina é justificada para defender o princípio de que ele pertence e deve agir como o seu meio pressupõe, correspondendo às regras e convenções sociais que lhe concernem.

O filme, para Hammond (2004), tem grande apelo para questões religiosas. O que o espectador procura é ver Jake LaMotta combatendo a soberba alcançada pelas suas conquistas. Touro Indomável é um exemplo também da luta contra as limitações e falhas humanas. Robert De Niro representa um personagem que incorpora uma série de erros comuns, que não são nada além de limitações humanas.

Ebert (2008) diz que, desde Quem Bate à Minha Porta (1959), Caminhos Perigosos (1973) e Taxi Driver, o protagonista de Scorsese lida com figuras femininas intocáveis e, em Touro Indomável, LaMotta representa o ser que precisa sobrepujar-se sobre a mulher conquistada e encontrar subterfúgios para provar seu ciúme e desprezo por Vickie (Cathy Moriarty). LaMotta é uma representação de instintos cuja inocência e violência se introjetam no personagem.

Sequência que aponta os ataques de violência de LaMotta contra sua família.

Touro Indomável, para LoBrutto (2008), utiliza-se de concepções objetivas para retratar a história. LaMotta é um personagem muito complexo. Por isso, precisou ser interpretado e mostrado de forma direta. A fotografia em preto e branco, por exemplo, viabiliza a limpeza das cenas, edição mais dinâmica e percepção dos personagens de forma mais simples.

Jake LaMotta vive em dois mundos: os ringues e o lar. Sua maior dificuldade é conviver e ser capaz de alternar entre esses meios. Os ringues são viris e violentos. LaMotta é a referência de sucesso naquele espaço. Contudo, sua agressividade não se limita às lutas, ele repete seu comportamento em casa, onde precisa dominar o espaço fisicamente.

A vida de LaMotta não parte de um chamado específico. Em Touro Indomável ele já é uma referência no esporte e busca, por meios moralmente aceitos ou não, um sucesso ainda maior. Toda a narrativa se desenvolve a partir de sua busca por fama e sucesso e toda sua decadência é construída a partir de suas ações para alcançar seus objetivos.

Sequência da perda do título mundial para Sugar Ray Robinson.

O filme parte da motivação de Jake para a conquista. Em momento algum, ele recusa essa premissa. O personagem apenas agrega mais virulência a seu comportamento, não foge de seu meio. Pelo contrário, psicologicamente, LaMotta espera que os demais indivíduos compreendam e participem do seu modo de vida. O personagem de De Niro não recebe nenhuma orientação. Por ter alcançado a fama e não ter tido boas referências paternas, LaMotta se vê perdido nos confusos conselhos de seu irmão mais novo.

A busca de Jake não tem o caráter filantrópico inerente aos heróis, ela é uma perseguição por vitórias e reconhecimento. Essa busca é feita sempre a partir do único poder pertencente ao personagem: a agressividade. O retorno que LaMotta recebe é proporcional ao tratamento humano que ele dá às pessoas. Ele perde seus bens e sua dignidade de maneira quase inocente, por não ter uma visão complexa das regras e imposições sociais.

Cenas do processo de prisão e encarceramento de LaMotta.

Mesmo para os anti-heróis, há uma possibilidade de salvação. E, desde o primeiro corte do filme, acompanhado da cenografia esfumaçada e flashes disparados ao fundo, há a percepção do LaMotta como um personagem isolado. A ópera de Pietro Mascagni, Cavalleria Rusticana auxilia, desde a primeira cena, na indicação do teor do filme e das reviravoltas que o protagonista teria que enfrentar sozinho. A chance de Jake é recomeçar, como humorista em uma casa noturna. Todavia, mesmo na decrepitude da situação, o caminho tomado pelo ex-pugilista é o de se mostrar, estimulando seu ego.

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