Parte 8: o perfil destoante no cinema de Scorsese
Representação da sociedade no cinema de Scorsese
A origem italiana de Martin Scorsese é percebida logo quando se verifica a naturalidade siciliana de seus avôs que, assim como centenas de milhares de estrangeiros, aportaram em Nova York no início do século XX. Fica claro que a visão dos Estados Unidos como uma terra próspera atraiu imigrantes de várias nacionalidades. Para a manutenção da identidade cultural de cada população, a ocupação da cidade aconteceu respeitando-se os costumes de cada cultura. A partir daí, houve, inclusive, uma disputa pela imposição de valores de cada gueto de Nova York. Martin Scorsese trata, inclusive, desse embate entre comunidades em Gangues de Nova York (2002).
Scorsese, por exemplo, nasceu em 1942, no Queens, um bairro originalmente irlandês que fora tomado pelos empreendimentos judaicos. LoBrutto (2008) explica que, principalmente para os ítalo-americanos, a tomada e administração de terrenos eram percebidas como essenciais para a sustentação de sua cultura no país. Isso explica o surgimento de organizações familiares que se baseavam, predominantemente, em regras com uma moral própria. A máfia focava suas ações no controle dos estabelecimentos, o que lhes propiciava o domínio financeiro e ideológico sobre a sua comunidade.
O alfaiate Charles Scorsese e a costureira Catherine Cappa, pais de Martin, conviviam na sociedade predominantemente católica e controlada pelos gângsteres. Biskind (2009) aponta que por sofrer de asma desde os primeiros anos de vida, Scorsese ficava recolhido a Little Italy. A única atividade de entretenimento eram os filmes que assistia compulsivamente.
Embora tivesse frequentado o seminário, o interesse pelo cinema sempre foi dominante. Ebert (2008) aponta que Scorsese conheceu o mundo e foi educado pelo cinema. Sua técnica cinematográfica foi moldada desde sua infância, pela apreensão despretensiosa do trabalho de outros diretores. Ele não se limitou a conceitos e práticas ensinadas na academia.
Scorsese, por sua origem latina, não consegue desenvolver uma obra completamente objetiva. Traços de sua formação cultural e psicológica são percebidos e, por vezes, colocados propositadamente nos seus filmes. Em Touro Indomável, o diretor criou uma narrativa altamente particular, visto que, assim como sua carreira, a jornada de Jake LaMotta representa uma redenção pessoal. Outro aspecto notado é colocação de easter eggs, com elementos referentes à sua experiência de vida. Em Gangues de Nova York (2002), Amsterdam Vallon (Leonardo de Caprio) é mandado para um orfanato e abandona a carreira cristã, assim como fez Scorsese. Em Os Bons Companheiros, os sussurros apresentados durante os fade to red de Gritos e Sussuros (1972), de Ingmar Bergman são repetidos durante uma das tomadas do filme.
Stanley Kubrick também teve sua técnica reproduzida por Scorsese. A fotografia constituída a partir de iluminação natural de Barry Lyndon (1975) e os efeitos com luz de velas são aplicados em uma tomada de O Rei da Comédia (1982). Por vezes, as referências são bastante claras. É o caso da cena final de Grande Assalto do Trem (1903), de Edwin Porter, representada fielmente por Joe Pesci, no final de Os Bons Companheiros.
Além das referências do cinema europeu, aplicadas por toda a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’Roll, Scorsese sempre buscou aplicar técnicas dos filmes de Orson Welles e Alfred Hitchcock em seus trabalhos. Taxi Driver (1976), por exemplo, teve a música composta por Bernard Herrmann, que escreveu a música de Um Corpo que Cai (1958) e Psicose (1960). A trilha de abertura de Cabo do Medo (1991) ficou a cargo de Elmer Bernstein, que adaptou a trilha de Círculo do Medo (1962), escrita por Herrmann.
Outra característica marcante de Scorsese é o trabalho em equipe. Vários profissionais colaboraram continuadamente com o diretor. Thelma Schoonmaker (edição); Michael Chapman (fotografia); Richard Bruno (Figurino); Barbara De Fina (Produção); Elmer Bernstein (Música) e Paul Schrader e Nicolas Pileggi (Roteiro) são exemplos de profissionais que vincularam suas carreiras às perspectivas cinematográficas do cineasta.
Martin Scorsese sempre lidou com um modelo de protagonista. No início de sua carreira, Harvey Keitel e Robert De Niro eram uma espécie de alterego do diretor. Encenavam uma tradução de seu espírito e, por isso, estiveram à frente de muitos de seus filmes. Mais recentemente, Scorsese desenvolve uma parceria com Leonardo Di Caprio e adota, assim, outra postura de direção, muito mais atrelada a elementos técnicos de filmagem, afastando seu subconsciente da narrativa.
Há uma relação próxima entre o Martin Scorsese e Robert De Niro. Ambos tem aproximadamente a mesma idade, nasceram em Nova York, são descendentes de italianos, e começaram a trabalhar juntos há quase quatro décadas, quando foram apresentados pelo também diretor Brian De Palma. O estilo de direção do início da carreira de Scorsese condizia com a formação de De Niro e sua entrega física nas cenas colaborou para a elevação de patamar dos filmes da dupla, criando um novo conceito de construção do cinema.