O estrangeiro que só com o vento se entendia

Ontem o dia esqueceu de amanhecer

Roda
contos aleatórios
4 min readMay 15, 2013

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Não havia nada. Era assim, com o movimento do lápis, que essas linhas surgiram cheias de significado. Apesar de seus nítidos contornos, nunca saberei o verdadeiro motivo e muito menos o porquê de seu retorno naquela fria manhã de inverno de dois mil e sete.

A grama se agitava, o rio fluia com suas linhas num silêncio cinza. Pássaros pairavam no tempo. Por debaixo da ponte, um barco. Seu delizar sobre a água calmamente agitava a lama das encostas, revelando patos e bicicletas. Odores esverdeados eram interrompidos pelo canto da gaivota ao longe.

A água - mármore denso - já era muito suja, mas para tocar a rotina fazia sentido deslizar pelos seus planos, mesmo que só com os olhos. Sobre suas turvas ondas ela observava a paisagem. Em volta dela era tudo caos, mas seu rosto estava em paz e somente revelava-se com o dançar das sombras dos galhos, que a cada segundo multiplicavam seus desenhos e formavam ideogramas infinitos.

O vento, que endurecia os dedos, aumentava a distância entre a minha intenção e a realidade. Ela continuava ali parada, querendo existir pra mim. Percebo agora que só de observá-la uma única vez jamais compreenderia seu segredo. Naquele exato momento já não havia mais retorno, para sempre o carregaria.

Naquele frio inverno voltei todos os dias para fazer a única coisa que me fazia existir entre os vivos. Como pude ficar tantos anos distante? Me sentia culpado por creditar minha ociosidade à morte de minha querida Faustine, que perdi de maneira tão horripilante e levou minha inspiração vital. Prometi pra mim mesmo, diante daquela figura, que nunca mais pararia de escrever. Era só o que me restava, um anjo de verdade, pálido e efêmero como aquelas manhãs de janeiro.

Um fantasma, sim, só podia ser! Afinal, já a havia visto escrevendo em meus sonhos. Sua suave pele de mármore contrastava com a selvageria de seu cabelo de fogo. Como é possível duas pessoas frequentarem o mesmo parque por meses e sempre se encontrarem à distância? Não me lembro de sequer uma vez trocar olhares com ela. Mas mesmo sem nunca balbuciar qualquer palavra, mantinhamos nosso pacto de musa e criador.

No dia seguinte não havia vento na rua, o rio estava correndo calmo e constante. Pensei o que seria de mim se ela não estivesse lá naquele dia, naquele parque. Resolvi correr, e, com a garganta seca, pensei que não seria capaz de escrever de novo, ou talvez pior: nunca adorá-la com minhas palavras sublimes. Delirei. Desatinei. Desisti. Muito confuso, confirmei minha sentença. Não havia uma alma viva no parque!

A noite, sonhei que voava por debaixo da ponte como uma gaivota plainando sem esforço. Daquela perspectiva, me vi sentado no banco. Mesmo distorcido pela minha visão de pássaro, me vi rodeado de pessoas que exaltavam com alegria minha poesia e acordei subitamente com o badalar da meia noite.

Na varanda no dia seguinte, mirando o horizonte, estava decidido a encontrar meu anjo e começar nossa história. Sentei-me à escrivaninha e me entreguei ao coito com letras. Confesso que naquele momento, pela primeira vez em décadas, me senti verdadeiramente feliz. Apesar de minhas mãos tremerem ao pensar que poderia perder tudo se, por exemplo, minhas rimas, ou meu estilo libertário com ditongos abertos, soassem agudas demais para minha amada. Mais tarde concluí que, como poeta, jamais poderia negar um grande amor de verdade e me lancei ao parque para confessar-lhe meu amor antes que a tinta daquele poema secasse.

No parque, já sentia sua presença, mesmo antes de avistá-la. Acenei pela primeira vez em sua direção e ela continuou imóvel. Quando uma mulher de sua qualidade iria responder um desconhecido? Continuei caminhando firme e notei que escrevia em um papel. Parei. Seriam seus versos de amor? Então gritei:

— Senhora!

A mulher permaneceu estática. Uma escultura! E não sei por que sussurrei com os lábios trêmulos:

— Faustine!

O bilhete, o qual escrevia sem se mexer, rodopiou umas três vezes antes de cair na grama orvalhada. Meu joelhos dobraram e suas mãos continuaram paradas . Seu vestido amarelo brilhava ainda mais com sua pele branca e tive a certeza de estar presenciando um fenômeno. Teria eu enlouquecido e criado aquela ilusão? Um fantasma de Faustine? Nesse momento já havia algumas pessoas a minha volta e se aproximavam para me amparar, quando a vejo levantar! Aponto para ela contra a multidão mas já estou sendo carregado como um defunto para o banco mais próximo. Finalmente me soltam e explico que estava procurando a moça de vestido amarelo. Eles zombam de mim e confirmam que não havia nenhuma mulher de amarelo na redondeza.

Na margem do rio, caminhando para a ponte, ainda tentando escapar da roda que havia se formado, avistei ao longe o amarelo, aquele tão puro como o de Van Gogh. Mas logo o perdi na distância. Desiludido, caminhei até onde a vi pela última vez e me deparei com seu bilhete. Sem tocá-lo, pude sentir seu perfume, e através de sua caligrafia vi seu rosto angelical. Suas palavras eram a prova existencial. Respirei fundo com a certeza que nos encontraríamos de novo.

A ponte era verde, uma das mais antigas da Inglaterra. O céu era agora de um plácido silêncio-azul e ninguém gritava. A natureza estava plena quando, ainda sem coragem de ler as palavras dela em minhas mãos, avistei minha amada em cima da ponte. Num instante, um ponto. No segundo seguinte, um risco. Uma pincelada amarela vertical na paisagem. Mudo, agonizei como Munch.

Amado,

Cansada, escolhi a sombra

Parada, finalmente repousei

Calada, fiquei pensando

Só morrendo viverei

Um menino que passa arremessa um objeto no rio e comtempla sua viagem até a água. Vejo a vida nesse arco invisível e perfeito sobre a superfície e, no mesmo instante, um pássaro voando noutra direção prolonga ainda mais esse momento. Agora, o sol me arde a vista e quase me cega a paisagem. Seu morno calor me aquece, e, com olhos já completamente fechados, vejo uma nova história. Confuso, me deito no banco e espero a vida passar.

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