O dia em que Jesus voltou

Alisson Coelho
Contos Azulejeros
Published in
3 min readAug 3, 2016

Texto: Alisson Coelho
Ilustrações: Eduardo Ribas

Lembro com nitidez do dia em que Jesus voltou. Era um sábado pela manhã, lá pelos idos de noventa e bem poucos.

Já fazia um tempo que eu havia sido informado sobre a volta Dele, então já estava avisado. Mesmo assim, demorei um tempo para me dar conta do arrebatamento.

Naquela manhã, contrariando totalmente a minha natureza, levantei cedo para brincar, e passei boa parte da manhã na rua. Próximo do meio dia bateu aquela fome, o que significava que era hora de ficar por perto da minha mãe. Ao chegar em casa, no entanto, o susto: não havia mais ninguém.

A casa estava aberta, mas nem meu pai, nem minha mãe ou a minha irmã estavam lá. Nada, ninguém. Sem cheiro de comida, sem bronca pelo período fora, sem barulho de louça, só o vazio da minha casa abandonada.

Esperei mais duas horas e a cada minuto o medo (e a fome) crescia dentro de mim. Onde eles tinham ido? Já eram quase duas da tarde e nada. Cadê a comida? Das poucas certezas que eu tinha na vida, uma delas era que a minha mãe não me deixaria sem comer. Era algo meio sagrado pra ela. E apesar dos meus sonhos macaulay culkinhanos, ficar sozinho em casa durante aquele tempo todo não estava sendo uma aventura divertida.

Depois de muitas conjecturas e hipóteses sobre o que havia acontecido com a minha família cheguei a única conclusão plausível: Jesus tinha voltado. Eles tinham ido, eu ficado.

Lembrei dos sermões do pastor que explicava como seria. Os carros ficando sem motorista, as casas vazias, pais que ficavam sem os filhos, filhos que ficavam sem os pais. Só os bons subiriam e, bem, meus pais eram boas pessoas. Ótimas na verdade. Davam dízimo, faziam tudo direitinho, enfim, subiriam com certeza.

Por aquela época eu já sabia que as minhas possibilidades de ir para o céu eram tão remotas quanto as do Collor. Eu não sabia muito bem o que o presidente tinha feito, mas sabia que era coisa ruim e tinham mandado ele embora. E eu também andava metido com coisa ruim.

Por aqueles dias tínhamos achado um saco cheio de revista de sacanagem jogado no campinho, um terreno baldio que chamávamos de Estádio Beira-Utinga (ficava na Rua Utinga, fazia sentido na época). Mesmo sem saber muito bem porque, eu havia dedicado algumas horas a contemplar aquelas páginas, o que obviamente era coisa do capeta. E tinha a questão da mentira. O pastor tinha dito que ficariam de fora os cães (?) os feiticeiros, os idólatras e todos que amam e cometem a mentira. Eu não amava mentira, mas contava história de vez em quando e isso fatalmente me excluía do reino dos céus. E o cachorro estava no pátio, o que corroborava a tese.

Com a certeza do arrebatamento e com a consciência pesada pelos pecados que haviam me feito ficar, passei a elaborar um plano de fuga do anticristo que haveria de logo aparecer. Era preciso resistir para tentar uma chance na repescagem divina, escapar do fogo eterno, aquela coisa toda.

Estava arquitetando meu retiro para a chácara de um tio, que envolvia cavar um abrigo subterrâneo e viver das bergamotas que ele tinha plantado, quando o inesperado aconteceu: meus pais voltaram do supermercado.

Ao menos trouxeram comida pronta.

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Alisson Coelho
Contos Azulejeros

Jornalista, escritor, pesquisador e professor de Comunicação