A bolsista
por: Vicenzo Pegado
O Laboratório de Pesquisa Nº 5 é, sem dúvida alguma, o mais admirável e bem aparelhado de todo o departamento. Não é sequer necessário entrar nele para tomar isto como verdade, pois a pesada porta branca com detalhes em metal se destaca visivelmente das demais no mesmo corredor. O dispositivo de leitura de impressões digitais, cujo design foi premiado em feiras internacionais, repousa ao lado da maçaneta, como a insígnia de um xerife ou a medalha de um general, e reforça a aparência de autoridade do local. Uma sorte tremenda ter uma estrutura assim tão boa em uma universidade pública do nordeste brasileiro.
“Merda! O negócio de ler o dedo está sem funcionar de novo.”
[procura a chave na bolsa]
“Não acredito que esqueci a minha chave, cara.”
[suspira]
“Lá vou eu de novo mandar mensagem pro Sandro para ele abrir a porta para mim.”
[pega o celular e manda uma mensagem de texto]
“Sou bocó mesmo, oh!”
Dentro dele milhões foram investidos em equipamentos, máquinas, insumos e apetrechos. Mas o recurso mais precioso do Lab. 5 são as dezenas de bolsistas de graduação, mestrado e doutorado; jovens mentes criativas atraídas pelas generosa remuneração oferecida para atividades de pesquisa. Tudo isso custeado pela Empresa, em uma das mais prósperas parcerias público-privadas de toda a região.
-Valeu, Sandro!
[sorri para o rapaz que abriu a porta, mesmo que ele já esteja de costas voltando para o seu posto de trabalho]
[percebe que alguns estudantes da universidade que passavam pelo corredor estão aproveitando para dar uma espiada no lado de dentro do laboratório]
[Fecha a porta rapidamente]
“Cara, porque eu fiz isso, hein? Desse jeito eu só reforço o estereótipo de que o pessoal do Lab. 5 é elitista. Tem nada para esconder aqui dentro não, só a nossa vida escrota.”
[caminha pelo laboratório em direção ao seu local de trabalho, cumprimentando algumas pessoas no caminho]
O laboratório possui diversas salas, cujos nomes parecem competir entre si para descobrir qual é o mais extenso, críptico e sofisticado. No espaço dedicado ao grupo de “pesquisa em diagnóstico funcional de fenômenos estocásticos na ponderação e remanejamento de recursos sócio ambientais e ecológicos” a atmosfera está ainda mais tensa do que o habitual. Nas várias fileiras de gabinetes, sentados em uma fileira de cadeiras de rodinha e olhando para uma fileira de computadores, uma fileira de bolsistas aperta freneticamente fileiras de teclas no intuito de modificar as fileiras de caracteres que compõem os seus artigos científicos. O prazo para submeter os trabalhos escritos para o único periódico renomado no campo de estudo do grupo se encerrará em poucas horas.
[cumprimenta os colegas e o professor]
[senta na frente do seu computador]
[suspira]
“Porra!”
[inspira]
“Porra!”
[expira]
[abre o editor de texto onde o artigo está]
[lê o título do artigo]
[lê o seu nome como um dos autores]
“Porra! Porra! PORRA!”
O professor orientador caminha entre os alunos contribuindo de diversas maneiras: dividindo o seu conhecimento e experiência; sugerindo referências; fazendo pequenas modificações formais no conteúdo; lembrando que o alinhamento do texto é justificado; dando tapinhas nas costas de quem precisa de um apoio emocional; recolhendo alguns copinhos de café que se amontoam nas mesas e atrapalham a digitação; … tudo para que os demais membros do time de pesquisa consigam terminar a tempo os seus artigos.
Nem todos vão conseguir, claro. A grande maioria, mesmo com todo o esforço do professor, vai terminar o dia em estado de frustração. Não que isso seja um problema. Em espaços como esse é interessante que exista uma rotatividade entre os bolsistas, dando oportunidades para que várias pessoas possam usufruir da estrutura e contribuir para o projeto.
[dá scroll para baixo na tela do editor do texto, por toda a extensão de 18 páginas do artigo]
“O artigo já está terminado faz uma semana, não tem mais no que mexer.”
[dá scroll um pouco para cima até chegar na parte dos resultados]
“Não tem mais no que mexer. Está pronto.”
[tem ânsia de vômito]
“Cara, será que eu comi alguma coisa estragada?”
[dá scroll para baixo até chegar na parte da conclusão]
[tem ânsia de vômito, mais forte]
“Pô… tá foda. Será que foi o lance de ter tomado muito café nessas últimas semanas?”
[dá scroll para cima, até chegar no título]
[olha para o seu nome como um dos autores]
[tem ânsia de vômito, muito forte]
[sente o gosto ácido do refluxo gástrico na parte de trás da língua]
“Argh!”
[levanta]
[vai até o bebedouro]
[enche a sua caneca com água gelada]
[bebe um pouco]
[bochecha]
[bebe um pouco mais]
[volta para a sua mesa]
A publicação de artigos é de fundamental importância para a manutenção do laboratório, sendo a única contrapartida exigida pela Empresa pelos seus muitos investimentos. Esta atividade contribui para a vida de todos os envolvidos: a progressão dos professores no plano de carreira da universidade; a melhoria dos currículos dos pesquisadores do laboratório; a formação intelectual dos estudantes; a disseminação do conhecimento entre a comunidade científica; a formação de opinião do público em geral; …
“Isso vai dar merda!”
[passa a mão na testa]
“Quantas pessoas vão conseguir perceber o que a gente fez?”
[balança repetidamente a perna]
“É manipulação de resultados, cara. Não é besteira não. É fraude.”
[respira fundo]
“Mas foi o professor que sugeriu. Foi ele que aprovou. Então não deve ter problema.”
[batuca os dedos na mesa]
[nota que seu colega do lado está se incomodando com o barulho]
-Foi mal!
[pára de batucar os dedos]
[sacode a perna com mais velocidade]
“O professor sugeriu porque o investidor da Empresa ‘indicou’ para ele que os resultados anteriores não estavam tão alinhados com os objetivos da Empresa e ‘sugeriu’ que os resultados… se tornassem outros.”
“Como se a verdade tivesse que ser alinhada com os interesses de alguém! Vai se fuder!”
Os minutos vão passando, e a janela de tempo para submeter os artigos vai ficando cada vez mais estreita.
[Prepara todo o formulário para enviar o artigo]
“A gente vai mesmo enviar isso? É sério?”
[anexa o artigo ao formulário]
[volta a sentir ânsia de vômito]
“É SÉRIO?”
O professor vai parabenizando aqueles que conseguiram enviar o trabalho.
“E se a galera acreditar que isso é verdade?”
“Imagina o que pode dar de errado.”
Praticamente não há mais tempo para enviar.
“Putaquiupariu!”
É o último segundo do prazo.
[Aperta o botão de enviar]
[Lê a mensagem de confirmação da submissão]
[Nota que o coração está batendo forte]
[Suspira]
“Tudo bem. Tudo bem!”
“Os cientistas que revisam esses artigos são sérios. Vão notar que tem algo de errado com os resultados.”
“Isso nunca vai ser publicado.”
[sorri]
“É isso aí, não vai ser publicado. Ninguém vai ser prejudicado.”
[sorri um pouco mais]
Todos saem do laboratório. O último a sair apaga a luz. O restante da universidade está deserta, pois muito já passou do último horário de aulas.
Como a semana foi dura, os exaustos bolsistas só conseguem pensar em um único local para gastar o dinheiro das suas bolsas, conquistado com tanto sacrifício: o bar 24 horas que fica em frente ao campus. Vão celebrar, claro.
[Todos erguem os copos de cerveja barata]
[Alguém puxa o brinde]
-À CIÊNCIA!
[vira o copo da cerveja]
[enche o copo novamente]
“Não vai ser publicado.”
[vira o copo de cerveja]
“Não vai.”
___________________________________________________
O Escritório de Revisão Interpares Nº42 é, sem dúvida alguma, o mais renomado e confiável entre todos os periódicos a quem presta serviços. (…)