Devolva-me

por: Isadora Santiago

Redação Para Mídias Digitais 2017.1
Contos do Pici
10 min readJul 10, 2017

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foto: Mayara Queiroz

Ela desce do ônibus. Um, dois, três degraus. Ou quatro; posso ter errado a conta. Anda despreocupada, um braço pegando sol. No outro braço, um fichário. Nas costas, uma daquelas mochilas jeans surradas que as pessoas de sua idade tanto parecem gostar. No rosto, uma abstinência de expressão.

Na bolsa, o meu pacote.

Eu poderia explicar, mas não quero. Não tenho tempo. Não tenho tempo para nada, enquanto ela continuar em posse do meu pacote. Meu. Só meu. Uns e outros diriam que estou exagerando, que não é bem assim. Mas eu sei da verdade.

Uns metros a mais, e ela pára de andar, ainda despreocupada, ainda parcialmente no sol. À volta dela, um punhado de estudantes, uns mais preocupados, outros cheirando a cigarro. Eu? Eu estou no meio das folhas — escondido, por assim dizer. Invisível, ou quase. Mas definitivamente invisível para ela.

Os cheiros de gasolina, suor e cigarro — sempre muito cigarro — ficam mais fortes, e atrapalham a pouca concentração que consegui reunir. Malditos estudantes, com seus malditos cigarros.

Maldita ladra de pacotes.

Uma segunda estudante — esta cheira a uma coisa cítrica e pungente que alguém nesse mundo deve chamar de “perfume” — aproxima-se do meu alvo. Uma, duas batidinhas no braço dela, e um chamado leve: Mariana!

Mariana. Ou Marina. Ou Maria. A verdade é que não consegui ouvir direito. Estava muito distraído com os cheiros (droga).

Ainda não havia recuperado meu pacote, mas agora a culpa de seu desaparecimento tinha um nome. Mariana. Ou Marina. Ou Maria.

Meu alvo sorri e murmura alguma coisa para sua colega de cheiro esquisito. Se a Louca estivesse aqui, pensaria que estão falando de nós. Que estão nos vendo. Ia querer ir lá, tirar satisfação, fazer barulho. É por isso que não vou com a Louca para lugar nenhum, se posso evitar.

Quase perco o momento em que Mariana, ou Marina, ou Maria, entra num segundo ônibus, seguida pela outra menina, que vou tomar a liberdade de chamar de Cheiro de Laranja Podre, para fins comunicativos.

Naquele momento, invejo Cheiro de Laranja Podre. Não pelo seu aroma peculiar, mas por sua liberdade — ela pode ficar perto de meu alvo, e eu não. Pode observá-la a todos os momentos, e eu não. Bastava esticar o braço e dar um puxão no zíper daquela maldita bolsa jeans para recuperar o meu pacote.

Suspiro, resignado ao meu posto de observador ofendido, e sigo pelo mato. Posso não saber onde Mariana, ou Marina, ou Maria, vai descer, mas sei por onde aquele ônibus passa.

E quando ele passar, eu estarei lá.

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Sigo meu caminho agradável pelo mato, ouvindo os pulos dos grilos e o sibilar assustado de algumas cobras, quando dou de cara com a Louca.

Para ser mais preciso, a Louca é quem dá de cara comigo: sem que eu veja, aproxima-se de mim por trás, nem um pouco silenciosa, e, alguns segundos após identificar seu típico cheiro de macarrão azedo e lama, ganho uma cabeçada dela.

Eu poderia até explicar porque a Louca é conhecida como Louca por onde ando (e também por outras bandas), mas é preciso vê-la para entender. O apelido veio dos estudantes, e, embora eu costume discordar deles em quase tudo (incluindo a escolha de pratos no Restaurante Universitário), ninguém discordava do quanto o nome da Louca era apropriado para ela.

– Achei! — Ela grita, seus dentes um pouco perto demais do meu rosto. Espero ela continuar. — Achei! Achei! Achei você. Onde estava?

Para o bem do meu estado emocional, e porque não quero perder Mariana (ou Marina, ou Maria) de vista, resolvo ser direto na resposta.

– Ocupado. Alguém pegou algo que é meu.

– Algo que é seu? — Vejo os olhos da Louca crescerem em tempo real. — O quê? O quê? Você tem que me contar.

Louca está quase pulando de empolgação agora, um tremelique estranho no canto da boca. Minha paciência está acabando; a qualquer momento, Mariana (ou Marina, ou Maria) vai descer daquele ônibus, meu pacote ainda confinado aos domínios fedorentos de sua bolsa jeans.

– Não tenho tempo para explicar. Preciso ir.

Sem esperar pela reação da Louca, aperto o passo na direção da parada de ônibus. Meu estômago parece se deslocar alguns centímetros em direção ao inferno quando escuto a Louca me seguir.

– Mas você tem que me contar! Posso ir junto? Vamos juntos! Vou chamar o pessoal-

– Você não vai chamar ninguém. — Interrompo a Louca com a voz mais assustadora que consigo fazer, mas ela não parece se sentir intimidada, e continua me mostrando seu habitual sorriso rasgado. — Não preciso da sua ajuda, e não quero companhia, entendeu? Não chame ninguém. E não conte nada para ninguém, também. Especialmente para o Ogro.

A última coisa que eu precisava na minha vida era do Ogro crescendo seus olhos imundos na direção do meu pacote. Meu. Só meu.

Louca pareceu entender, porque parou de me seguir e fez um de seus sons esquisitos, daqueles que me faziam pensar se ela já havia engolido uma buzina de bicicleta alguma vez na vida. Enquanto eu corria na direção da parada, deu mais uns gritos na minha direção:

– Combinado! Combinado. Ninguém vai saber. Nem o Ogro. Eu acho. De qualquer forma, a gente vai estar ali perto das mangueiras. Você não vai acreditar no que achamos-

Não acreditei, nem cheguei a ouvir. Enquanto Louca continuava a berrar sobre qualquer coisa desimportante que ela e o resto do pessoal havia achado nas mangueiras, corri para a parada de ônibus mais próxima, levando alguns tapas de uns galhos no caminho. Tudo por uma causa nobre, pensei, tentando ignorar a ardência dos cortes.

Mariana (ou Marina, ou Maria) não desceu naquela parada, nem a Cheiro de Laranja Podre. Uma onda de pânico toma conta do que sobrou de mim após ser rasgado por um monte de galhos selvagens — seria tarde demais? Será que perdi alguma parada por causa da Louca?

Escuto meus instintos, e resolvo continuar a seguir o trajeto do ônibus, sempre encoberto pelas trevas amigáveis do matinho do campus. Dessa vez, posso me dar ao luxo de evitar os galhos mais afiados. Também consigo evitar pisar numa aranha cabeluda, o que é sempre bom.

Duas paradas depois, Mariana (ou Marina, ou Maria) desce do ônibus de mãos vazias, mas com a mochila ainda agarrada às suas costas, e posso respirar aliviado de novo. As chances de meu pacote continuar em sua bolsa eram altas.

Absorta em uma conversa barulhenta e pouco produtiva com a Cheiro de Laranja Podre, ela começa a andar pela calçada do campus, mas solta um palavrão (não vou dizer qual) quando vê o ônibus passando pelas duas e indo embora. Preocupada, Cheiro de Laranja Podre indaga a razão de sua fúria.

– Meu fichário — resmunga Mariana (ou Marina, ou Maria), alto o suficiente para que eu possa escutar. — Acho que dei para alguém segurar no ônibus, e esqueci de pegar de volta.

Ah, a vingança do universo. Ela pode ter roubado meu pacote, mas o universo lhe roubou um fichário.

Meu sorriso deve estar tão grande e tão bizarro quanto o da Louca, nesse momento.

Valha, amiga. Tem certeza? — Cheiro de Laranja Podre parece pouco convencida, e franze a testa para meu alvo. — Mas eu não vi você dando fichário nenhum para ninguém. Tem certeza que não tá na sua bolsa?

Mariana (ou Marina, ou Maria) tenta argumentar que acha que sim, que ela não é louca, mas que agora é tarde demais para correr atrás do ônibus (eu tenho alguma experiência com o ato de correr atrás de ônibus, e discordo), soltando um segundo palavrão. Cheiro de Laranja Podre a consola como pode, e se oferece para procurar o fichário na bolsa da amiga.

Sinto meus olhos quase saltarem para fora de suas órbitas quando a mochila jeans de meu alvo — onde se esconde o meu Santo Graal, a razão daquela nobre e difícil expedição — é passada para as mãos de Cheiro de Laranja Podre sem nenhum cuidado. Maldita seja! Maldita seja por conseguir acesso à maldita bolsa tão facilmente, enquanto eu era reduzido a me esconder no mato e levar espetões de galhos quebrados.

– Ai, eca! Amiga, o que é isso? Tá começando a feder!

Cheiro de Laranja Podre puxou o meu pacote de dentro da bolsa, segurando-o com a ponta dos dedos.

Meu pacote.

Nas mãos dela.

Deixo escapar um grito de indignação, mas, felizmente, o mato e o zunido dos carros abafam minha voz. Todos os meus instintos me dizem para dar um jeito de pular a rede de proteção que separava o meu pedaço de mato da calçada ocupada pelas duas vigaristas em posse do meu pacote, que devo arrancá-lo das mãos fedorentas da Cheiro de Laranja Podre, mas eu sou experiente, e sei que esse não é o momento de atacar. Ainda não, mentalizo, ainda não.

Uso a técnica do presunto que a Louca havia me ensinado para acalmar os nervos (vou ter que lembrar de agradecer a ela depois), e consigo evitar o pior.

Alheia ao meu acesso de fúria particular, Mariana (ou Marina, ou Maria) faz uma careta para o meu pacote, ainda sustentado pela ponta das unhas de sua amiga esquisita.

– Ah, era pra eu ter jogado fora. Guardei na bolsa porque não tinha lixo por perto. Pode jogar ali.

Ela gesticula em direção a uma cesta de lixo próxima com o mesmo entusiasmo que teria utilizado para apontar um gato morto.

Meu pacote.

No lixo.

No lixo, território de gatos famintos e outros grupos malditos.

De repente, a técnica do presunto não era mais tão eficiente assim.

Quando dei por mim, estava escalando e pulando a cerca e invadido o terreno da calçada. À distância, Cheiro de Laranja Podre jogava o meu precioso pacote na maldita cesta de lixo, mas não olho para ela. Na hora certa, ela terá o que merece.

Agora, eu só tenho olhos para Mariana. Ou Marina. Ou Maria.

Reciprocando minha atenção, ela me lança um olhar curioso quando termino de pular a cerca, e vejo o começo de um sorrisinho brotar em seu rosto. Deve estar me achando simpático. Bonito.

Não deve saber que estou furioso.

Solto nosso grito de guerra e me curvo.

Como que por mágica (mas posso garantir que não foi), outros tantos cachorros pulam de vários pontos do matagal e correm para o meu lado, prontos para responder ao meu chamado. Vejo meu alvo empalidecer um pouco, mas ela não se move, talvez por medo ou burrice.

Solto um segundo latido alto, e corro em sua direção, acompanhado de meus colegas de profissão. Meu pacote será vingado.

Só então ela parece perceber que se meteu numa enrascada, e solta um gritinho antes de se virar e sair correndo, meio estabanada, em nenhuma direção em particular. Lá de seu lugarzinho ao lado da lixeira, Cheiro de Laranja Podre parece perceber a confusão, e grita também, deixando para trás a bolsa da coleguinha, que cai no chão com um baque surdo.

Uma parte do pessoal — os mais sanguinários, imagino — decide continuar perseguindo Mariana (ou Marina, ou Maria), mas eu me dou por satisfeito apenas com a visão dela correndo para bem longe. Não sou tão vingativo assim, não importa o que a Louca diga.

Dou os meus agradecimentos ao pessoal, e até ganho algumas lambidas em cima dos meus cortes. Arde, mas é legal saber que eles se importam. Trocamos algumas palavras a mais, e nos separamos ali mesmo, tão rápido quanto nos reunimos.

Dirijo-me ao santuário felino da lixeira, determinado a recuperar meu pacote, mas com poucas esperanças; não ficaria nada surpreso se dez ou quinze gatos já houvessem se apossado dele.

Para minha grata surpresa, em meio à um ninho de latas de Coca-Cola e cópias de livros amassadas, meu pacote descansa inteiro, esperando por mim.

Pego o pacote com os dentes, e, bem, se meu rabo está abanando demais, é porque sou bom no que faço.

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– Mas o que tem aí? Você ainda não contou. — Louca me empurra com a cabeça.

Devidamente em posse de meu prezado pacote, eu havia retornado às imediações arenosas do novo Restaurante Universitário. Minha chegada foi recebida com latidos animados e mais lambidas, e agora Louca e um outro pessoal me cercavam, querendo saber o que eu trazia de tão especial.

– Você não reconhece o cheiro? — Lanço um olhar surpreso para ela. — Seu focinho já esteve melhor, Louca.

– Pára de fazer suspense e diz logo! Ou abre, e mostra pra gente. — Louca odiava ser contrariada.

Só porque eu estou de bom humor, resolvo ceder.

– Tá certo. Mas não contem nada para o Ogro, ouviram? Posso até dividir com vocês, mas com ele não.

Empurro o pacote cuidadosamente, até que o saco plástico se mova o suficiente para revelar seus conteúdos.

E que conteúdos espetaculares, eles são.

Cachorro-quente! — Meus colegas latem em uníssono.

Eu sorrio, tão orgulhoso quanto se estivesse apresentando meu próprio filhote à matilha.

– Sim, cachorro-quente. Uma estudante derrubou no chão enquanto comia, lá na frente do campus. Está praticamente inteiro. Eu já estava quase pegando e ela resolveu pegar de volta.

Expressões chocadas correm pelo grupo.

– Que egoísta! — indigna-se Pelé.

– Humanos… — resmunga Mitocôndria com desaprovação.

Louca tenta imitar um relincho de cavalo, porque é assim que ela expressa seus sentimentos.

– Mas vocês sabem qual é a melhor parte? — Eu pergunto, mal contendo meu deleite.

Todos abanam a cabeça para mim, confusos. Louca começa a morder a própria pata.

Viro o cachorro-quente com o focinho, revelando seu tesouro dourado.

E lá estava ela, linda e dourada como sempre.

Batata-palha! — O latido de reconhecimento ecoa entre meus colegas. Até Louca larga um pouco de sua pata para ver o que está acontecendo.

– Sim, batata-palha. — Eu ainda estava todo orgulhoso, e, naquela situação, ninguém podia me culpar.

Partimos para cima da batata-palha, com cachorro quente e tudo.

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