Semideuses entorpecidos

por: Alexandre Germano

Redação Para Mídias Digitais 2017.1
Contos do Pici
3 min readJul 10, 2017

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foto: Mayara Queiroz

Mais um dia a caminho da universidade e do curso de Computação que eu fazia. O mesmo suplício de sempre, nada de mais. Chegando para mais uma aula cuja agonia eu já estava acostumado, vejo meus amigos antes do professor chegar e conversamos sobre o mesmo de sempre: séries, filmes, professores com péssima didática ou planejamento e etc. Olívia era uma das minhas grandes amigas. Costumava contar tudo sobre minhas frustrações pra ela. Interessante como ela nunca perguntou nada sobre minhas coisas, apenas ouvia e respondia de forma a ajudar o máximo possível, de forma quase que passiva. Em uma das habituais caminhadas até o RU do Campus do Pici, eu divagava com ela novamente sobre minhas tentativas de me relacionar com alguém e sobre minha frustração de não pertencer uma espécie de “casta estética” elevada. Castas estéticas era algo que eu tinha inventado que dividia o mundo, principalmente através do virtual. De forma nenhuma eu achava que tinha “ausência de capital estético”. Eu só achava que, se o número de pessoas com elevado capital estético não estivesse aumentando, as redes sociais virtuais estavam proporcionando essa ilusão muito bem. Imagine que você está em uma exposição de arte e se depara com uma obra maravilhosa, que te magnetiza e você consegue até se ver levando aquilo pra casa, e então você volta pra realidade e lembra que não se pode sequer tocar na obra. O mundo pra mim tinha vários lembretes do que eu não poderia fazer. Não mexa. Não entre. Não toque. Após eu jorrar todas essas pseudofilosofias com a mesma péssima dicção de sempre, Olívia diz algo até banal e casual, mas que nunca me esqueci:

— É, Antônio… é um mundo de semideuses.

Disse isso com aquele tom de quem sabe que não podemos fazer muito e só nos cabe aceitar. Realmente era um mundo de semideuses, semideuses esses que todos nós sabemos que não são reais, que são apenas ilusões construídas por pessoas com os mesmos problemas de todos. Toda essa conversa ocorreu durante o almoço. Voltando para o bloco, nossos colegas nos avisaram que não haveria aula. Como nós ainda teríamos outra aula após aquela, ficamos com um espaço no horário. Olívia quis ficar no bloco e tentar tirar um cochilo e eu resolvi dar uma volta no campus que pouco conhecia apesar dos dois anos de curso. Era um campus rico em tamanho e em curiosidades e eu nunca havia o explorado.

Nesse tempo tive a oportunidade de observar as pessoas em alguns lugares do campus. Na cantina da Geologia vi uma garota devorar seu brownie. Nas chamadas “mangueiras” observei um rapaz com seu tradicional baseado. Voltei para o bloco da Computação, assisti aula, comecei o caminho de volta pra casa. Era começo de noite e após descer do ônibus lotado a caminho de casa observei os bêbados dos bares. Alguns bem alegres e cantantes e outros bem quietos. Por algum motivo estabeleci uma semelhança entre as pessoas que havia observado: elas muito provavelmente estavam aliviando suas tensões, como se estivessem se entorpecendo. Chego em casa, abro as redes sociais, vejo uma selfie de Olívia na academia, admiro os semideuses e as semideusas e me deixo levar pelas minhas divagações novamente. Estava concluindo que todos nós nos entorpecemos de alguma forma. Do mesmo modo que todos temos problemas e angústias, também temos nossos entorpecentes. Eles são inúmeros e podem divergir em questões éticas, morais e etc. Vão desde drogas ilícitas, passando por bebidas e medicamentos e podem até mesmo ser gastronomia, exercício físico, acúmulo de seguidores e curtidas, sexo, afetos de uma noite só, produções acadêmicas, trabalho e etc. O que podemos fazer é escolher o que nos entorpece e se permitiremos que os outros saibam qual entorpecente escolhemos pra nós. Os semideuses também se entorpecem, talvez até mais que a maioria. Eles só são melhores em esconder. A última coisa que eu me lembro daquele longo dia é de tentar esquecer aquela porcaria toda jogando meu game online de sempre.

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