O Cheiro da Saudade

“…a cada passo, parecia vê-la entrando em um quarto, descendo uma escada, virando no corredor, agitando uma cortina.”

Abriu a porta e abarcou cada detalhe com o olhar. A nesga de luz ajudava a distinguir os objetos, mas — para ser sincero — poderia muito bem caminhar por cada centímetro ali de olhos fechados ou na mais absoluta escuridão: cada xícara empoeirada nas prateleiras; cada taco solto no chão; cada quina de móvel — tudo lhe era bastante conhecido. Só não estava acostumado a ver tudo ali tão… só.

“Só…” — pensou. “Só…” — e suspirou. Sessenta e sete anos dedicados a um sorriso que parecia ocupar até o espaço entre os dentes dos garfos empoeirados guardados na primeira gaveta do lado esquerdo da peça da cozinha. “Se aquele gato maldito não houver revirado tudo atrás de comida, ainda devem estar lá”.

Cada passo que dava adentro do antigo apartamento vazio havia mais de um ano parecia lhe custar um batimento cardíaco que jamais lhe retornaria — um batimento de vida, eu diria. E a cada passo, parecia vê-la entrando em um quarto, descendo uma escada, virando no corredor, agitando uma cortina.

“Cabeça de velho é uma merda. Só não é mais fodida que a coluna…” — e a cada porta aberta, aquele cheiro saía de dentro do cômodo: aquele cheiro de saudade. Poderia até jurar ter sentido o cheiro dela ali de novo…

“Aquele perfume… Aquele maldito perfume…” — ele espirrava sempre. E ela usava sempre. Olhou o relógio e soltou um “Merda!” Mais rosnado que falado: marcava a mesma hora em que ali entrou. “Essa merda nunca quebrou, e resolve quebrar justo agora!”. Sentou na poltrona, pegou o livro que havia começado a ler um ano atrás.

Os olhos velhos foram pesando a pouco e pouco — e quanto mais ele se ia, mais forte o cheiro dela; mais da voz dela se ouvia; mais o seu rosto se delineava. Sentiu uma mão em seu peito no último arfar, e ali ficaram a sorrir um para o outro — ali ficaram a se admirar.