Zezé Transcendental
Contos em Português
3 min readJul 25, 2014

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O vento era tão frio lá fora que gelaria uma boa garrafa de vinho em segundos. Mas ela não estava “no clima” — não aquela noite. Cinco cadáveres jaziam ao seu lado e vinho era a última coisa em que poderia pensar ali. Mas se pudesse coletar todo o sangue espalhado pelo local e colocar em garrafas, faria inveja a Lestat…

O velho enrrugado já devia estar morto havia um ano, embora o gelo o houvesse preservado. Não foi fácil se acostumar com ele por ali, olhos azuis que penetravam as suas entranhas e provocavam calafrios em Judite, sua grande amiga de outrora — agora também abraçada pela morte. Judite era o segundo cadáver ao seu lado…

— “Scratch, scracth… Tunc! Scratch, scratch… Tunc!” — mais passos foram ouvidos do lado de fora.

A cada hora que se passava, alguém parecia sair da imobilidade e se mover de forma paciente e metódica do lado de fora da cabana. O som oco que ecoava na madeira, após cada par de passos, só podia ser a cabeça de Judite sendo arremessada contra a parede da cabana — afinal, o barulho começou logo após o corpo de Judite cair pela chaminé, e a cabeça era a única coisa faltava…

Os corpos de Judite e do velho sem nome estavam ao lado dos restos de Paulo. Este tinha a cabeça presa ao pescoço, mas o que lhe faltava devia ter servido muito bem ao que agora rondava a casa. Quando Paulo saiu para caçar o que havia mordido Felipe no bosque, voltou se arrastando pelo gelo e jorrando sangue pela femoral. Não demorou a morrer ali dentro, mas as pernas dilaceradas parece ter alimentado muito bem aquilo — pois teve força para não apenas se aproximar da cabana, mas arremessar a cabeça de Judite contra a parede, como quem se diverte com algo macabro: “Tunc!”, o som se repetia algumas vezes a cada hora.

Felipe já estava morto havia algum tempo. Foi mordido enquanto catava lenha. Um pé foi arrancado — e, como vocês bem sabem, um pé tem pouca carne, não dá para nenhuma besta se alimentar muito bem disto — e não seria nada mortal, se não fosse o diabetes. Foi estupidez, mas agora Inês já era morta…

… literalmente. Inês foi a primeira a morrer na viagem. Mas esta não teve nada a ver com os episódios macabros: foi picada por uma cobra tão venenosa que só restou aos amigos procurar um lugar para lhe darem algum conforto na morte — o que motivou Felipe a sair para buscar lenha…

Aquela cabana, com um velho já morto dentro, foi a única coisa que encontraram. “Scratch, scratch… Tunc!”, novamente os passos do lado de fora, novamente a cabeça de Judite arremessada contra a parede externa. Já havia escurecido. E Ana continuava ali dentro, apavorada, com todas as portas e janelas trancadas, tentando se defender daquele ser que sequer conhecia e que rondava a cabana como um animal que sente o cheiro do sangue espalhado no chão e do medo correndo nas veias.

“Ele só apareceu depois que o sol se pôs. Há de ir embora quando o sol nascer e, portanto, só preciso sobreviver uma noite.”, pensou. Um olho de Judite caiu pela chaminé. Pânico. Era possível ouvir o atrito do seu sangue contra as paredes das artérias…

Mais uma hora se passou. Mais um par de passos na neve: “Scratch, scratch… Tunc!” — e mais um olho de Judite caiu pela chaminé. Desta vez, o pavor de Ana já lhe contraía todos os poros do corpo, e seria possível extrair de seus nervos a eletricidade para acender uma lâmpada comum por alguns segundos.

O relógio marcava 4h da manhã. Cada cadáver ao seu lado tinha a sua história trágica para contar, e ainda tinha aquele velho desconhecido, morto, com alguns ossos do corpo já à mostra e de olhos azu… fechados?

Fechados.

Gelo.

Pânico.

Ele lentamente se levanta e caminha rumo à porta, abrindo-a, diante de uma Ana absolutamente paralisada pelo medo e pela constatação de que o absurdo se tornara real.

“A carne é sua” — falou o velho à criatura — “quero apenas os cabelos”.

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Zezé Transcendental
Contos em Português

Profissional de Comunicação; Artista da Música. 🌵✨💜