3ª sessão

Cynthia Sarmento
Contos para esvaziar a mente
5 min readSep 17, 2014

Uma sala clara. Clara demais, ao ponto dos olhos se espremerem para enxergar a porta do outro lado, a escrivaninha em um dos cantos, a cortina branca do meu lado direito.

"Deve haver alguma coisa em seu passado que te fez sentir assim. Algo desencadeou essa tua reação de lidar com as pessoas de forma tão distante.”

Nada. Não me lembro de nada que possa ter me marcado assim, tão forte. Abalado minha estrutura a ponto de influenciar o resto de minha vida. Minha vida sempre foi tão normal. Sem problemas familiares, notas boas, pessoas queridas à minha volta. Não nasci em berço de ouro, mas nunca me faltou nada.

"Nada que eu me lembre doutora.”

"E algo que você não se lembra?”

Será? Será que todo esse tempo eu tenho algo que foi esquecido… Algo que foi tão forte e que abalou tanto que, como que por um mecanismo de defesa minha mente fez questão de lacrar num cofre e eu… Esqueci?

É melhor caminhar até em casa. Do consultório até lá são 20 minutos de caminhada e a rua é tranquila. Cidade de interior é bom por essas coisas, não tem perigo, todo mundo se conhece, quase não passa carro e eu posso ir caminhando sem pressa.

De manhã meus olhos se abriram com dificuldade. Tudo parecia ter sido tão real…

Nós brincamos juntos desde pequenos. Éramos unha e carne e, um belo dia, ele foi embora da cidade. Nunca mais o vi ou ouvi falar dele.

A vida seguiu em frente, conheci novas pessoas, fiz novas amizades, me relacionei com outros caras. Acho que nunca senti muita saudade dele, só no comecinho. Lembrar do comecinho, de ficar sozinha num primeiro momento dói. Dá vontade de chorar só de lembrar… Mas ele era só um desses amigos de infância, cuja mãe é amiga da sua mãe e vocês acabam convivendo por influência delas e nada mais. Ninguém realmente importante.

"Eu lembrei de uma coisa.”

"Quer me contar?”

"Sim." Por que é que está sendo tão difícil colocar isso para fora? Foi só uma perda boba da infância. Eles se mudaram para outra cidade, eu perdi um amigo por um acaso do destino e depois a vida seguiu em frente. Essas coisas que acontecem com as crianças o tempo todo, seus pais precisam se mudar e elas têm de ir junto. Só.

"Eu me lembro de nós dois sentados na rua em frente ao colégio. As outras crianças faziam piadinhas pois eu e ele vivíamos grudados e, bom, eu era uma menina que não tinha outras amigas meninas e ele era um menino que não tinha outros amigos meninos. Éramos só nós dois.”

"Mas isso não tinha muita importância para nós. Lembro que naquele dia ele me disse que tinha algo importante para me contar. Fiquei morrendo de curiosidade.” Uma pausa. A memória falhou e precisei me esforçar para continuar. A cortina branca, meio translúcida me ajudou.

"Depois disso lembro apenas que estávamos um pouco mais velhos e que o sentimento que eu tinha por ele havia mudado junto com nossos corpos adolescentes. Não me lembro de um beijo, mas lembro de alguma forma que tínhamos tal intimidade. Talvez tenhamos sido namorados, não sei dizer”

Essas palavras não foram planejadas, saíram naturalmente de meus lábio e me surpreendi com o que dizia conforme minha boca as articulava.

"Um dia caminhávamos para casa e três meninos, parados na calçada, começaram a zombar de mim. Falaram coisas que agora não me lembro, mas ele não se conteve e respondeu a eles, dizendo que não me ofendessem.”

"Depois disso só me lembro de um dos meninos deitado no chão, e ele emaranhado em socos com os outros dois. Eu estava estagnada, feito uma estátua sem acreditar no que acontecia. Dei alguns passos para trás. Não me lembro além disso.”

Fiquei ali olhando para a doutora. Talvez ela entendesse melhor que eu o que aquilo tudo significava. Pelo seu semblante achei que deveria me esforçar para buscar algo mais em minha memória. Desta vez entrou um vento pela janela e as cortinas brancas voaram pela sala clara demais.

"Eu estava em casa e me lembro de um aperto muito forte no peito. Lembro de andar da sala para a cozinha e da cozinha para a área de serviço. Não era a minha casa, era a dele.”

"Ele tinha um cachorro preto que me dava medo e, naquele dia o cão escapou do canil. Eu me tranquei para dentro da lavanderia. Não queria sair dali.”

"Depois disso só lembro de estar ao lado dele. Ele estava deitado em sua cama. Era um quarto iluminado como essa sala. E tinha cortinas brancas.”

Leucemia. Algo em mim sabia que era isso, mas não consegui formular a palavra em minha mente, quiçá fazer com que saísse por minha boca para contar à doutora.

"Ele estava com o lábio cortado da briga com os meninos mas isso não importava. O esforço que ele tinha feito fez com que seu organismo debilitado pela doença se esgotasse até ele cair desmaiado na calçada. Os dois meninos pegaram o amigo caido na calçada e foram embora. Eu fiquei ali com ele até… Não sei até quando. Mas agora estávamos em casa sua mãe me contou o que ele vinha a tempos me escondendo.”

Precisei secar algumas lágrimas que tinham surgido em meus olhos. Por algum motivo minha voz estava trêmula, minha cabeça latejava. Eu não queria lembrar mais nada.

"Você consegue continuar? Quer deixar para nossa próxima sessão?”

"Não. Se eu deixar para depois tenho medo de esquecer novamente.”

Se era aquilo o que tanto influenciava minha vida, que me prendi num passado escondido, eu precisava resolver de uma vez para poder seguir em frente.

"Tenho a sensação de que passou algum tempo e, desse tempo, lembro de flashes.”

"Alguém dando comida em sua boa. Seus olhos piscando para mim. Sua voz fraca. Sua pele clara ainda mais empalidecida pelo excesso de luz no quarto.”

"E aí não me lembro mais. Só sei que ele foi embora. Talvez tenha realmente se mudado para se tratar em uma cidade grande e não se lembrou de me mandar um alô quando ficou bom, deve ter conhecido outra garota.”

Eu não queria chorar mais, mas meu âmago sabia que essa não era a verdade. Ele jamais me deixaria por vontade própria… E se ele fosse se tratar longe eu teria dado um jeito de ir junto. Só sei que sua família se foi para algum outro lugar, provavelmente por não suportar permanecer na mesma casa, na mesma rua.

"Como você se sente?”

"Não sei. Parece que isso aconteceu em outra vida ou na vida de outra pessoa. Parece que sonhei com tudo isso.”

"Qual era o nome dele?”

"Não quero me lembrar pois assim seria algo real. Prefiro deixar assim, um sonho.”

No meu sonho o cão que escapou falava. Era um cão preto, com porte de labrador. Ele me dizia que eu era culpada por ele estar definhando, que se eu não estivesse na calçada ele teria passado despercebido pelos garotos. Que ele ainda estaria vivo.

No meu sonho, quando colocavam comida em sua boca ele mal se mexia, não engolia nada.

A única vez em que ele abriu os olhos depois da briga foi também a última. Nem um som. Mesmo assim eu ainda ouvia ele me dizendo, como naquela primeira vez, quando estávamos sentados na rua, em frente ao colégio, “Eu te amo”.

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