Cidadão comum

Franklin Lopes
Contos urbanos
Published in
2 min readOct 9, 2014

A ansiedade da espera é comum. O frio e a névoa da manhã corrompem pensamentos, contraem músculos, convidam ao silêncio.

O ônibus surge. Os corpos rompem a apatia, colocam-se em prontidão. Braços levantam em coreografia, apontam para frente em ritual que se repete em sincronia por aqueles perfilados ao meio fio. Onde é que vai essa gente? Todo mundo parece tão decidido. Será eu o único que prefere se perder a chegar todos os dias no mesmo lugar?

Como sempre, tenho dificuldade para ver o destino que se aproxima. Ainda não sei se são meus óculos ou minhas posições. Titubeei, mas desta vez é este o todo por que aguardo.

Olho no relógio e ainda cedo me atraso. Uma fila se forma em desajeitado bailado. Acabo ficando por último diante da ânsia alheia de escalar aqueles degraus. Quanta agilidade pode ter aquela senhora? A repetição é solvente de obstáculo.

Entregue aos automatismos da boa educação, lanço um ‘bom dia’ ao motorista que balbucia um leve menear de cabeça.

Cerra a porta, o ônibus parte. Caio em cima de alguém. Peço desculpas. Esbarrão, desculpas e eu são ignorados. Sinto o gosto amargo de me fazer objeto. Próxima marcha e me reafirmo, ressurjo. Novamente Eu sou: tranco, ruído, incomodo, ordinário, indiferente, presente.

O cobrador cochila desajeitado. Aproximo o cartão do leitor com cuidado. Luz vermelha, sem saldo. Conto as moedas e me faltam vinte centavos. Toco no ombro do pobre, rasgo seu sonho com realidade. Explico a situação, recebo cara feia, respondo com gratidão. Roda a catraca e me embaraço. Rápido me ajeito, prendo a respiração, giro a mochila, ponta de pé, uma leve inclinada e passo.

Me espremo com os outros. Já não preciso segurar. Sigo assim, solto, deixo a multidão me embalar.

Ninguém ousa olhar nos olhos. Eu me arrisco, mas rapidamente disfarço ao ser flagrado. Olho para cima, para baixo, penso em pegar o celular. Impossível. Deixo estar.

Procuro um lugar onde repousar a vista. Leio no anúncio: “Quem anda de ônibus chega mais rápido.” Acho graça sozinho. Talvez se esqueceram do relativo do tempo que faz de minutos horas quando compartilhando toques e arrochas num trançado de pernas que, não fosse a penúria da situação, me enrubesceria o rosto.

Vou quase sem graça abrindo caminho no emaranhado de corpos. Percorro o corredor, sem saber se dou a frente ou as costas. Crio critérios rápido. Começo por gênero, passo para ergonomia, termino do jeito que dá. Chego à porta traseira com ar de vitória, quase a me gabar.

A porta se abre. O sol já vai alto do lado de lá. Sou expelido pra fora como quem sai do útero. Úmido, mal cheiroso, amassado. Nasço cidadão a cada nova aurora. Hoje porém, no ponto errado. Bosta!

Originally published at franklinlb.blogspot.com.br.

--

--

Franklin Lopes
Contos urbanos

Franklin Lopes é um sociólogo e fotografo, especialista em etnografia visual e sensorial. Para mais informações acesse franklinlopes.com