Franklin Lopes
Contos urbanos
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5 min readOct 10, 2014

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Um dia na contra-mão

O quarto esta claro. Que dia é hoje? Terça? Quarta. É hoje. Que horas são? Merda. Num mesmo impulso joga as cobertas, salta da cama, e se mete no banho. A água demora a esquentar. Molha o rosto, o cabelo, passa a mão debaixo dos braços e pronto. Enrola-se na toalha e minutos depois aperta o nó da gravata que ainda carrega o laço da loja. Calça o sapato aos pulos a caminho da sala. Procura a chave. Jurava que tinha deixado na mesa. Revira lugares improváveis. Passa a mão entre as almofadas. Nada. Olha mais uma vez no relógio. Enfia um pedaço de papel no bolso. Sai. Bate a porta. Deixa sem trancar.

O sol já vai alto. Taxi é uma fortuna. Corre para o metrô impaciente com as pessoas que caminham sem pressa. Desce as escadas saltando os degraus de três em três. De longe analisa a barreira de catracas em busca da mais vazia. Geralmente são as do canto, mas quando se está com pressa tudo anda na contra-mão. Espreme-se no espaço entre as filas, corta na frente de uma senhora gorda de lenço na cabeça, pede desculpas já se enroscando entre os braços da catraca. Leva a mão no bolso e se desalinha. Não acredito! Sai da fila sob os achincalhos da dona gorda. Alivia o nó da gravata em busca de solução. Bate no corpo em revista, enfia as mãos nos bolsos, gasta o que lhe sobra de esperança.

De olhos vermelhos e testa suada, explica o caso para o funcionário que não se comove com a situação. Só resta voltar em casa. Avança cambaleante rumo a escada. Refuga. Não há tempo. Quem sabe pedir para alguém. Observa o rio de corpos em busca de benevolência. Sente-se desconcertado só de ensaiar a mendicância. Já bastava o não do funcionário. Que situação.

Olha para os lados disfarçando o afligimento. Afasta até um ponto em que a correnteza de passantes não esta tão densa. Atravessa sem sobressalto para a margem oposta e espera o melhor momento. Olhando para baixo feito mais um, entra na corrente. A cada passo ensaia o movimento. Chega a sua vez e não titubeia. Apoia as mãos, flexiona os joelhos, busca propulsão e, num balanço ligeiro, pula a barreira com certa elegância. Contém os passos para não despertar suspeitas, mas é só entrar no corredor que solta as rédeas. Corre para a plataforma na certeza de estar sendo perseguido. Ouve o som das portas prestes a fechar. Alça vôo sobre mais uns poucos degraus. Fixa o alvo e se lança virando o corpo de lado para encaixar na fresta que resta. A entrada acrobática quebra a apatia da rotina. Sente um alívio. Apoia as mãos nos joelhos. Segura o sorriso de contentação.

O pé pulsa apertado. Talvez por falta de tato com o couro ou pelo ritmo das passadas que lhe traziam. Que dia para sair assim, todo abotoado. A camisa gruda nas costas, limita os movimentos, fica transparente, amarrota, revela o descompasso. Respira grande, solta um botão, tenta afrouxar a angustia. Tira o paletó e o enrola com descaso no braço. Uma voz robótica anuncia a próxima estação. A respiração de ofegante, cessa. Checa o mapa na parede, incrédulo. É fato. Esta indo para o lado errado. Estapeia a testa. Busca espaço diante da porta. No primeiro vão, dispara. Corre. Sobe. Desce. Espera. Cala o grito. Morde o punho. Respira. Entra. De volta para o começo.

Evita olhar no relógio. Distrai com dois meninos que distribuem pedaços de papel gastos escritos a mão em busca de sustento. Uma senhora adverte que não podem fazer isso ali dentro enquanto, com ar indiferente, os dois recolhem os bilhetes e juntam as moedas oferecidas. Sem muito a ofertar, devolve o bilhete e compartilha a penúria. O trem sacode. Papéis, moedas e moleques se espalham pelo chão. Abaixa com certa dificuldade e recolhe o que esta a seu alcance. Era só esquecer de devolver alguns trocados que amenizaria o problema. Entrega tudo ao menino em um mesmo punhado: moedas, moral, papeis, vergonha.

Chega na estação. Tenta sair. É contido pela ânsia daqueles querendo entrar. Coloca mais intenção no gesto. Debate-se entre ombros, força a passagem, mais duas braçadas e rompe do lado de fora. O paletó se desenrola do braço e fica preso no emaranhado de corpos. Puxa com força já sem esconder o desespero. Mais uma vez corre. Escala a escada rolante disputando qualquer regato. Gira a catraca em busca de saída. Os olhos fitam o segurança, disfarça. Sobe as escadas ofuscado com a luz de fora. Procura o ponto de ônibus. Entra no primeiro que aparece. Sabe que não vai longe. Controla o fôlego para ganhar tempo na explicação. O ônibus parte. O cobrador coça o bigode, manea a cabeça, aponta para o canto, ralha qualquer coisa e ele desce no próximo ponto.

Restam quatro quadras. E o direito de ir e vir ? Ao menos os passos não são cobrados, se bem que, a julgar pelas condições das calçadas, é de se questionar tamanha facilidade. O paletó se enlaça noutro braço. A gravata dança leve sobre os ombros em contraste com a pisada. A cada farol, dilui a espera andando em círculos. Esperar que os carros passem nunca foi tão absurdo. E aquele na bicicleta? Filho da puta sortudo.

Esbaforido, chega ao endereço rabiscado no papel que já se desfazia no bolso. Confere as horas. Trinta minutos de atraso. Busca sua imagem na parede do prédio espelhado. Apruma. Seca o rosto com a gravata, orienta o cabelo com os dedos, assopra as axilas em vão e pronto. Reflete sobre o bizarro de vestir o paletó em cima da camisa ensopada. Enche o peito, deixa escapar um grunhido.

O segurança aponta a recepção. Aproxima-se com pressa e diz a que vem. Primeira vez? Sim! Um documento com foto para o cadastro, por favor! Gargalha. Um documento com foto? Um documento com foto? Deixa pra lá.

Senta do lado de fora, num pedaço de grama qualquer e tenta se confortar. Lágrima e suor se abraçam, contornam o rosto, saltam do queixo e repousam na gravata. Um vulto faz sombra em sua comiseração. Senhor? Senhor? Levanta a cabeça com ar de embriagues. Na grama não pode sentar.

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Franklin Lopes
Contos urbanos

Franklin Lopes é um sociólogo e fotografo, especialista em etnografia visual e sensorial. Para mais informações acesse franklinlopes.com