Incorporado rumo à glória

Frederico Teixeira
contosfalsosdofutebol
5 min readJul 14, 2017

O torto causo de Paçoca, Ponta de Lança da Catuense que faleceu tragicamente antes da final do Baianão de 85.

Em 1985, Alagoinhas (BA) era a mecca do futebol mundial.

Nos diários esportivos brasileiros, não se falava em outra coisa: como uma pacata cidade de 150 mil habitantes do interior da Bahia havia se transformado no maior celeiro de bailarinos do Brasil? Qual era o segredo daquele recém-formado escrete, a Associação Esportiva Catuense, que revelava craques da noite para o dia?

O jovem repórter Hernando Bonucci da Rede Lobo foi enviado para descobrir. Articulista de rara destreza, Hernando não se mostrou muito feliz com a designação de seu Editor-Chefe, Seu Roberval. Preferia ficar na redação tecendo ensaios sobre as canchas cariocas.

- Bonucci, pegues este teu rabo e vá cobrir a Catuense, entendido?

- Mas amanhã tem Fla X Flu…

- Tu te vai te tomar no teu cú, ouviu bem? Quem manda nessa porra aqui, sou eu. Vai, e pronto.

Após amistoso diálogo, ele acatou a decisão e foi desvendar aquele mistério a 120km de Salvador.

Lá chegando, Hernando foi recepcionado pelo orgulhoso dono do time, Antônio Pena, e já partiu para a primeira entrevista de sua matéria.

O brasileiro de São Sebastião ostentava porte invejável para a idade, 54 anos, e um largo sorriso. De riqueza conquistada com o próprio suor, Seu Pena, como era conhecido, contou como ergueu a Catuense do chão.

Hernando Bonucci entrevista Antonio Pena, o Donald Trump canarinho e dono da Associação Esportiva Catuense

"Em 1960, cheguei na cidade com um ônibus" dizia. "E 25 anos depois, tenho uma empresa de 300 veículos e um clube de futebol. Todos os meus funcionários são associados à Catuense." E descontados em 1000 cruzeiros, direto na folha, todo mês.

"Pagam por vontade própria", afirmava sincero.

Papo vai, papo vem, e o jovem repórter conseguira seu primeiro furo: o Ponta de Lança Paçoca, contratado no início da temporada, havia sido adquirido numa negociação um tanto quanto não-ortodoxa.

"Falei com meu compadre lá do Botafogo da Bahia e ele disse que precisava de um ônibus. Ofereci um dos meus e fiquei com o craque do time deles: Paçoca. Melhor negócio que eu já fiz.Tenho grandes planos pro menino." profetizava.

O Ponta de Lança Paçoca dá entrevista perto do ônibus que valeu seu passe. "Me senti um objeto", declarou o atleta.

Finda a entrevista, Hernando se alojou no hotel de uma estrela, na Rua Galinha Quebrada, e pôs-se logo a transcrever a entrevista. Não queria perder nenhum detalhe.

Estava ali a contra-gosto, mas seu dever cumprir-se-ia com profissionalismo e elegância. Entretanto, conforme escrevia, seu faro jornalístico tilintava.

Será que as arrojadas táticas de negociação de Seu Pena eram o real motivo para a ascensão meteórica da Catuense?

Não…havia algo mais. E ele precisava descobrir.

No dia seguinte, o diligente jornalista madrugou para conseguir um bom lugar em meio aos arquibaldos que aformigavam a cancha.

Aquele seria o último treino preparativo antes do derby contra o Vitória, pela final do Campeonato Baiano de 1985.

O placar de 5x2 na semifinal contra o Ypiranga garantiu a vaga na grande final do Baianão de 85. No detalhe, Paçoca.

Era o jogo mais importante da vida da Catuense, justificando a lotação enfática do pequeno CT.

Jogadores a postos, bola rolando.

De repente, Hernando sentiu um soco no meio de seus córneos figurativos: a capacidade dos atletas era soberba. Não havia sequer um deles que jogava mal. Chaleiras abundavam o relvado. Gorduchinhas adormeciam nas forquilhas.

- Meu São Sebastião… Estourou um cano de talento aqui.

Foi uma das experiências futebolísticas mais embasbacantes da vida de Hernando Bonucci. Durante quase 60 minutos que pareceram 5, o jornalista assistiu em êxtase um desfile inigualável de eficácia, criatividade e agudeza.

E mesmo assim, naquela imensidão de bons jogadores, havia um gênio.

Paçoca.

Era o mais doce talento. Driblava com uma facilidade absurda, deixando seus marcadores no chão, um após o outro. Paçoca era um gigante jogando contra um elenco pré-mirim, depois da dormidinha das cinco. Rabiscava pra lá, pra cá, fazia gato e sapato dos adversários. Totalmente transcendental.

Lembrava alguém… Garrincha?

- Ô Seu Pena, esse jogador aí, o Paçoca, é um craque! Um gênio! Lembra o endiabrado Garrincha!

- Erm… que Garrincha o que, rapaz. Toma tino. O Paçoca é o Paçoca…

Até que um detalhe chamou sua atenção: um pai de Santo fazia um trabalho no banco de reservas. Como não tinha escutado o batuque antes?

Dirigui-dum-dum, dum-dum…

Fim de treino. Como num estalo, os jogadores saíram de um transe e voltaram a si.

Menos o Paçoca.

Ele continuou com as pernas arqueadas, fazendo da bola sua meretriz, até notar um jovem torcedor com uma garrafa de cachaça. Sem titubear, Paçoca pegou o melzinho das mãos do arquibaldo e deu sedentas goladas, quebrando o constructo de vidro na têmpora do rapaz.

O jornalista Hernando Bonucci olhava, incrédulo.

Aquela galhardia, aquela habilidade, aquela fanfarronice… era Garrincha.

Pai Hercílio de Ogum fazendo seu trabalho no CT da Catuense.

Já era o terceiro dia naquele fatídico fim de mundo, mas agora, o mistério havia sido resolvido.

Não seria mais necessário investigar. O jornalista já tinha o suficiente para fazer a matéria mais bombástica do ano. Sua única dúvida era o punchline:

ESCÂNDALO! CATUENSE EMPREGA PAI DE SANTO PARA INCORPORAR CRAQUES NOS SEUS JOGADORES

Ainda precisava trabalhar melhor nisso. Mas arrumava as malas, satisfeito, já pensando em qual de suas gônadas receberia a lambida de agradecimento de Seu Robesval.

Foi quando, em prantos, um mensageiro irrompeu pela porta: "Seu Hernando, Seu Hernando, uma tragédia… o senhor precisa ver isso".

Hernando saiu correndo pelo casebre de uma estrela e, após negociar os complicados degraus quebradiços do lamentável estabelecimento, ganhou as ruas.

De pronto, notou uma enorme patota acumulada na praça da cidade. Ao centro, Seu Pena chorava perto de um corpo.

Com o coração a mil, Hernando se aproximou, e logo viu: era Paçoca, estirado no chão.

Estava completamente nu, com apenas uma das meias no pé, e segurava uma garrafa de rum vazia na mão esquerda e um maço de cigarros na mão direita. O sujeito mesmo morto sorria, enquanto duas meretrizes dormiam silenciosas sobre seu abdômen de defunto.

Mesmo abalada pela perda do Ponta de Lança Paçoca, a Catuense disputou a final do campeonato com o Vitória, perdendo de 2x1.

Nesse jogo, Pai Hercílio não foi visto no banco de reservas.

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