Jorema, o pedreiro que virou volante para disputar a final do Campeonato Carioca

Gabriel Padilha
contosfalsosdofutebol
9 min readJan 12, 2017

Um jogador que pavimentou o seu próprio caminho dentro do futebol

O ano é 1952, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. No ápice do verão de Janeiro, o sol massacrava — sem demonstrar nenhum tipo de pudor — a população carioca, que reagia instintivamente lotando as praias e esvaziando os copos de cerveja.

Apesar da temperatura obscena e revoltante, o Campeonato Carioca de 1951 seguia incólume rumo a sua tão aguardada conclusão. Após o empate nos pontos corridos, Bangu e Fluminense decidiriam seus destinos no recém-inaugurado palco do Maracanã, que receberia sua primeira final de campeonato após o desastre da Copa do Mundo de 1950.

Na partida de ida, um baile tricolor abismou os 76 mil presentes no Maior do Mundo. O placar, um magro 1–0 para o time comandado por Zezé Moreira, não representa o que foi o verdadeiro passeio que o time das laranjeiras aplicou sobre o Bangu Atlético Clube. Na geral, na arquibancada e nas sociais, o mesmo mantra se repetia: “É…Ficou barato pro Bangu.”

Enquanto a imprensa esportiva se regojizava com o resultado e já considerava o Fluminense o Campeão Carioca, no conselho deliberativo alvirrubro todos tentavam entender o que havia dado errado — e como as coisas poderiam ser diferentes no jogo de volta. Para ser campeão, o Bangu precisava vencer por dois gols de diferença e, no momento, aquilo parecia tarefa impossível.

Não demorou muito para ficar clara a origem do problema: Didi. O cracaço, que na época possuía apenas 23 anos de idade, já comandava o meio do Fluminense e desfilava em campo com suas atuações de gala. Parar o homem, na bola, era difícil.

Escrete tricolor de 1951. Um festival de craques comandado pelo gênio Didi (abaixado, o segundo da direita pra esquerda).

Se parar na bola não dava, o jeito era usar outra tática. Foi a essa conclusão que Dr. Danúbio Ferraz, um dos exímios beneméritos da história bangüense e conselheiro do clube há quase 20 anos, chegou. Num bate-pronto, se levantou e sentenciou: “Cerrem vossas matracas; acredito que tenho a solução perfeita.”

E tão rápido quanto uma bala, escafedeu-se pela porta do salão.

Moça Bonita era um estádio jovem ainda — havia sido inaugurado há pouco mais de 4 anos. Apesar disso, já passava pela sua primeira reforma: os canos do banheiro da área social do estádio explodiram meses após a inauguração. E foi justamente pra lá que o Ilmo. Sr Danúbio se dirigiu. Segurou o braço do primeiro pedreiro que encontrou, um rapaz negro, alto, de feições fortes, e perguntou:

- Ô negão! Qualé que é teu nome?

- É Jorema, doutô. — respondeu o rapaz, timidamente.

- Tu sabe jogar bola?

- Não sei não, meu bom patrão.

- Melhor ainda. Me acompanhe, por obséquio.

Em pouco mais de 50 minutos, Jorema estava assinando o seu primeiro contrato profissional como jogador de futebol. “Assinava”, aliás, é um termo pouco acurado: naquela época, os contratos eram firmados apenas com a palavra, um aperto de mão e um eventual revólver que ia parar em cima da mesa para resolver qualquer divergência nas cláusulas mais delicadas.

Mas nesse caso, o acordo era bem simples: 3 mil cruzeiros ali, no momento em que Jorema aceitasse e mais 3 mil cruzeiros após o jogo. O objetivo? Dar a entrada mais violenta possível em Didi, para encerrar sua participação no jogo e, quiçá, sua carreira.

A notícia, claro, caiu como uma bomba em todas as redações de jornais cariocas. Quem era esse misterioso jogador? Como o Bangu conseguiu inscrevê-lo, faltando apenas um jogo para o campeonato terminar? Da zona sul à zona norte, o boato que corria era de um cracaço de bola. Do “Jornal dos Sports” ao “O Globo”, todos queriam uma entrevista exclusiva com a “mais nova revelação de Bangu”.

Jorema (dir.) e seus companheiros de construção civil, em raro momento de descontração.

José Ramos Penedo, presidente do clube na época, fez todo o possível para blindar o jogador. Nem dos treinos com a equipe Jorema participou, se limitando a levantar halteres nas dependências internas. Os jogadores do clube nunca ficaram sabendo qual seria seu verdadeiro papel nessa história. O único que sabia o real propósito do pobre rapaz de Madureira no selecionado alvirrubro era Ondino Vieira, o técnico do time, que foi informado da missão inglória que cabia a Jorema.

A tensão cresceu durante a semana e não se falou em outra coisa na cidade maravilhosa. Mesmo o “E esse calor, hein?” que há algum tempo era a frase escolhida pelos cariocas para quebrar o gelo, foi substituído nos bares, clubes e encontros sociais pelo igualmente genérico “E o Bangu, hein?”. A ansiedade era mil e já contagiava todos aqueles que nutriam alguma simpatia pelo futebol, independente de seus times.

Eis que o dia 20 de Janeiro de 1952, dia de São Sebastião, padroeiro da cidade e dia da grande final do Campeonato Carioca de 1951, finalmente chegou.

Mais de 78 mil pessoas compareceram ao Maracanã naquele domingo, na esperança de soltar o grito de "Campeão!" da garganta. Alguns mais esperançosos, outros menos; mas no fim, todos lá para torcer, gritar, sofrer e, se tudo desse certo, comemorar.

Ao som dos rojões e sob o sol carioca, subiram os dois times ao gramado. Jorema, que substituía Alaine na meiuca alvirrubra, entre eles. De longe, até parecia um jogador de futebol mesmo: camisa pra dentro do calção, meião esgarçado, cara séria e olhar compenetrado. O estádio, que antes pulsava com o êxtase da torcida, segurou o fôlego. Havia chegado a hora de conhecer quem era aquele rapaz enorme e de cara fechada, que o Bangu havia contratado especialmente para esse jogo.

Pressão do Bangu no primeiro tempo. Na foto, Castilho (de preto) disputa a bola com Zizinho (no chão).

Num sopro do juiz, começou o primeiro tempo. E em poucos minutos, uma coisa ficou bem clara para o torcedor: o Bangu não estava para brincadeiras.

Desesperado atrás do resultado, o time do subúrbio carioca se arremessava ao ataque ferozmente e massacrava o tricolor, que pouquíssimas vezes se atreveu — ou mesmo conseguiu — passar do meio de campo. Didi, o craque tão temido, sequer tocou na bola nos primeiros 45 minutos e apenas assistiu o jogo da intermediária. Jorema, colado nele tal qual um carrapato, se limitou a fazer o mesmo.

Mas apesar do abafa bangüense , o goleirão Castilho garantiu a virgindade do placar no primeiro tempo. Das cadeiras sociais, Dr. Danúbio, o presidente José Ramos e todo o conselho do Bangu assistiam, aflitos. Faltavam apenas 45 minutos no relógio do árbitro, e o Mais Querido da Zona Oeste precisava se impor em campo — fosse na técnica ou na porrada.

No vestiário, o técnico Ondino Vieira apenas motivou o time a continuar atacando — afinal, uma hora o goleiro tricolor ia deixar alguma passar. Com o time pronto para voltar em campo, o coach ainda achou alguns minutos para chamar Jorema em um canto mais reservado e assegurar que ele não havia se esquecido do seu papel:

- Jorema, meu filho, não esquece: se o cara passar do meio campo, faz conforme o combinado.

- É pra fazer conforme, doutô?

-É, Jorema — disse Ondino num suspiro — , é pra fazer conforme.

O jogo recomeçou e, na primeira vez no jogo em que precisou interagir com a bola, Jorema demonstrou total falta de intimidade com ela. Recebeu um passe de Irany na intermediária e dominou a pelota com a fíbula, num lance que daria confusão na mais amadora das peladas. Os conselheiros olhavam para Dr. Danúbio tensos, ao que ele respondia sem temor: “Não foi para isso que ele entrou. Deixem o menino fazer o que ele precisa fazer.”

E eles não precisaram esperar muito. Aos 6 do segundo tempo, Didi recebeu sua primeira bola boa da partida. Jorema, postado à sua frente, abriu as pernas, puxou o calção pra cima e esperou, pronto pro bote. Tensão nas sociais. O meia tricolor gingou pra direita, fintou pra esquerda, e partiu pra cima de Jorema, que nem viu o que aconteceu. Ou nem tentou ver. Quando o "volante" se deu conta do que havia acontecido, o craque do Fluminense já estava na linha de fundo, inalcançável.

O cruzamento de Didi encontrou a testa de Telê. A testada de Telê, encontrou o barbante do gol do goleiro Osvaldo. E o goleiro Osvaldo só encontrou dor e sofrimento, enquanto arriscava o famoso golpe de vista sem muito sucesso. Fluminense 1–0, e uma nação alvirrubra inteira suspirando resignada.

Bangu se lança ao ataque desesperado. Na foto, Nívio disputa com o goleiro Castilho. Jorema, ao fundo, apenas observa.

O caos se instaurou na linha do Bangu. Desesperado, o time se lançou com ainda mais ganância ao ataque. O Fluminense, agora mais calmo e com o resultado na mão, só esperou em sua defesa para sair no contra-ataque mortal.

Com muito mais espaço e tranquilidade, Didi continuava seu baile pessoal em cima do pobre Jorema. Às vezes, com um drible desconcertante; às vezes, uma simples finta de corpo era o suficiente. Didi passava como queria, acumulando dribles e arrancadas. Jorema, antes uma esperança de um pontapé certeiro que iria desequilibrar as coisas pro lado bangüense, agora nem se movimentava, apático toda vida.

Aos 41 minutos, em mais um rápido contra-golpe tricolor após Orlando Pingo de Ouro perder a bola, Telê martelou o último prego do caixão alvirrubro: 2–0, depois de uma arrancada espetacular do Príncipe Etíope. E o pobre Jorema, mais uma vez, ficou parado no centro do gramado olhando.

Fim de jogo no Maracanã. Fluminense 2–0 Bangu, e a taça de Campeão Carioca de 1951 iria para a sala de troféus do charmoso estádio das Laranjeiras.

Na confusão que se sucedeu após o apito final do árbitro Mário Vianna, o técnico Ondino Vieira nem se deu ao trabalho de descer ao vestiário. Certo de que cairia sobre si a culpa da escalação daquele rapaz e que o time e os jornalistas o cobrariam, o treinador saiu o mais rápido que pode pelo corredor da própria imprensa — e nem reparou que o próprio Jorema também havia desaparecido.

Time do Bangu, vice-campeão carioca de 1951. Jorema não está na foto — foi tirada no dia do primeiro confronto.

Andando distraído pelos anéis do estádio Mário Filho, qual não foi a surpresa de Ondino ao se deparar com Jorema, ainda de chuteiras, meião e shorts, já sem a camisa do uniforme, bebendo cerveja e conversando animadamente com um vendedor ambulante.

Ondino chegou a sentir o gosto da bile no fundo da garganta, tamanha foi sua raiva. Aquele jogador era responsável pelo fim do sonho do título carioca, pelo fim da sua reputação e talvez até pelo fim da sua carreira como treinador. Num arroubo de ódio, segurou o braço do mulato e desandou a lhe atirar impropérios.

- Que história é essa, porra? Tu não tava nem se esforçando pra quebrar o cabra, caralho! Ele fez o que quis, deitou os cabelos, armou um quiprocó na tua frente… E agora tá aqui, todo cheio de risinho, bebendo, como se nada tivesse acontecido? Vai tomar no seu cu, porra!

Jorema olhou pro treinador, cuja respiração estava ofegante depois do desabafo, tomou um gole de sua cerveja e, com toda calma do mundo, respondeu:

- Ô seu Ondino, com todo o respeito, mas quando o doutô me procurou, ele me perguntou se eu sabia jogar futebol. Ele devia ter é me perguntado se eu gostava de futebol. Porque aí, eu falava pra ele que gosto muito, principalmente do meu time. Cês me chamaram pra cometer uma deslealdade aqui hoje; vai me desculpar seu Ondino, mas tem certas deslealdade que o ômi não consegue fazer com o próprio coração…

E, deixando essas palavras ecoando, Jorema pegou com o ambulante a faixa de campeão, a vestiu sobre o peito nu e se misturou na multidão tricolor. Sob o olhar estarrecido do técnico Ondino, ele se foi, feliz, bradando “Salve o querido pavilhão, das três cores que traduzem a tradição…” pra encerrar de vez sua carreira e se aposentar como o verdadeiro campeão que era.

PS: Dizem que o churrasco de comemoração do título em Madureira durou dois dias e foi regado a todo tipo de bebida e comida. Quem pagou por tudo aquilo, ninguém sabe dizer. Mas deve ter gastado uma fortuna. Por volta de uns 3 mil cruzeiros…

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Gabriel Padilha
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Escrevo porque me pagam, eu gosto mesmo é de jogar videogame.