Das diferenças

Por Karina Ruíz*

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5 min readMay 22, 2015

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Certamente não é o paraíso latino-americano (e ateu) na Terra (…), mas além de ser um país onde gays podem casar, mulheres não precisam morrer em abortos clandestinos e os pobres não vão presos por fumar maconha, estou em um país onde não é estranho que mulheres andem tranquilamente pelas ruas do centro da cidade durante a noite e nem que as pessoas saiam para as praças sozinhas e com seus notebooks. É isso. Isso é real.

Já era tarde — quase meia-noite — enquanto caminhávamos pelas ruas do centro da cidade. Íamos em direção a uma praça que ficava bem próxima da rodoviária. Já havia passado por ela antes, ainda durante o dia: não era uma praça com nada em especial com seus bancos de cimento e suas árvores ao fundo. Era uma praça sem grades ou seguranças, e aquele era meu primeiro dia caminhando pelas noites da cidade. Já imaginava como estaria: deserta. Mas, passando por ela, o cenário era diferente. Grupos de quatro ou cinco pessoas, casais e pessoas sozinhas. Detalho: alguns dos grupos conversam, bebem, os casais se abraçam e algumas das pessoas sozinhas… trabalham tranquilamente em seus notebooks. Estranhou?

Bem, sigo a história assim como seguimos caminhando por entre aquelas ruas de casas antigas e altas. Como na praça, não éramos os únicos caminhando: por nós muitas pessoas passavam. Mas, como nós, elas vinham em geral com passos tranquilos. Elas: como nós, muitas mulheres caminhavam tranquilamente pelas ruas. Sim: era quase meia-noite e muitas mulheres caminhavam pelas ruas da cidade, algumas sozinhas, outras em grupos onde só se viam mulheres — e caminhavam, repito, tranquilamente.

Acredito que uma mulher lendo o relato entenderá minha estranheza. Se for um homem, especialmente um homem cis-hétero, indico aquele velho exercício do pescoço: sai para caminhar de noite, mesmo por um bairro boêmio como é a Cidade Baixa em Porto Alegre, e conta quantas mulheres estão caminhando sozinhas tranquilamente pela cidade (as com cachorros gigantes e/ou homens ao lado não contam). A menos que a vida tenha mudado muito na minha velha cidade, acredito que não serão muitas.

Então vocês vão entender porque eu demorei para aceitar essa situação toda. Mas, porque eu parecia ser a única a estranhar, aceitei: estava em Montevidéu, capital do Uruguai, em maio de 2015, sob a presidência da Frente Amplia. Certamente não é o paraíso latino-americano (e ateu) na Terra — a feira de Tristan Narvaja continua tão cinza quanto nas minhas memórias de infância — , mas além de ser um país onde gays podem casar, mulheres não precisam morrer em abortos clandestinos e os pobres não vão presos por fumar maconha, estou em um país onde não é estranho que mulheres andem tranquilamente pelas ruas do centro da cidade durante a noite e nem que as pessoas saiam para as praças sozinhas e com seus notebooks. É isso. Isso é real.

Essa foi minha primeira noite de estranheza em Montevidéu.

Saí de Buenos Aires para encontrar meu pai em Montevidéu. Perto do aniversário dele queríamos comemorar e matar as saudades indo ver um show de uma banda que nós dois gostamos — e que eu recomendo muito, aliás — chamada La Tabaré Riverock Banda. Naquele momento da praça estávamos voltando do bar, já que havíamos descoberto que não íamos ver o show porque as entradas estavam esgotadas — a tenteada é livre, eu diria (e seria compreendida) em Porto Alegre, mas nem a conversa com uma o organizador do show, o quinto membro uruguaio dos Ramones que, além de muito simpático, viveu um tempo no Brasil, nos serviu. E então, admito, fiquei chocada com a cena na praça. Mas o choque, é claro, não parou por aí.

Se bem que o choque, na verdade, começou quando subi no ônibus e recebi do chofer um travesseiro para viagem e, depois, uma bandeja com comida: um pedaço de bolo, um sanduíche de medialunas (uma das maravilhas gastronômicas do universo, diria eu) e dois sanduíches. Essa ação, aliás, gerou uma conversação digna de nota: uma argentina, que talvez compartilhasse comigo o choque, perguntou rindo se eles não iam servir whisky depois. O motorista, também rindo, disse que não: naquele dia o whisky era só para os motoras, mesmo. Ficamos sem whisky, mas seguimos recebendo café e refri e caramelos durante a viagem. A título de explicação, um uruguaio me disse que isso acontece porque a competição daquele tão utópico livre mercado até que funciona por ali: o governo regula e não permite monopólios nos transportes. Mas sigo.

Na segunda noite, saímos de novo para caminhar. Depois de cruzar um parque próximo à Rambla e ver uma exposição fotográfica sobre a construção de casas populares, voltávamos ao hostel quando começamos a ouvir tambores: pela rua, descia uma comparsa de candombe. Para quem não conhece, descrevo: alguns 15 homens com tambores de diferentes tipos, algumas mulheres dançando e muita gente acompanhando. Se faziam barulho? Sim, um barulho digno de uma pequena bateria de escola de samba. Se trancavam a rua? Sim, trancavam cada rua pela qual passavam. E aquilo, também, parecia normal. Não só normal: muita gente estava acompanhando eles porque muitas gente saia de suas casas para ver e seguir a comparsa.

Não estranhou? O Candombe, assim como o samba, é uma manifestação cultural de origem africana. Se você acha que a prefeitura e os vizinhos colocam muitos empecilhos às festas promovidas pelas ruas da Cidade Baixa, tenta imaginar como seria fazer um ensaio de escola de samba assim, numa rua do centro da cidade, sem uma permissão obtida com muita, muita antecedência. Facilito: provavelmente não seria — não por acaso as escolas de samba ficam, assim como as comunidades dessas escolas, em bairros distantes. O Brasil é a terra do samba, sim, mas preto fazendo muito barulho onde pode ser escutado ainda não pode, não.

Essa foi minha segunda e última noite de estranheza em Montevidéu. Sendo só duas noites, não tive muito tempo de responder aquela velha questão: porque que o Brasil (não) é assim? Mas lembrei de uma coisa: o Uruguai é um dos países com maior igualdade social na América Latina. Fui checar e confirmei: segundo o Banco Mundial, que é quem mede o Índice de Gini — o índice que, justamente, serve para verificar os graus de desigualdade de renda per capita entre as populações de diferentes países –, o Uruguai é o com maior igualdade social dentre os países que constam na lista (países como Chile, Argentina e Brasil — não existem dados sobre Cuba nessa lista do Banco Mundial). E não só: é o que mais vem diminuindo a desigualdade existente nos últimos anos.

Sei não, mas desconfio que isso tem relação, hein.

Em tempo: conversando com uma militante feminista que vendia camisetas na feira de Tristan Narvaja, ela comentou o quão assustada ficou com o machismo do pessoal mais alternativo que conheceu enquanto mochilava pelo Brasil. “Eles diziam pra eu me cobrir mais! Mas eu sou uruguaia…”, dizia ela.

*Estudante de Relações Internacionais pela UFRGS em intercâmbio na Argentina.

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