Sobre a memória

Por Karina Ruíz*

Thiago Kittler
Contra Online
3 min readApr 2, 2015

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Os golpistas de então haviam tido um insight genial: que a única forma de desmobilizar os trabalhadores e (…) de erradicar o peronismo era dissolver a própria classe operária — era desaparecer ela. Para isso, dentre outras ações, construíram um maquinário capaz de burocratizar e de naturalizar a morte.

O Dia da Memória em Buenos Aires (Foto: Karina Ruíz.)

A avenida enorme é um mar de gente, no qual as ruas laterais parecem desembocar constantemente. Gente velha e nova, gente segurando fotos de mais gente, gente contando histórias de outras tantas gentes. Uma faixa enorme com fotos de rostos começa a tomar conta do chão. Segundo estimativas, ali estão 30.000:

— Esse é meu irmão — , diz um homem apontando para uma das fotos.

Aquele é o irmão dele. O dia é da Memória, mas presente é a palavra que descreve a Marcha da Memória pela Verdade e Justiça que tomou as ruas de Buenos Aires e de outras cidades argentinas. A data, instituída em 2002, lembra os 39 anos do golpe de 1976 que, se autoproclamando Processo de Reorganização Nacional, produziu uma das ditaduras mais genocidas do continente.

Os golpistas de então haviam tido um insight genial: que a única forma de desmobilizar os trabalhadores e — em um país dividido entre antes e depois de Perón — de erradicar o peronismo era dissolver a própria classe operária — era desaparecer ela. Para isso, dentre outras ações, construíram um maquinário capaz de burocratizar e de naturalizar a morte. Em Poder e Desaparecimento, Pilar Calveiro nos fala dele, cuja base parte de uma divisão macabra do trabalho: alguns funcionários sugavam os subversivos, outros transportavam os pacotes, outros os faziam falar, outros apenas jogavam as cargas nas covas ou no mar — todos eram um pouco responsáveis, ninguém se responsabilizava.

Nos campos argentinos de concentração e de extermínio, o ideal a ser perseguido era o de quebrar os subversivos. Desumanizá-los, tirando deles os menores traços de humanidade — a voz, os movimentos, a consciência — e mantendo-os vivos enquanto interessasse ao maquinário: em meio à escuridão e ao silêncio que predominava nos campos, era o maquinário quem decidia quem deveria ser ressuscitado das torturas, quem devia morrer e quem poderia nascer. Nas ruas, o terror era disseminado inclusive aos que não eram subversivos — o recomendável era não saber de nada, mas, sabendo de algo, o melhor era fingir ignorância.

Aqui, o mar de gente que toma as ruas é formado por vários gritos. Caminhando entre aqueles que marcham por mais democracia é possível ver bonecos de alguns dos cúmplices da ditadura, como as grandes corporações midiáticas e o poder judiciário. Entre essas representações, figura a diretora do Clarín, o maior grupo midiático argentino, dono de vários jornais, canais de televisão e rádios. E, claro, o principal opositor da Ley de Medios argentina que, substituindo a legislação herdada da ditadura, regulou — no melhor estilo liberal clássico — as mídias audiovisuais buscando evitar o controle das informações por um único grande grupo.

É inevitável: penso na calorosa cobertura da mídia brasileira aos protestos do dia 15 de março. Cobertura que, mesmo sem esconder as faixas pedindo — no melhor revival de 1964 — intervenção militar, conseguiu fantasiar muito bem os protestos como pacíficos, escondendo que, se foram pacíficos com as propriedades, foram de uma violência surpreendente contra as pessoas. Penso nisso enquanto sigo o mar. De repente, ao virar para o lado, percebo três senhoras muito idosas, com seus pañuelos brancos na cabeça, que seguram fotos daqueles que seguem sendo seus, ainda que desaparecidos. Olhando através da aparente fragilidade daquelas Madres da Plaza de Mayo, vê-se uma força enorme, gigante: a força daqueles que não permitem o esquecimento. São 30 mil desaparecidos: sob os gritos de “vivos os levaram, vivos os queremos!” a vida, e não a morte, é o que marca a marcha.

E o nosso 1º de abril, que de bobo não tem nada?

*Estudante de Relações Internacionais pela UFRGS em intercâmbio na Argentina.

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