Mortos-vivos

A desgraça é algo quase palpável. É algo tão sensível que nos sobe até as narinas, coisa fétida, seca a boca e a amarga. É para além do visível; toma tudo que é sensível. A desgraça difere da água, que até quando destruidora, consegue aparentar pacífica. É como o lodo, a lama, todo tipo de rejeito. A pessoas que a detém, na verdade são os detidos. Não como prisioneiros revoltados, entretanto apáticos entregues, derrotados pelos sonhos e pela falta de coragem.

O que aponto aqui não são as intempéries da vida, não os arroubos eventuais que o tempo e as coisas nos fazem passivos. Falo da desgraça ativa, aquela que habita o interior, aquela que que assombra o olhar de um pobre coitado, seja ele à beira da penúria ou no mais alto posto de visibilidade da sociedade. Aqui apresento um estado de espírito.

Os seres anencéfalos, canibais e trôpegos apresentados em diversos formatos audiovisuais nos mostraram o poder de vírus e maldições acometidas numa realidade futura da humanidade. Porém, estes zumbis, tão estonteantes representados nas telas, talvez sim, sejam a representação fiel da procissão dos desgraçados. As suas faces lívidas, seus olhares desprovidos de vida e vontade, bocas escancaradas e andar vacilante. Riem, resmungam, fazem sons quase inumanos de forma aleatória. Rondam outras vidas, buscam luz, se admiram e se encantam, porém sem se inspirar. Esses candeeiros alunos, no mais profundo significado latino dessa palavra, perseguem a luz não para se iluminar, mas para minorar o lampejo externo.

A horda dos fracassados perambula incurável pelas lidas diárias. São corpos vazios, de mentes cheias de remorsos e profundos arrependimentos, corações vazios e gargantas sem um som amável ou inspirado. Ela multidão-manada que segue suas debandadas rotineiras, sem se dar conta de que o fim não está próximo, por quanto já passou há muito tempo.