Reza dominical

A P O L O is natanael freitas
Contra Argumento
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5 min readApr 13, 2020

A rotina dominical brasileira é bem diversa, porém em alguns pontos se fundem em tradições nacionais. Seja no galeto com farofa ou acompanhar o futebol no fim da tarde, coisas comuns acabam virando ritos que se perpetuam sem muita atenção. Um ponto que faz parte do meu ritual particular é acompanhar o noticiário esportivo da manhã. Não tão particular assim, pois meus pais e meus irmãos também o fazem com a mesma religiosidade que eu. Hábito esse que segue comigo, mesmo em momentos onde não estou mais na casa dos meus pais, como o que vivo agora.

Hoje são 5 de Abril de 2020 e, como é de conhecimento geral, estamos atravessando um momento peculiar da nossa história. Nós já atravessamos crises financeiras, tanto familiares, quanto globais, porém em nenhum momento vimos uma guinada tão brusca que envolveu nossos estilos de vida. Hoje estamos aquartelados, aguardando por dias melhores e afastados de toda ação possível. Inclusive da ação dos esportes, que permeia nossas vivências em maior ou menor grau, mas com algum impacto. A parada das competições não me tirou o ritual domingueiro, mesmo quando o que podemos ver são só conteúdos preparados bem antes da quarentena vigente nos estados da federação. E hoje em particular, Domingo de Ramos, a tradição religiosa que permaneceu foi a de ligar a televisão logo cedo.

Entretanto, uma das matérias veiculadas me chamou especial atenção: um garoto chamado Murilo falava sobre a sua vida num esporte pouco comum entre homens: as competições de nado. Isso, nado; não natação. O incomum nisso é que é um esporte majoritariamente feminino, principalmente por ser associado a dança, algo artístico e mais voltado para o belo. Não vou aqui me adentrar nas questões de papel/lugar de gênero ou o quanto o esporte exige força e preparo, assim como outros esportes olímpicos. O que me chamou atenção foi as falas sobre a lida com o preconceito. Havia um receio sobre o garoto ser ligado ao feminino, ser chamado de “bichinha” ou acharem que ele “virou uma menina”. E nesse ponto eu vou entrar numa experiência pessoal minha.

Para começar: o ponto aqui não é a discussão do pensamento vigente na cabeça dos interlocutores da matéria veiculada no Esporte Espetacular dessa manhã. Não. Isso me levou a lembrar de momentos que passei por algo parecido (mais uma: também não quero me comparar com o garoto Murilo — minha grande torcida para o seu desempenho).

Há alguns anos, um bom amigo meu tinha o hábito de sempre se referir a mim no feminino. Isso era menos comum na época, apenas amigos gays e mulheres tinha o hábito de se referir em feminino entre si. Homens cis usavam (e ainda usam) o feminino para diminuir outros homens, seja qual fosse a orientação sexual. Bem, mesmo sabendo que nem de longe meu amigo o fazia para me ofender, me via incomodado com os vocativos. Um dia, cheguei para ele e falei do meu incômodo e pedi para ele que respeitasse isso. Ele de pronto fez uma face de surpresa e carinho, dizendo que entedia e respeitaria isso. Porém me falou “Eu pensei que você havia superado isso” e saiu.

Esse é um daqueles momentos que queríamos ter a oportunidade que Steven Universe teve quando usou a Ampulheta do Tempo, no episódio piloto. Assim como Steven, nós as vezes enfrentamos situações que a resposta ou o questionamento só nos vem já depois do ocorrido. Bem, o garoto da animação tem a oportunidade de várias vezes voltar no tempo e dar a resposta que queria a personagem Lars, na loja Big Rosquinha. Bem, nós seres de carne e osso, temos que conviver com o remorso. Na minha situação, o que senti falta de perguntar foi “isso O QUE?”, porém eu tive que buscar essa resposta dentro de mim.

Bem, mais uma informação é que sou abertamente gay, mas o assunto ainda é um grande tabu dentro da minha família, principalmente extrapolando o núcleo familiar principal. Quando pequeno, passei por todo tipo de bullying, mais ainda por andar sempre na companhia de meninas ou só me sentir confortável com elas. Dentro de casa, as notícias do bullying que eu passava na rua se voltavam contra mim, por causa de um “jeito” meu, dos meus gostos, até que uma vez minha avó, depois de me proibir querer aprender bordado, disse “eu não pari filho homem para agir como fêmea”. A voz grave da forte mulher negra ainda ecoa de cima para baixo. Bem, a lógica que nasceu em mim foi: isso tudo acontece por eu dar trela, então eu não posso relaxar.

Anos depois, já me aceitando com atrações mais fortes por homens, o feminino ainda me perseguia. Era comum o tratamento em meio aos amigos do teatro e da dança, porém os homens de fora continuavam a usá-lo apenas como inferiorização de um “igual”. O espaço artístico era o meu cadre, onde me era permitido me livrar das amarras e ser fluído, liberto e sem nenhum peso sobre o como sou tratado. Fora dali, me aguardavam os pensamentos algozes que me acompanhavam no restante da rotina. “Eu não posso dar cabimento” foi um pensamento que guiou para viver bem com todos e não me sentir estrangeiro em terra alguma. Até que numa das mais afetuosas rodas de amigos, esse par me tratou de uma forma diferente. Era visível que o trato dele era de carinhoso, porém a cada substantivo feminino, me vinha a voz da avó gritando contra. Não contra ele, mas contra mim. Eu estava dando cabimento ao trato.

No fim da nossa conversa, eu não me senti mais feliz por ter meu pensamento respeitado. Eu me senti completamente arrasado. A princípio eu não sabia por que, entretanto, lá no fundo eu sabia que havia dado cabimento, na verdade, a voz me repreendendo lá na infância. Não havia vitória nenhuma, apenas derrota. O “isso” que meu amigo citou no final, talvez ele nem soubesse, mas era esse peso do passado que me seguia todo o tempo. O que ele me mostrava é que não havia desrespeito dele para comigo, pois em nenhum momento racional ser tratado como mulher deveria o ser. Isso eu não conseguia enxergar, era duro demais para mim.

Hoje, vendo o pai de um garoto campeão, que sonha em ser ginasta olímpico numa categoria feminina em sua maioria, falar que havia o medo de o filho ser confundido com um menina e que ele teve de superar isso, me fez lembrar o medo que eu tive que superar. Um medo que pode ser chamado até de imbecil, mas que nos torna mais fortes e maduros na passagem.

Vivemos um momento único no esporte, onde cantos racistas e homofóbicos são rechaçados, onde mulheres mostram voz e onde a liberdade individual vai superando aos poucos o preconceito. Para mim, é um momento que posso reconhecer quem eu sou e o que sou e sabem que ser chamado de mulher, significa ter passado lutas e enfrentas batalhas diárias. Hoje eu sei que aquela tristeza que me acometeu após a conversa com meu amigo foi o início do reconhecimento de que a única vez que dei cabimento a alguma coisa, foi quando eu deixei que as vozes passadas me fizessem me sentir menor por ser comparado ao feminino.

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A P O L O is natanael freitas
Contra Argumento

Refresco de groselha, com sabor de limão, mas parece tamarindo.