Descaracterização de Valores

Maurício Szabo
Contra fluxo
Published in
6 min readSep 14, 2015

Porque “inversão” está muito abaixo do que vivemos.

Há muito tempo se fala de “Inversão de Valores”. A idéia da inversão de valores é algo simples na teoria, mas preocupante na prática — é a idéia da maior parte das pessoas preferir o vilão do que o mocinho, por exemplo — basicamente, tudo que premie o que faz mal à sociedade em frente ao que faz bem. Isso é um problema sério pois, na prática, torna a pessoa que faz as coisas de uma forma que não prejudicará os outros uma pessoa “fraca” ou “incapaz”, e premia quem faz as coisas de forma incorreta ou imoral.

O que vivemos hoje, eu sinto, não é só uma inversão — mas uma descaracterização.

Quando eu falo sobre esse tipo de assunto, eu costumo usar o significado das palavras na argumentação. Como um exemplo BEM simples, vamos pensar no caso da palavra “segurança” — eu sempre argumento com as pessoas que ser atropelado por um carro ou por um caminhão é muito mais fatal do que o ser por uma moto, bicicleta, ou por alguém de skate. Nesse sentido, o carro, o caminhão, são muito mais inseguros do que andar de skate, moto, ou bicicleta — mas, na argumentação normal do que é mais seguro ou do que é menos seguro no trânsito, usa-se uma abordagem egoísta que leva em consideração apenas o ponto de vista de quem conduz — conduzir um carro é mais seguro, diz essa argumentação, porque o condutor tem menos risco de se ferir, quando na verdade deveríamos pensar no todo — conduzir o carro é mais perigoso pois o risco de ferir gravemente o outro é maior. Se passássemos a considerar essa situação, provavelmente teríamos uma outra abordagem quanto ao transito, valorizando a atenção especialmente de quem conduz veículos pesados. Mas o ponto que eu quero chegar é no “significado” das palavras — um significado caracteriza algo. Ser “legal” não significa apenas “estar dentro das leis”, como no significado real, mas também “ser algo ou alguém divertido”. Caracterizamos para podermos decidir o que fazer.

Ser legal

O que é “ser legal” nos dias de hoje? É fácil de saber olhando pela janela e ouvindo as pessoas conversarem. E é impressionante o resultado — “fomos pra casa da Fulana, tava todo mundo muito louco. Acordei no dia seguinte sem nem saber aonde eu estava”. Vamos pegar agora o significado dessa frase? “fui à casa da Fulana, e todos tinham ingerido tanta bebida (nos melhores casos, talvez?) que o corpo de todo mundo reagiu a ponto de desligar os sentidos mais básicos numa tentativa de desintoxicar e se manter vivo. Mesmo assim, eu continuei me intoxicando a ponto de desmaiar, e acordar no dia seguinte, completamente desorientado e sequer saber se meu corpo estava bem. Mas ignorei e fui pra casa”. Agora, vamos colocar num outro contexto:

Estava numa festa com um amigo, e passei mal. Desmaiei. Acordei desesperado, perguntando aonde eu estava, procurei desesperado pela minha carteira. Tinha um médico do meu lado me acalmando, falando que eu tive uma insuficiência e desmaiei. Tomei um susto, achei que alguém tinha colocado algo na minha bebida e me zoado, ou me roubado.

Agora, por que a frase acima é tão diferente? Nas duas situações, o corpo da pessoa falhou, ela apagou, e acordou num lugar sem saber aonde estava. Na segunda situação, o desespero é tão grande que a pessoa procura pela carteira, pelos documentos, fica com medo. Na primeira, é “legal” — talvez por que a pessoa optou por fazer isso. Mas perceba: alguém opta por fazer algo que, se ela não tivesse optado, ficaria desesperada. Isso para que? Ser legal?

Os “caretas”

Do outro lado, são os caras que são “caretas”. Aqueles que não bebem, não fumam, não “se divertem”. Na cabeça da sociedade moderna, ir a um parque, deitar na grama, olhar para o céu, pintar um quadro ao ar livre, essas coisas não são “legais”, não são “divertidas”. A diversão deve vir associada de absurdos picos. Não importa qual pico, contanto que você saia do controle completamente.

Na sociedade moderna, todos são achatados para serem as mesmas pessoas. Uma vez vi uma frase: “álcool, porque ninguém começa uma história boa dizendo: eu estava tomando água…”. Não mesmo? O que é uma “história boa”, apenas uma história aonde alguém acaba quase em coma? Quem somos nós para decidir para um grupo de sete bilhões de pessoas — a humanidade — o que é bom e mau, divertido e chato?

A sociedade cai num absurdo extremo quando partimos para esse princípio. Quando descaracterizamos a diversão para algo pré-definido, moldado, um conjunto de regras. Eu, por exemplo, tenho uma audição melhor do que a maioria das pessoas que eu conheço, e uma sensibilidade à luz extrema. Me inserir numa situação aonde essas coisas são intensas — como em baladas, por exemplo — é quase uma tortura. Mas, eu sou o chato, por não ir às festas que me chamam em ambientes com música alta e luzes piscantes.

O engraçado é que o conceito de divertir-se com os amigos e não ser chato é praticamente imposto pela maioria — num ambiente de quatro pessoas, se uma ou duas dessas pessoas não bebe(m), provavelmente as confraternizações serão em bares — ignorando completamente que 1/4, ou metade, das pessoas do grupo não bebem. Agora, quem é o chato? Quem “não bebe, e nunca sai com os outros”, ou “quem sabe que seus amigos não bebem, mas mesmo assim marcam num ambiente que eles não vão gostar”?

Fazer as coisas certas

Levando isso ao extremo, temos a sociedade. Se você paga seus impostos e obedece as leis, você é o “idiota que vai morrer de fome porque o governo nos rouba…”. Hoje mesmo eu ouvi uma pessoa falando: “o povo deveria se unir e…” — quem é “o povo”? Ele não é “o povo”? Da mesma forma, quem é “o governo”? Damos nomes arbitrários para “o bonzinho” e “o malvado”, e justificamos nossos erros argumentando que “os malvados” fazem muito pior. Mas só isso não foi o suficiente para a sociedade — também precisamos de um conceito de “esperto”, “inteligente”, “legal”, que reflita o “malandro”, o “desviar”, o “sonegar”, o “tirar vantagem”.

Eu, por exemplo, ando de moto. Já ouvi pessoas dizendo que eu não tiro 100% do proveito da moto porque eu evito andar entre os carros, não passo em sinal vermelho, etc. Já tomei multas, sim — por velocidade, é verdade — logo, também não sou o perfeito. Porém eu evito andar acima do limite de velocidade, evito fazer manobras arriscadas, e ultimamente, até evito andar muito de moto, já que a sociedade se dá ao direito de punir que faz o que ela considera estar errado, tal como um homem de carro que me fechou argumentando que a moto não pode ocupar uma faixa inteira de carro.

O problema do “fazer as coisas certas” é que vivemos em uma sociedade que culpa quem que fazer. Eu não quero ter que aprender a bater em alguém para evitar uma agressão na rua. Eu não quero ter que aprender a ter jeito mais de malandro pra evitar comentários. Eu não quero me portar, mesmo que momentaneamente, como um “macho alfa” pra não ter comentários nas minhas costas. Basicamente, eu não quero agir de uma forma que eu não acho confortável, só porque a sociedade — esse conceito abstrato — acha que a forma como eu me porto, as coisas que eu gosto, não estão de acordo com o que eu deveria ser. É “divertido” arrumar briga — é só ver a quantidade de vezes que esse assunto roda numa conversa. É “divertido” ver alguém se ferindo — é só ver o número de pessoas que se aglomeram no meio de uma multidão. É “divertido” ofender os outros — é só ver o número de defensores dos humoristas do Brasil que ganham rios de dinheiro ofendendo as pessoas. E as pessoas que querem ser elas mesmas — aquelas que querem prazeres simples da vida, como chegar em casa, deitar-se no colo de uma pessoa querida, pegar os filhos no colo e brincar com eles por horas, essas pessoas são “erradas” — não trabalham 9, 10 horas por dia, não ganham rios de dinheiro, céus, nem carro tem! Nossa, como assim, nem sequer querem morar na Paulista?

Então, sim. Eu sou o errado da sociedade. Sou aquele que tenta seguir as leis, e se dá mal por isso. Aquele que quer confiar na polícia, mesmo tendo precisado dela duas vezes e ter sido deixado na mão. Aquele que atravessa na faixa, mesmo os carros se jogando em cima e depois usando o argumento de que eu devia ter esperado. Sou aquele que não bebe, não se droga, não gosta dos argumento simplistas da sociedade. Para os conservadores, eu sou um “perdido”, um “desvairado”, alguns até arriscam “condenado”. Para os liberais, eu sou um “retrógrado”, um “populista”, um “idealista cego”, ou qualquer outra palavra.

Ultimamente, com o andar das coisas, eu até me orgulho desses títulos…

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