A Narrativa Transmídia em Harry Potter

Ana Luiza Pires
DIG&TAL
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10 min readAug 17, 2021

Esse post tem como objeto de estudo o universo mágico de Harry Potter, no qual o objetivo principal será demonstrar como a narrativa transmídia se configura nos dias atuais, e a maneira como ela pode ser percebida na saga de fantasia criada por J.K. Rowling.

Ator Daniel Radcliffe como Harry Potter. Foto: Divulgação

O universo de Harry Potter

Na saga de Harry Potter conhecemos a história de um menino que, até seus 11 anos de idade, vivia dentro de um armário embaixo das escadas da casa de seus tios. Criado com eles desde bebê e sendo vítima de maus tratos (principalmente por parte de seu primo Duda), o menino acredita ter perdido os pais em um terrível acidente de carro. No entanto, no dia de seu aniversário de 11 anos, Harry conhece Hagrid e descobre ser um bruxo. Apesar de negar inicialmente, não demora para que Harry aceite sua verdadeira identidade.

A partir disso ele deve ir para Hogwarts — uma Escola de Magia e Bruxaria. Lá ele não só faz grandes amizades, mas descobre ser um bruxo extremamente famoso e que, na verdade, seus pais foram mortos por Voldemort, um terrível bruxo das artes das trevas. E é contra esse bruxo e seus aliados que Harry terá que lutar durante toda a saga.

Atualmente, o universo de Harry Potter é uma das maiores franquias existentes, sendo uma grande referência da Cultura Pop. A história teve início com a publicação do livro “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, no ano de 1997. Um ano depois veio ao público a continuação da saga, o livro “Harry Potter e a Câmara Secreta”, e desde então o universo foi se expandindo cada vez mais, e atualmente já possui mais de 20 anos de franquia e é uma das obras mais lidas no mundo.

A história do menino Harry Potter foi contada em 7 livros, que foram traduzidos para mais de 80 idiomas e o primeiro livro da saga é, atualmente, um dos mais vendidos do mundo. Segundo o site Poltrona Nerd, em 2018 a saga alcançou um total de mais de 500 milhões de livros vendidos.

A primeira adaptação chegou às telas de cinema em 2001, antes mesmo da autora ter completado a saga nos livros. Dirigido por Chris Columbus e produzido por David Heyman, os filmes se tornaram líderes de bilheteria na época de seu lançamento.

Além disso, a história não se limitou apenas às adaptações para as telas de cinema. Não demorou muito para que o universo se expandisse em diferentes mídias, e a história conhecida anteriormente apenas nas páginas dos livros passou a ser contada de diversas maneiras, se desdobrando em multiplataformas e se tornando parte do cotidiano de seus fãs. Atualmente a história pode ser vista em jogos para computador e celular, no Pottermore, este um site oficial atualizado pela própria autora, livros ilustrados, funko pops, roupas e diferentes acessórios, além da criação do The Wizarding World of Harry Potter, o parque temático de Harry Potter que está localizado em Orlando e traz diversas atrações baseadas no enredo original da saga, além de figurinos e cenários já conhecidos nos filmes.

Gif de The Wizarding World of Harry Potter, parque temático da saga.

O universo de Harry Potter, então, passa a ser contado através de várias plataformas midiáticas, que se convergem para contar a história de maneira colaborativa, de modo que em cada uma delas novas e diferentes informações sobre a história são acrescentadas. E, tendo como base a perspectiva de Jenkins, essa ação em relação à saga a transforma em uma Narrativa Transmídia.

A Narrativa Transmídia

Esquema representativo da narrativa transmídia. Fonte: http://blog.pucsp.br/csgames/2012/04/09/narrativa-transmidia-e-games-2/

Os estudos em relação à narrativa transmídia tiveram início no século XX. Segundo Elizabeth Evan (VANS, 2011, p. 20–21 apud FIGUEIREDO, 2016, p. 46), “o termo “narrativa transmídia” [transmedia storytelling] foi utilizado pela primeira vez por Marsha Kinder e Mary Celeste Kearney como uma prática promocional envolvendo merchandising, adaptações, sequências e franquias”.

No livro “A Cultura da Convergência’’, Henry Jenkins traz de forma mais aprofundada questões relacionadas à narrativa transmídia e a forma como ela pode ser percebida nos dias atuais.

Atualmente, é notável a maneira como as produções têm apostado cada vez mais na criação de histórias e conteúdos que se desdobram em múltiplas plataformas, abrangendo diferentes mídias. Na transmídia, a compreensão da narrativa se dá no cruzamento entre várias mídias, nas quais elas se estendem e suplementam a narrativa principal, a fim de melhorar a experiência dos usuários em relação às produções, e renovar o interesse dos fãs pela história. No entanto, é válido ressaltar que a transmídia não possui somente interesses narrativos, mas também mercadológicos.

Cada uma das mídias possui um mecanismo e planos de expressões próprios, de forma que os usuários não precisem conhecer todas as plataformas para entender a história principal. No entanto, em uma narrativa transmídia, é necessário que em cada nova plataforma ou meio em que a história for contada alguma informação nova seja acrescentada, de modo a expandir o entendimento inicial da obra e oferecer novos elementos ficcionais e novas experiências.

Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor — a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo. A compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de experiência que motiva mais o consumo. (JENKINS, 2006, p. 79).

Visto isso, é válido ressaltar que uma adaptação por si só não configura uma história como uma narrativa transmídia, uma vez que ela não acrescenta algo novo à história, mesmo que essa adaptação traga um maior aprofundamento da narrativa, seu universo e personagens. “A adaptação de um produto cultural de uma plataforma para a outra não configura narrativa transmídia, uma vez que não acrescenta elemento novo à história, como quando um livro dá origem a um filme fiel à história original.” (SANSEVERINO, 2016, p.6).

A narrativa transmídia surge em meio à cultura participativa e possui determinados princípios que a caracteriza. Em sua entrevista à Revista CONTRACAMPO, Jenkins ressalta que, atualmente, é possível mapear os pontos principais da estética transmidiática em três elementos.

O primeiro elemento está relacionado com uma mudança de foco na narrativa, na qual as histórias passam a dar maior visibilidade a outros personagens envolvidos na trama, e não somente aos personagens principais. “A ênfase recai não sobre personagens individuais e suas histórias, mas sobre formas cada vez mais complexas de construção de mundos” (JENKINS, 2010, p.23). Neste ponto, as extensões da história não precisam estar diretamente ligadas ao enredo principal.

O segundo elemento se relaciona às serialidades. Este termo está relacionado com as narrativas que estão sendo demonstradas de forma expansiva e se desdobrando em múltiplas mídias, de modo a conectar diferentes elementos e criar espaços para compartilhamentos dos usuários. Na serialidade há uma fragmentação dos arcos narrativos, em que parte do conteúdo é desenvolvido em outras plataformas, de modo que permite a audiência transitar entre os meios e agir de forma ativa.

O terceiro elemento está relacionado à subjetividade, na qual a história é contada em múltiplos planos e nos possibilita ter um maior envolvimento com diferentes personagens da trama. Nesse ponto, personagens secundários e situações que não tiveram resoluções passam a ser explorados com maior profundidade, trazendo uma expansão do universo narrativo da história.

A Narrativa Transmídia em Harry Potter

Esquematização da narrativa transmídia em Harry Potter. Fonte: by Sonia Lehnarth-Lewczyńska

O universo de Harry Potter é um exemplo atual de produção que se transformou em uma narrativa transmídia. A franquia, atualmente, abrange diversas plataformas que complementam a história e as experiências dos usuários e fãs de forma específica. E, assim como é característico de uma narrativa transmídia, não é necessário conhecer todas as plataformas para entender a história. São inúmeras as experiências que o público pode ter dentro do universo de Harry Potter, afinal, sua narrativa se expande em diferentes meios.

Assim como cita Scolari, Harry Potter é um exemplo de marcas que “são fundadas em um conjunto de personagens, questões e em uma estética que possa definir aquele universo ficcional. Essas características podem ser reproduzidas e adaptadas para diferentes mídias e gêneros” (SCOLARI, 2015, p.17).

A história do universo de Harry Potter não somente foi adaptada para mídias e espaços diferentes, mas em todos os meios em que a história é contada algo novo é acrescentado à narrativa. Como exemplo de destaque podemos citar a criação do Pottermore, este um site oficial da saga, em que não somente traz fatos já conhecidos sobre a história, mas também uma grande interação com a autora e adição de novos fatos sobre os personagens, a história e, também, dos spin-offs da saga, como “Animais Fantásticos e Onde Habitam”.

Além disso, é notável a presença dos três elementos estéticos da narrativa transmídia em Harry Potter.

Percebemos na franquia uma complexidade na construção de mundos, em que o universo ficcional cruza-se com nossa própria realidade. Um exemplo está no evento de comemoração da volta às aulas em Hogwarts, este executado pelo site oficial da franquia. No universo mágico de Harry Potter os alunos retornam aos estudos no dia primeiro de setembro, e em agosto de 2020, os fãs puderam acompanhar um grande evento com duração de três dias, em que puderam comemorar o retorno às aulas na Escola de Magia e Bruxaria .

Além disso, ainda no mesmo site, os fãs podem fazer o teste oficial sobre a qual Casa de Hogwarts eles pertencem de acordo com suas características. As casas são Grifinória, que representa a coragem; Corvinal, como representante da sabedoria; Sonserina, que se destaca por sua astúcia; e Lufa Lufa, que representa bondade. Na saga, os personagens são escolhidos para as casas de acordo com suas personalidades, e o mesmo ocorre no site Pottermore. Percebe-se a maneira como os fãs da saga levam isso para a sua realidade, comprando roupas e acessórios de suas respectivas casas, chegando até mesmo a fazer cosplays em homenagem a casa em que pertencem.

Captura de tela do site Pottermore

A serialidade também é um elemento que pode ser notado em Harry Potter. Em cada uma das plataformas em que a narrativa se encontra, há um jeito próprio de entender a história. Um exemplo é a própria adaptação dos livros para os filmes e o site Pottermore, em que o arco narrativo é fragmentado e parte do conteúdo é desenvolvido em outras plataformas.

Na saga, a história é contada inicialmente através de 7 livros, que são adaptados em 8 filmes para o cinema. Além disso, tem-se a história no Pottermore em formato de audiobooks, cujo há a narração de Daniel Radcliffe, o ator que interpretou Harry Potter nos filmes. Nesse mesmo site pode ser encontrado também um guia para quem está começando a história, no qual são apresentados resumos, artigos, quebra-cabeças, questionários e até mesmo artesanatos sobre os livros, com o intuito de auxiliar o entendimento da história para aqueles que estão mergulhando agora no universo mágico da saga.

A subjetividade, assim como os demais, também pode ser percebida na narrativa. Na franquia, temos vários exemplos de tramas secundárias que são exploradas em novos produtos e histórias, trazendo também percepções diferentes em relação à narrativa e aos personagens. Como exemplos podemos citar os livros “Harry Potter e a Criança Amaldiçoada”, que se transformou em uma peça adaptada para os palcos do teatro, “Os contos de Beddle o Bardo” e o livro “Quadribol através dos tempos”.

Ademais, tem-se ainda os spin-offs da saga de Harry Potter, que também vem se expandindo e abrangendo cada vez mais. Conhecidos pelos nomes de “Animais Fantásticos e Onde Habitam” e “Animais Fantásticos e os Crimes de Grindelwald’’, nos filmes vemos acontecimentos ligados ao universo de Harry Potter, mas que se passam no ano de 1927, muito antes do nascimento do famoso Harry. Além disso, um terceiro filme de “Animais Fantásticos” já está sendo desenvolvido.

Gif de “Animais Fantásticos”. Fonte: https://images.app.goo.gl/uvc6MtWWKBYKVF4Q7

Considerações finais

Nota-se a maneira como os meios de comunicação têm tido transformações de maneira significativa atualmente. Os conteúdos estão cada dia mais se convergindo e sendo adaptados em diferentes meios e plataformas.

A narrativa transmídia se demonstra uma grande aliada das produções, portanto, percebe-se que há um grande investimento nesse modo de contar histórias atualmente. Vale ressaltar que os fãs e a audiência são um dos principais responsáveis para que uma história transmídia seja bem sucedida, afinal a mesma surge em meio à cultura participativa, com o intuito de renovar o interesse dos fãs pela história e conseguir públicos que interagem e transitem entre as múltiplas mídias.

Autora: Ana Luiza Alves Pires

Disciplina: Estudos da Cultura Digital — RTVI — UFJF

Referências Bibliográficas

ENKINS, H. A Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2003. Capítulo 3 — Em Busca do Unicórnio de Origami — Narrativa Transmídia em Matrix. Disponível em: https://www.nucleodepesquisadosex-votos.org/uploads/4/4/8/9/4489229/cultura_da_convergencia_-_henry_jenkins.pdf

NAVARRO, Vinícius. Os Sentidos da Convergência: Entrevista com Henry Jenkins Revista CONTRACAMPO Niterói, nº 21, Agosto de 2010. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/17190>

SCOLARI, C. Narrativas Transmídia: consumidores implícitos, mundos narrativos e branding na produção de mídia contemporânea. Página 17, 2015. Disponível em: http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/291/298.

GRUSZYNSK, A,C; SANSEVERINO, G,. LUMINA; Dos livros às telas:Harry Potter como uma história transmídia; v. 10, ano 02, p. 17, 2016. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21212/11534

FIGUEIREDO, C.A.P. Narrativa Transmídia: modos de narrar e tipos de histórias. Revista do Programa de Pós-graduação em Letras — PPGL, v. 26, n. 53, p. 46, 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/25079/14480>.

ROCÍO Navarro. Narrativa transmedia Harry Potter. 16 maio 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l8UpHW6dIIk>.

J.K. Rowling Pottermore. [N.a.]. Disponível em: <https://www.wizardingworld.com/>.

DOLORES, B. Harry Potter bate a marca de 500 milhões de livros vendidos no mundo. POLTRONA NERD. 1 fev. 2018. Disponível em: <https://poltronanerd.com.br/culturapop/harry-potter-bate-marca-de-500-milhoes-de-livros-vendidos-no-mundo-65335>.

PACÔNICO, D. Site oficial de ‘Harry Potter’ promoverá evento para comemorar volta às aulas em Hogwarts. A FEBRE. 26 ago. 2020. Disponível em: <https://febreteen.com.br/2020/08/site-oficial-de-harry-potter-promovera-evento-para-comemorar-volta-as-aulas-em-hogwarts/amp/>.

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Ana Luiza Pires
DIG&TAL
Writer for

🎓Estudante de comunicação social na Universidade Federal de Juiz de Fora.