Discursos de ódio em redes sociais e reputação social: A terceira temporada de Black Mirror e os dilemas da cultura contemporânea.

Lucas Souza
DIG&TAL
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9 min readAug 20, 2021

1- A série

Criada pelo roteirista e produtor Charlie Brooker, A série Black Mirror fez muito sucesso desde o lançamento de sua primeira temporada, em 2011 na televisão britânica. Atualmente, a série conta com cinco temporadas. A segunda temporada foi ao ar em 2013, com um episódio especial de natal em 2014; a terceira foi ao ar em 2016; a quarta em 2017; e a quinta temporada estreou em 2019. Cada episódio da série tem uma história independente e explora temas relacionados a tecnologia da comunicação e informação e as possíveis consequências do desenvolvimento científico e tecnológico.

2- A terceira temporada

Comparadas com as outras temporadas da série, a terceira temporada traz uma discussão mais próxima do presente da nossa sociedade, contudo, como ressalta André Lemos no livro “Isso (não) é muito Black Mirror”, essa temporada falha ao não conseguir acertar os principais dilemas da atualidade e do futuro. Seguindo a tradição das temporadas anteriores, a tônica dos episódios da terceira temporada são bem pessimistas, trazendo temas como, as relações sociais baseadas na reputação, a sociedade do controle e a vigilância.

3- A sociedade do espetáculo: o tema queridinho da série

Black Mirror aborda uma variedade de temas referentes a tecnologia no decorrer dos seus episódios autônomos, e mesmo não tendo uma linha narrativa única que os conecte diretamente, é possível perceber um tema que se mostra recorrente. Seja falando sobre realidade virtual, política ou mídias sociais, Black Mirror é especialista em abordar e explorar a sociedade do espetáculo. Espetáculo é qualquer tipo de exibição visual chamativa, como TV, videogames, internet, filmes e a própria vida real.

Em nossa atualidade, o espetáculo que invade os nossos cotidianos vem através de nossas telas. Na série , é possível perceber que as telas sempre aparecem, onde, até mesmo a arte promocional da série (uma tela quebrada) e o título (espelho negro) fazem referência ao reflexo dos smartphones, tablets, computadores e televisões.

4- Analisando os episódios que trazem uma discussão mais próxima do presente

QUEDA LIVRE (Nosedive) — O estabelecimento de relações sociais quantificadas pela lógica do algoritmo.

No episódio “Queda Livre” o ambiente nos familiariza com um cenário futurista onde todas as pessoas fazem parte de uma rede social que integra diretamente a vida real. A interação entre as pessoas se dá mais com a representação que elas têm umas das outras pelas telas dos dispositivos do que de fato entre elas. No episódio, é nítido como as relações interpessoais são frágeis e superficiais, ainda que com familiares, a vida se dá através da rede social.

Para nossa atualidade, seria como se as curtidas no Instagram determinassem coisas práticas da vida, como, o direito à moradia, alugar um carro ou até mesmo realizar uma viagem de avião, o que já pode ser observado em nossa sociedade, onde, as chamadas webs celebridades muitas vezes recebem de graça coisas que pessoas precisam trabalhar muito para conseguir, como, viagens, roupas e bens materiais.

Nesta distopia, as webs celebridades seriam as pessoas cinco estrelas, como ocorre no episódio. As pessoas que pretendem chegar a esse nível, acabam se alienando nessa realidade imagética. Dentro do conceito de espetáculo, esse modelo de sociedade reitera a legitimidade de um exercício de poder e domínio. Nesse mundo, as pessoas precisam se submeter a esse sistema de rede social para poder viver nos padrões de boa qualidade de vida. No episódio, além de todos estarem conectados virtualmente pela rede social, as pessoas têm consigo uma lente de contato que torna o mundo mais aprazível.

A protagonista, Lacie, enxerga através da lente de contato aquilo que foi programado para ela ver, desde sua percepção de detalhes e cores da vida real até a nota que cada um tem dentro do sistema social onde todos se inserem. Desta forma, Lacie não tem como fugir intelectualmente, já que as imagens que ela vê são literalmente manipuladas direto nos seus olhos, impedindo que ela desenvolva o senso crítico daquilo que ela vive, mesmo quando ela é questionada.

De maneira menos radical ao que ocorre no episódio, atualmente podemos perceber que esse controle sobre o que as pessoas podem ver acontece no Facebook, onde, os algoritmos exercem uma forma de dominação sobre o que as pessoas vêm, liberando conteúdos específicos.

Dentro desse episódio, a gente pode observar essas mudanças geradas nos recursos e valores sociais, que são denominados de capital social, proporcionadas por essa mediação das relações sociais pelo computador. Essas mudanças ocasionadas pelas novas formas de conexão nos sites de rede social vão ser muito discutidas no artigo “O capital social em rede: como as redes na internet estão gerando novas formas de capital social” por Raquel Recuero. Dentro do episódio, o capital social em rede passa a ser quantificado e aferido por esses indivíduos e instituições.

ODIADOS PELA NAÇÃO (Hated by the Nation) — A polarização dos debates de ódio em sites de redes sociais.

Situado em um mundo onde animais em extinção podem ser substituídos por versões mecânicas e automatizadas em grande escala, “Odiados pela Nação” apresenta um futuro onde a possibilidade de um assassinato por hashtags de redes sociais é uma realidade. O que torna toda essa situação ainda mais alarmante, é que devido ao anonimato dos usuários envolvidos é praticamente impossível achar um culpado e parar os aparatos tecnológicos usados para essa finalidade.

Embora os pequenos insetos autônomos que agem como abelhas tenham salvado o mundo retratado no episódio, eles não eram capazes de produzir mel, apenas de polinizar as flores, evidenciando que o orgânico nem sempre é substituível. O episódio começa nos apresentando Karin Parke, uma detetive que investigou vários assassinatos ligados às mídias sociais.

Passamos então a acompanhar o primeiro dia em que tudo isso começou, quando Jo Powers, uma colunista, acaba de fazer uma crítica controversa em um site na internet e é morta inexplicavelmente. Outra estranha morte ocorre com um rapper, após fazer um comentário infeliz em uma rede social sobre o jeito que um dos seus jovens fãs dançava. A causa da morte dessas duas pessoas é a mesma, ambos morreram após um objeto de metal sair de dentro de seus cérebros. Este objeto, tratava-se de uma abelha mecânica, é aí que a detetive inicia uma busca a fim de encontrar os responsáveis pelas abelhas robôs .

Blue Coulson se junta com Karin Parke nas investigações e acaba descobrindo como o mandante dos assassinatos opera. A análise feita por Karin e Blue mostra que houve um ataque ao sistema de programação desses drones, e que as abelhas estão sendo usadas para matar as vítimas de ódio na internet. As detetives acabam achando a próxima vítima, uma mulher que através de seu perfil em um site de rede social postou uma foto sendo desrespeitosa.

Todas as pessoas mortas no episódio foram vítimas de ódio na internet. A morte é simbólica, pois apresenta o fim de carreira de toda pessoa pública influente, que diz ou faz algo controverso sendo imediatamente crucificada por outras pessoas na internet, sem a possibilidade de defesa antes do julgamento. Mesmo estando cientes dos eventos e dos resultados, as pessoas continuavam contribuindo para a morte daqueles que julgavam como merecedores.

Esse poder que as redes sociais têm sobre as emoções se relaciona diretamente com os mecanismos das abelhas no episódio. Embora elas possam apenas causar dor física a suas vítimas, enquanto as mídias causam sofrimento psicológico, pode-se entender que não devemos desconsiderar a dor simplesmente por ser mental, apesar de não conseguimos quantificar a depressão que as redes sociais são capazes de provocar, da mesma forma que podemos expressar inegavelmente a dor física das abelhas, não devemos subestimar o peso dela .

No episódio, quando as detetives vão investigar a pessoa que mandou um bolo com uma mensagem desagradável para Jo Powers, antes de seu fatal destino, é possível ver como a mente de um hater funciona. O hater se esconde covardemente atrás de suas críticas e desprezos rasos por algo ou alguém que decidiu colocar um alvo na cabeça, como se fosse um exemplo a ser seguido, e no final das contas, o resultado trágico só o conforta, validando seu raciocínio de que se alguém fez ou falou algo desagradável em seu julgamento, a punição mais extrema é a sentença correta.

Os culpados não sentem que estão fazendo algo prejudicial porque fazem parte de um grupo que os legitima imediatamente. Como sabemos, o ser humano sente uma necessidade de pertencer e até de concordar com outros que demonstram minimamente coerência com seus ideais pré estabelecidos. Dessa forma, repassar uma mensagem afirmando seu domínio, ou simplesmente retweetar, se torna extremamente fácil, pois ter outros tomando a dianteira encoraja os mais receosos.

Com a fácil capacidade de retweetar em sites de rede social, como no Twitter e no Facebook, a nossa sociedade atual consegue repassar com praticidade mensagens com um posicionamento prévio, sem ter o trabalho de formar uma breve ideia, digitar e revisar para só então enviar. Essa praticidade tornou automático para muitas pessoas simplesmente concordar com a opinião alheia, sem se preocupar em confrontá-la ou refletir em cima dela, fazendo com que todo um discurso se torne raso e o debate seja inviável.

No livro “Isso (não) é muito Black Mirror” André Lemos aponta sobre como a polarização dos debates em redes sociais tratados em “Odiados pela nação” estão presentes em redes sociais atuais e como essas ações devem aumentar. Segundo o autor, “Os haters são um fenômeno social mundial contemporâneo”, um fato que já podemos observar ao analisarmos os ataques que perfis públicos e privados sofrem em sites, como por exemplo, no Instagram, Twitter, Tik Tok e no Facebook.

Em um caso recente, um jovem de 16 anos se suicidou após sofrer ataques pelos chamados haters em sua conta no aplicativo de mídia TIK TOK. O vídeo que foi alvo de inúmeros comentários, mostrava o jovem fazendo uma brincadeira com seus amigos, onde ele finge beijar outros amigos do seu grupo. Os comentários do vídeo foram extremamente homofóbicos, contendo até mesmo ameaças de morte. Por não saber lidar com a rejeição que recebeu dentro da plataforma o garoto tirou sua própria vida.

5- Considerações finais

Com a terceira temporada, a série foi chegando aos poucos para uma discussão mais próxima do presente. Como descreve André Lemos, a série não fala do futuro, concentrando suas discussões em problemas do século XX. A pretensão ao fazer uma análise mais profunda dos episódios “Queda Livre” e “Odiados pela Nação” foi de mostrar alguns (poucos) problemas da nossa atual cultura digital, apontando problemas que devem nos fazer pensar hoje a nossa relação com as tecnologias de informação e comunicação. A série como um todo, não nos ajuda muito a enxergar os dilemas e desafios da contemporaneidade.

Referências Bibliográficas

LEMOS, André. Isso (não) é muito Black Mirror. Editora SciElo — EDUFBA, Salvador, 2018.

RECUERO, Raquel. O Capital Social em Rede: Como as redes sociais na internet estão gerando novas formas de capital social. Revista CONTEMPORANEA| comunicação e cultura — v.10 — n.03 — set-dez 2012

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Estudante de Rádio, TV e Internet pela Universidade Federal de Juiz de Fora