On&Off, mundos paralelos do fake no Orkut

Açucena Arbex
DIG&TAL
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11 min readNov 23, 2020
  • Esse texto foi desenvolvido como ensaio final para a disciplina Estudos da Cultura Digital, ministrada pela professora Gabriela Borges no Bacharelado em Rádio, TV e Internet da UFJF.
  • Autoria: Açucena Arbex

A rede social Orkut foi fundada em 2004 pelo Google e recebeu esse nome em homenagem ao seu criador, o engenheiro de software turco Orkut Büyükköktene. O site tinha como objetivo, ajudar usuários a encontrar velhos amigos, conhecer pessoas novas e manter relacionamentos existentes, também contava com fóruns em comunidades onde as pessoas compartilhavam gostos e interesses em comuns. Localizado online no ciberespaço, definido por Kim (2004) como uma espécie de mundo virtual, um lugar que está fora do real, pois não é físico; porém, produz efeitos reais e consequências reais. (apud CORRÊA e JUNIOR, 2018, p.550).

O Orkut fez bastante sucesso no Brasil, sendo um dos sites mais visitados em 2008, mais tarde teve suas atividades encerradas em 2014, devido a dominância atingida pela rede social Facebook, por conta de sua evolução e inovação na época.

Nos anos em que a plataforma permaneceu online, muitos perfis foram cadastrados em seu sistema, inclusive os denominados “fakes”, que formavam um universo paralelo dentro da rede social, funcionando como uma espécie de RPG (Role Playing Game), que significa jogo de interpretações de papéis, tendo como premissa a expressão, imaginação e interpretação dos atores envolvidos, proporcionando a possibilidade de criações de identidades virtuais e experimentações de novas vivências. “Isso pode sugerir um desejo de se viver de forma diferente, ou, ainda, de esconder a imagem real, obtendo assim a oportunidade de estar temporariamente fora das regras que seu corpo físico se vê obrigado a seguir.” (CORRÊA e JUNIOR, 2018, p.554)

Esses perfis foram criados e gerenciados em sua maioria por pré-adolescentes, adolescentes e jovens, que faziam uso de fotos de pessoas famosas, personagens de filmes, séries, novelas, jogos, entre outros, dos quais eram admiradores e fãs. Sandvoss (2005) definiu a atividade de fãs como “o consumo regular e envolvido emocionalmente de determinada narrativa popular ou texto na forma de livros, programas televisivos, filmes ou música, bem como textos populares em senso mais amplo como times esportivos e ícones populares e estrelas, de atletas e músicos a atores”(SANDVOSS, 2005, apud ALVES, 2016, p.258).

Em alguns casos utilizava-se fotos de pessoas comuns, que ficaram conhecidas na internet por postarem fotografias diferentes e criativas em seus perfis, algo menos comum na época, devido aos recursos digitais fotográficos de qualidade não serem muito acessíveis, logo essas pessoas adquiriram destaque e suas fotos ficaram conhecidas no universo fake. O nome que esses perfis levavam em sua maioria não faziam referência direta a pessoa da foto, eram nomes criativos ligados à cultura pop, marcas famosas e a língua inglesa, pois o objetivo predominante da “brincadeira fake”, não era se passar por alguém, mas sim, criar e imaginar um personagem fictício dentro de um universo único e utópico.

Nesse mundo a parte no Orkut, existiam basicamente dois tipos de perfis, os considerados “capengas”, que usavam e abusavam de muitos recursos gráficos na concepção do mesmo, como caracteres especiais, fontes diferentes e coloridas e efeitos exagerados nas fotos, causando uma poluição visual. Receberam essa denominação pelos outros perfis, que eram mais “cleans” e usavam fotos bem editadas com qualidade, não fazendo uso de fontes e recursos especiais no perfil. Esses últimos, geralmente não aceitavam os perfis capengas em suas redes de amigos, pois os consideravam fora do padrão que estabeleceram e do nicho em que pertenciam.

Jenkins, um dos pesquisadores de mídia mais influentes da atualidade, realizou uma pesquisa etnográfica com fãs de séries americanas para seu livro Textual Poachers (1992) e identificou a partir de sua análise, cinco aspectos da cultura fandom (atividades coletivas realizadas por fãs). O quinto aspecto pode relacionar-se com o universo fake, sendo definido como: “Status de comunidade alternativa. Esses grupos possuem valores únicos, às vezes utópicos, em relação à sociedade. Oferecem formas de escape à realidade, que constituem um espaço de compartilhamento de emoções e críticas ao modo tradicional de consumo midiático e cultural.” (apud ALVES, 2016, p.262).

Para pertencer a esse universo, não bastava apenas criar um perfil, era necessário interagir e para que isso ocorresse, existiam muitas opções de comunidades dentro da rede social. O termo comunidade é definido por Booth (2010, p.22) como “o agrupamento de indivíduos com interesses e ações comuns, unidos por alguma forma de mecanismo de adesão”. (apud ALVES, 2016, p.261). As comunidades fakes do Orkut, reuniam em sua maioria milhares de membros e funcionaram como âmbitos imaginários de uma vida fictícia, onde era possível visitar e participar dos mais variados ambientes sociais, como baladas, praias, shoppings, maternidades, agências de namoro, casas e mansões particulares, entre muitos outros “locais”.

Analisando esses ciberespaços pela ótica da psicanálise, Freud denominou de realidade psíquica, um cenário imaginário e imaterial, que toma o lugar de realidade. Oliveira e Ceccarelli complementam essa questão:“Estudando as obras freudianas, encontramos a possibilidade do fantasiar através das histórias dos escritores criativos, nos sonhos, no brincar, nos devaneios diurnos etc. Já na atualidade, com o avanço tecnológico ocorrido nas décadas posteriores aos primeiros escritos psicanalíticos, foi proporcionado ao ser humano a criação de um novo espaço livre para as fantasias se manifestarem: a realidade psíquica é vivida também na realidade virtual” (OLIVEIRA; CECCARELLI, 2015, apud CORRÊA e JUNIOR, 2018, p.551).

Comunidade Fake. Fonte da imagem: https://www.guiadasemana.com.br

As interações nesses espaços, se davam por meio dos fóruns, onde criavam-se tópicos de conversas mediadas por computador (CMC). Para Baron (2002, p.10) a CMC “é definida de modo amplo como quaisquer mensagens de linguagem natural que sejam transmitidas e/ou recebidas através de um computador. (apud RECUERO, 2012, p.2). O modo como os usuários fakes se apropriaram dos fóruns, se diferem muito da forma mais habitual de conversas que ocorriam neles, que geralmente eram assíncronas, opinativas, curtas e diretas. Já as CMC dos perfis fakes, eram síncronas e se pautavam mais em ações descritas pelos usuários, como se estivessem vivendo dentro daqueles ambientes. Essas atuações se davam por meio do uso de caracteres especiais no início da palavra ou frase, que indicavam a ação, criando assim uma narrativa performática. “Jenkins prefere pensar nos consumidores como agentes criativos que ajudam a definir como o conteúdo midiático deve ser usado e, em alguns casos, dão forma ao próprio conteúdo.” (NAVARRO, 2010, p.14). Em relação a esse modo próprio dos perfis fakes interagirem nas comunidades do Orkut, Raquel Recuero aponta:

“A conversação, no ambiente mediado pelo computador, assim, assume idiossincrasias próprias que são decorrentes da chamada apropriação dos meios para o uso conversacional. Ela é, portanto, menos uma determinação da ferramenta e mais uma prática de uso e construção de significado dos interagentes, sejam essas ferramentas construídas para isso ou não.” (RECUERO, 2012, p. 11)

CMC na comunidade Balada Fake. Fonte da imagem: https://www.orkut.br.com

As conversas e interações dos fakes também ocorriam paralelamente em outra extinta plataforma, o MSN Messenger, serviço de mensagens instantâneas criado em 1999 pela microsoft e encerrado em 2013, pelo mesmo motivo do Orkut, tornou-se antiquado em relação às novas mídias que estavam ascendendo. O serviço de mensagens funcionou como uma extensão do mundo fake, possibilitava conversas privadas e em grupos, por meio de uma interação mais rápida e instantânea do que nos fóruns do Orkut, já que o aplicativo alertava o recebimento de novas mensagens, o que facilitava a comunicação, que seguia se pautando basicamente da mesma forma, através das ações, contando com recursos adicionais do MSN, como os gifs (imagens animadas) e emoticons (representação pictórica de uma expressão facial e posturas), que representavam as emoções de forma imagética e simbólica.

Através das diversas interações os perfis fakes criavam laços afetivos com outros perfis, Granovetter (1973) explica que os laços são constituídos de interações que vão acumulando intimidade e confiança, formando laços mais fracos (quando há menos desses recursos envolvidos) ou mais fortes (quando há mais desses recursos envolvidos). (apud RECUERO, 2012, p.601). Os laços fracos se dariam pelo ato de adicionar outros perfis fake em sua rede de amigos, onde o envolvimento e a troca de mensagens eram muito superficiais ou simplesmente não ocorriam. Já os laços fortes, se caracterizavam por um envolvimento maior entre os perfis e o status de amigos se ampliava em outros níveis de relações, onde se envolviam afetivamente com outros fakes, tendo relacionamentos virtuais, casavam e tinham filhos (perfis fakes com fotos de crianças), a maioria dos fakes buscavam parceiros inspirados em casais da ficção ou mesmo da realidade do meio midiático, porém não era uma regra, existiram também os casais que só eram possíveis de existirem no universo fake.

Era muito comum os fakes construírem famílias com outros usuários, que muitas vezes tinham até o mesmo sobrenome no perfil para se identificarem como tal. Esses envolvimentos ocorriam dentro dos fóruns das comunidades, através da imaginação dos usuários, das conversas mediadas por computador (CMC) e da apropriação dessa rede social pelos perfis fakes, onde era possível ir a praia com namorado(a), frequentar uma festa, lanchar no shopping com os amigos e até ter um filho na maternidade. Lemos (2002) define a apropriação como a essência da cibercultura. Para o autor, a apropriação é o produto do uso da tecnologia pelo homem, tendo duas dimensões, uma simbólica e uma técnica. A apropriação técnica compreende o aprendizado do uso da ferramenta. A simbólica compreende a construção de sentido do uso dessa ferramenta, quase sempre de forma desviante, ou seja, com práticas que vão sair do escopo do design de uso desta. (apud RECUERO, 2012, p.13)

O usuários definiam a dualidade do mundo fake e da vida real, com as expressões “on” e off”, abreviações das palavras online (termo utilizado para definir o status de estar presente no meio virtual) e offline (para definir a ausência no meio virtual), então, o termo “on” se refere ao personagem fake e o “off” à pessoa por trás do personagem. Em relação a essa questão, a psicóloga Luciana Ruffo do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática — PUC — SP (NPPI), ressalta:

“A internet é um espaço que nos permite viver uma nova realidade, experimentar um eu diferente do usual, ver como as pessoas reagem aos nossos novos comportamentos. Mas é importante sabermos que o fake nada mais é do que um lado de nós mesmos. Se eu crio um personagem, por mais que este pareça diferente de mim, ele ainda assim vai conter componentes da minha personalidade, do meu jeito de ser.” (RUFFO, 2016)

Um cuidado que os integrantes desse meio deveriam ter, é saber o limite entre o real e o virtual, porém essa era uma linha muito tênue, com isso, algumas relações que se formaram através do fake ultrapassaram o “on” e passaram para o “off”, usuários começaram a se envolver de fato com quem estava do outro lado da tela, pois se identificavam com a essência da pessoa, antes mesmo de conhecer a verdadeira identidade do personagem, que só se revelava para o outro quando existia identificação e se sentiam à vontade para isso, então, surgiram relações afetivas e de amizades verdadeiras, que se encontraram pessoalmente, rompendo com as barreiras entre o virtual e o real e também com as barreiras físicas da distância.

Para algumas pessoas a transposição dessas relações foram favoráveis, mas na maioria das situações isso não ocorria e como o anonimato era algo praticamente garantido nesse meio, o usuário poderia ser representado por quem ele escolhesse, com essa liberdade de expressão e a atuação que o fake proporcionava, através da “máscara” do personagem, muitas pessoas que pertenciam a um determinado sexo em “off”, criavam fake do sexo oposto, que no inicio da brincadeira poderia não ter a intenção de enganar, mas ao se envolverem afetivamente em “off” com outro usuário, mentiam sobre sua verdadeira identidade, fato que poderia gerar consequências, como problemas psicológicos e emocionais no outro individuo, por conta desse envolvimento sem responsabilidade afetiva. Luciana (2016) ressalta:

“Assumir um fake também pode ser uma forma de expor necessidades humanas não satisfeitas na vida presencial como, por exemplo, o desejo de ser amado e querido. Mas quando tais esperanças são depositadas em um perfil fake, o investimento emocional de seu dono tende a ser grande, e consequentemente uma forte decepção pode acontecer quando ele se envolve demais com seus interlocutores virtuais e tenta trazer essa relação para o seu dia a dia.”

A fase da vida em que os jovens estavam passando no momento que participavam do mundo fake, é traçada por muitos questionamentos, descobertas e interações. Em “off” muitos eram tímidos, tinham problemas com a aparência, não dispunham de muitos amigos, tinham dificuldades de se envolverem afetivamente e encontraram no fake um refúgio e um espaço para se socializarem, relacionarem e se realizarem, mesmo que de maneira virtual e fantasiosa, apesar disso, muitos atores agiam em situações daquele universo como se fosse em suas vidas reais, a partir disso o fake contribuiu para a formação de caráter, descobertas relacionadas à sexualidade, desenvolvimento social e interacional desses indivíduos . O fato de ter um perfil fake poderia auxiliar os jovens no autoconhecimento e em vivências sociais novas, como aponta a psicóloga:

“Experimentar é saudável, e pode nos ajudar a integrar ainda mais aspectos de nossa personalidade que são obscuros a nós mesmos. Só vale lembrar que não se deve investir todas as nossas fichas em uma criação, é importante saber separar as coisas cultivando uma vida real saudável para a qual transpor os bons frutos dessa brincadeira.” (RUFFO, 2016)

Após o Orkut encerrar suas atividades, alguns indivíduos que tinham perfis fake, continuaram com essa prática e migraram-se para outras redes sociais de forma mais disseminada e se espalharam pelo Facebook, por blogs e na plataforma russa VK. Porém, as formas de interações e narrativas, não tinham os mesmos sentidos e práticas que o Orkut proporcionou, ganharam características particulares de cada plataforma em que atuavam.

Recentemente um fã do Orkut, desenvolveu um site através do domínio: orkut.br.com, reproduzindo com fidelidade o layout e os recursos da plataforma, que foi sucesso nos anos 2000. O feito homenageia a extinta rede social e está proporcionando aos antigos usuários a experiência de ter novamente um perfil no Orkut. Diante disso, os perfis fakes voltaram a se cadastrarem na rede social e as comunidades fakes ressurgiram, entretanto, a prática de interações não se configuram da mesma maneira e as atuações nas comunidades não são constantes, provavelmente devido ao número de usuários ser bem menor do que na época em que a plataforma existiu de fato.

Essa nova configuração do Orkut, poderia adquirir o status de cult, pois a rede social continua tendo admiradores saudosistas, mesmo após seu interrompimento, como aponta Pearson (2010), a obra cult provoca em seus espectadores uma atração que não é apenas fruto da busca por entretenimento, mas abarca também um envolvimento físico e emocional. (PERSON, 2010, apud ALVES, 2016, p.250). Logo, a possibilidade de reviver a nostalgia dessa rede social, que foi tão apreciada por seus usuários, tornou-se possível através desse novo endereço do Orkut, não oficial, mas com a tentativa de transmitir a essência e a prática da antiga plataforma.

Referências:

JENKINS, Henry. OS SENTIDOS DA CONVERGÊNCIA: ENTREVISTA COM HENRY JENKINS. Entrevista cedida a Vinicius Navarro. Contracampo, Niterói, n. 2, p. 3–25, agosto, 2010.

RECUERO, Raquel. A CONVERSAÇÃO COMO APROPRIAÇÃO NA COMUNICAÇÃO MEDIADA PELO COMPUTADOR. Comunicação, Cultura de Rede e Jornalismo. Editora: Almedina, 2012, p. 1–15. Disponível em: http://www.raquelrecuero.com/raquelrecuerolivrocasper.pdf. Acesso em: 14 nov. 2020.

RECUERO, Raquel. O CAPITAL SOCIAL EM REDE: COMO AS REDES SOCIAIS NA INTERNET ESTÃO GERANDO NOVAS FORMAS DE CAPITAL SOCIAL. Contemporânea, Bahia, v. 10, n. 3, p. 597–617, set./dez. 2012.

ALVES, Clarice. Engajamento de Fãs e o Cult Contemporâneo. TV Cult no Brasil: memória e culto às ficções televisivas em tempos de mídias digitais. São Paulo, 2016. p. 250–280.

CORRÊA, R. D. ; JUNIOR, D. M. PERFIS FAKES, AVATARES E EXBICIONISMO VIRTUAL: O CIBERESPAÇO SOB A LENTE DA TEORIA PSICANALÍTICA FREUDIANA. Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, Belo Horizonte, v.3, n.6, p. 542–559, jul./dez. 2018.

GUIMARÃES, Nathália. Por que o Orkut acabou? Rede social nascia há 15 anos. Leiaja, 2019. Disponível em: https://www.leiaja.com/tecnologia/2019/01/24/por-que-o-orkut-acabou-rede-social-nascia-ha-15-anos/. Acesso em: 14 nov. 2020.

MOREIRA, Eduardo. Por que o MSN Messenger desapareceu?. Targethd, 2019. Disponível em: https://www.targethd.net/por-que-o-msn-messenger-desapareceu/. Acesso em: 16 nov. 2020.

RUFFO, Luciana. Fake nada mais é do que um lado de nós. Vyaestrelar, 2016. Disponível em: https://vyaestelar.com.br/fake-nada-mais-e-do-que-um-lado-de-nos/. Acesso em: 18 nov. 2020.

LOUBAK, Ana. Orkut voltou? Cinco coisas sobre site brasileiro que ‘revive’ rede social. Techtudo, 2020. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/listas/2020/03/orkut-voltou-cinco-coisas-sobre-site-brasileiro-que-revive-rede-social.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2020.

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