Planear é adivinhar

João Sevilhano
Way Beyond Written Conversations
7 min readFeb 7, 2024

A primeira vez que li a frase que escolhi para título deste escrito foi em inglês. Planning is guessing, escreveu o Jason Fried em 2017 . Senti-me aliviado. Alguém tinha escrito de forma simples e directa o que sempre sentira sobre planos, orçamentos e exercícios afins. Alívio é a palavra certa. Nunca sentira legitimidade nem autoridade para dizer ou escrever em voz alta a inquietação que surgia cada vez que me era pedido que definisse o futuro. Aproveitando a inércia desta pequena confissão deixo outra, para ilustrar os meus desamor e desencanto com a futurologia corporativa: já recusei uma boa posição, com perspectivas interessantes, numa empresa de referência, por a função implicar fazer orçamentos. Bem sei que corro o risco de ser interpretado como um fedelho que não sabe como funciona o mundo. Na altura a probabilidade de tal interpretação ser verdadeira era ainda mais alta do que hoje.

Até me ter dedicado a escrever sobre este assunto — que é o mesmo que dizer pensar sobre este assunto — não me tinha dado conta de ser um tema recorrente nas minhas ideias. Ao reler outros textos que escrevi torna-se evidente. Por exemplo, quando escrevi sobre os sentimentos de escassez e rapidez em relação ao tempo .

(…) o acto de prever deixou de ser algo feito por mágicos, mais ou menos duvidosos, para passar a ser entregue a cientistas e a economistas que mudam vidas e planetas com as suas teses. Prever, no fundo, é querer controlar o tempo futuro.

Quando escrevi sobre propósito :

(…) a obsessão com a busca de um sentido último, se tudo o que se fizer estiver alinhado com um propósito predefinido ou desejado onde residirão o espaço e o tempo para a experimentação? E para a novidade? E o espaço para não saber qual será o resultado? A combinação entre as necessidades de ter um sentido predefinido e de prever, o mais possível, o resultado a alcançar pode ser perigosa. Tanto para organizações como para as pessoas.

Também escrevi sobre burocracia e alguns dos seus malefícios.

Surgem, precisamente, para proteger algo que se considera frágil, inconstante, incerto e, por isso, causador de sofrimento. Mais vale um medo conhecido do que uma (possível) liberdade desconhecida. Uma das formas de eliminar o sofrimento que advém do que não se conhece, do que é desprovido de sentido, é retirar-se todo o sentido através de mecanismos de controlo.

Ao reler surgiu-me a hipótese: planear ou orçamentar são tentativas de burocratizar o futuro; em linha com as ideias de David Graeber sobre burocracia, planear e orçamentar são formas de tornar o futuro mais estúpido. Será mais inteligente assumir a realidade em relação ao futuro, que não sabemos nem podemos saber o que nesse tempo reside, ou de inventar uma forma de o tornar mais fácil, mais dócil, através da criação de uma ilusão tão convincente cujo propósito último é limitar qualquer alternativa de desfecho? Ademais, ao colocarmos números e cifras no futuro tornamo-lo mais convincente, mais vendável e supostamente mais sério.

O estratego Roger Martin — um dos meus favoritos na matéria — alerta para os perigos da “ilusão quantitativa” nos negócios. Vai ao ponto de referir, num recente podcast que escutei, que “toda a previsão de receitas é uma expressão da ilusão humana”, e remata com o seguinte raciocínio:

“As pessoas que nos fornecem receitas são os clientes. Estou correto? Nós não fabricamos receitas, de facto. Os clientes ou escolhem dá-las a nós ou não. Então, como se pode orçamentar e prever algo sobre o qual não se tem controlo? É porque se está iludido. Tem-se uma ilusão de controlo de alguma forma. Se eu disser que vamos crescer 12%, então cresceremos 12% e os clientes vão preocupar-se que queremos 12%. Não é assim que o mundo funciona.”

Considere-se o caso da Nokia, líder mundial em telemóveis no início dos anos 2000. A empresa finlandesa planeou minuciosamente a sua estratégia de produto, focando-se em melhorar os seus telemóveis tradicionais. Contudo, falhou em adaptar-se rapidamente à ascensão dos smartphones, em particular após o lançamento do iPhone em 2007. A rigidez da sua estratégia e estrutura organizacional impediu-a de responder eficazmente a esta mudança disruptiva no mercado, resultando numa perda dramática de quota de mercado. Em 2013, a Nokia vendeu a sua divisão de telemóveis à Microsoft, marcando o fim de uma era. Este exemplo ilustra como o apego excessivo a planos e estratégias pode cegar-nos para oportunidades emergentes e ameaças imprevistas, mesmo quando somos líderes de mercado. Como este, muitos outros exemplos conhecidos poder-se-iam ter citado…

Há outras disciplinas, como a Meteorologia ou a Sismologia, que se esforçam por nos permitir acesso ao futuro. O seu sucesso é crucial, em muitos casos, para a vida de muitos de nós, em sentido literal. Penso que será fácil de concordar que nenhuma destas áreas é uma forma de Arte e que pertencem ao domínio da Ciência. Apesar de avanços espectaculares, nenhuma delas é infalível. A nossa capacidade de ler e interpretar os fenómenos que observamos melhorou imensamente e continuará a melhorar. Porém, continuamos a queixar-nos das previsões quando a roupa que escolhemos não é a mais adequada às condições que encontramos. Apesar dos avanços e das melhorias da previsão, alguns de nós continuam a jurar que os seus joelhos prevêem chuva ou humidade com precisão superior ao modelo meteorológico mais sofisticado, apoiado pelos supercomputadores mais potentes.

Os sismólogos sabem onde acontecerão catástrofes mas são incapazes de saber quando. Esta combinação de certeza com imprecisão deixa-nos perplexos e inseguros e, estranhamente, ou não, ao mesmo tempo, traz-nos alguma tranquilidade, pelo menos até algo importante e grave acontecer.

Contudo, por mais complexos que sejam estes fenómenos naturais, a previsibilidade humana apresenta desafios ainda maiores. Apesar de sermos parte da Natureza, nós, humanos, não funcionamos de forma tão simples quanto esses outros complexos fenómenos naturais. Acontecimentos meteorológicos e sísmicos, apesar de complexos, não chegam aos nossos calcanhares. Somos dificílimos de prever. Afinal, somos nós quem determina o que é objectivo e subjectivo. Talvez seja por isto que desde que sabemos que somos gente estamos obcecados com o futuro e com quem de nós alega conseguir prevê-lo, ou adivinhá-lo

Com esses de nós deveremos ter cuidado, mais que admiração. Os adivinhos sempre se confundiram com Deuses. A culpa pode estar mesmo na palavra “adivinhar” que, em português, mas também noutros idiomas, tem uma interessante origem etimológica: a palavra “adivinhar” tem raízes interessantes que reflectem a nossa relação com o futuro. Proveniente do latim addivinare, combina o prefixo ad- (“para, em direção a”) com divinare (“prever, profetizar”). Esta origem liga-se a divinus (divino), sugerindo uma capacidade sobrenatural de prever o futuro. Com o tempo, o significado evoluiu para incluir deduções e intuições mais mundanas. Esta evolução espelha a nossa constante busca por compreender e antecipar o desconhecido, seja através de poderes místicos ou de raciocínio lógico.

Como é sobejamente conhecido, a intuição e as capacidades de dedução e de inferência são falíveis. Por outro lado, são precisamente estas características que nos permitem avançar, criar e imaginar cenários futuros que, ora nos assustam, ora nos inspiram e entusiasmam. Para já, chamo a atenção para a falibilidade destes movimentos quando procuramos prever o futuro.

Um dos problemas da intuição, da dedução e da inferência é que são grandemente processos automáticos, com muitos mecanismos inconscientes subjacentes. O mesmo é dizer que são contaminantes da nossa atenção. É precisamente por isto que a investigação nos mostra que os peritos não são grandes preditores do futuro. Quando confiamos demasiado nas nossas preconcepções, na nossa intuição e no nosso “piloto-automático”, tendemos a fixar-nos no que já sabemos e a filtrar os sinais que a realidade nos oferece para corroborar “histórias” que já estão por nós criadas. O já citado Roger Martin também nos adverte para o problema de prever o futuro com dados do passado, já que “o futuro é muito diferente do passado”.

Para nos tornarmos melhores preditores do futuro há que abraçar uma das suas características que mais nos incomoda: não o conhecemos. É importante saber mas mais importante é saber pensar. É fundamental cultivar uma “mente aberta activa”, que implica duvidar activamente dos nossos conhecimentos e das nossas crenças. Segundo o psicólogo Jonathan Baron, as pessoas que evidenciam esta característica tomam em consideração provas que contrariam as suas crenças, prestam atenção a quem discorde de si e têm facilidade, até vontade, de mudar a forma como pensam. O objectivo de tal exercício não é provar que estamos certos ou errados, embora essa possa ser um subproduto. O intento deve ser ampliar a nossa atenção para lá do que estamos habituados a ver e a valorizar.

Um acto de pura atenção, se formos capazes disso, trará a sua própria resposta. Cada descoberta real feita, cada decisão séria e significativa alguma vez alcançada, foi alcançada e tomada por adivinhação. A alma agita-se, e cria um acto de pura atenção, e isso é uma descoberta.

D.H. Lawrence

Não há nada de errado com a nossa intuição nem com o acto de querermos prever o futuro. Planos, orçamentos e adivinhações afins têm a sua importância mas não são o mais importante. O mais importante é não ficarmos prisioneiros de nós próprios ao fazer tais exercícios. Em última análise, o verdadeiro valor do planeamento não está na precisão das nossas previsões, mas na flexibilidade mental que desenvolvemos ao considerar diferentes cenários. A chave é manter um equilíbrio entre a necessidade de orientação e a capacidade de adaptação. Ao reconhecermos que “planear é adivinhar”, libertamo-nos da ilusão de controlo total e abrimo-nos à possibilidade de inovação e crescimento genuínos.

  1. Planning is guessing
  2. Sobre o tempo: escassez e rapidez
  3. A propósito de propósito
  4. Os burocratas emocionais
  5. David Graeber (2015) The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy
  6. Roger Martin (2020) When More Is Not Better: Overcoming America’s Obsession with Economic Efficiency
  7. Leading with Strategy — with Roger Martin, Phenomena, ReD Associates, 5 Junho 2024
  8. The Fault in Our Forecasts
  9. How not to predict the future
  10. Desmontar o Óbvio e Cuidar da Intuição
  11. Atentemos ao que se presta atenção e aprendamos a distrair-nos melhor

Originally published at https://www.waybeyond.pt on July 2, 2024.

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