Pela liberdade, para a liberdade

Uma investigação sobre as raízes da liberdade na natureza humana

Rafael Nogueira
Convite à Filosofia

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O presente ensaio é um experimento de busca pelas raízes da liberdade na natureza humana. A ideia central busca demonstrar como o livre-pensamento é o estado natural do ser humano — ora desnaturalizado, portanto, sem acesso aos instrumentos e técnicas do livre-pensar —, e de como é dele que derivam as demais liberdades protegidas pelo direito internacional e pelo direito dos povos, sem o quê, os enunciados legais não passam de letra morta.

A esfera elementar da liberdade

A liberdade mental (que, embora esquecida, é a essência da liberdade individual) exige uma postura defensiva e outra afirmativa; uma que preserva, outra que realiza.

O martelo quer pregos para martelar. O sujeito simplório, o bom rapaz, seguirá os padrões que lhe foram ensinados, sem liberdade de escolha, porque nem concebe essa possibilidade. Tornando-se martelo, martelará. Se se tornou prego, será pregado. TERTIUM NON DATUR.

A defesa acontece quando se evita a internalização de padrões não julgados, e quando se exerce o direito de não se deixar subjugar por imposições.

Há padrões que vêm de dentro. O ser sente de determinada forma e, por isso, parece-lhe que o mundo deve agir segundo a orientação do seu sentimento. Isso não acontece, porque a realidade é teimosa e não se sujeita às ilusões de uns e outros. Isso constrange, faz sofrer. Algum amadurecimento deve surgir daí. Liberdade sem limites é ilusão de tolos.

Os padrões de dentro têm seu trabalho facilitado ou dificultado pela cultura absorvida pelo ser. Aquele que submete a cultura na qual nasceu e cresceu ao seu crivo, ficando com o que lhe parece bom e abandonando o que lhe parece ruim, exerce a liberdade. O mesmo não pode ser dito do crédulo, do cético e do rebelde.

Não basta uma decisão súbita em prol da liberdade para ser livre. Submeter uma cultura à crítica é uma síntese quase criminosa do processo. Julgar uma cultura inteira, tendo sido criado nela, é quase uma aberração. É preciso, primeiro, munir-se de instruções que fortalecem e equipam a mente para a tarefa. Geralmente, essas instruções não se encontram com facilidade. E quando são encontradas, faltam os instrumentos necessários para o aspirante a homem-livre levar sua obra a cabo. E depois, a capacitação para alcançar a perícia nos instrumentos.

Se o padrão lhe indica que deve se divertir de algumas formas e não de outras, será preciso entender muita coisa antes de poder levar a juízo essas formas. O ideal é que se entenda a natureza da diversão (padrão natural do homem) para que se compare este conceito essencial com aquele que ali é preticado. E de um ponto de vista menos metafísico e mais científico, cumpre tomar notas a respeito dos efeitos dos divertimentos nas pessoas que viveram segundo esse padrão, nas que vivem, e em si mesmo. Para encurtar a história, é preciso entender. O ideal é que se entenda. Entender para, depois, analisar, refletir e julgar.

Entender grandes conjuntos é possível com ajuda de alguém que vê, no sentido de Epicarmo, mas para quem começa de si mesmo, o jeito é pegar pedaço por pedaço, conforme o alcance da visão mental, para depois, formar sínteses mentais.

“É a inteligência que vê, é a inteligência que escuta — todo o resto é surdo e cego.” Epicarmo (poeta grego)

Começar pelos divertimentos, por exemplo, é melhor que começar pela cultura brasileira, caso se queira delimitar assim. Porque mesmo as culturas estão inseridas em quadros culturais maiores, as chamadas civilizações, e essas matrizes são difíceis demais entender, porque exigem conhecimentos históricos vastos.

Moldes (ordens impostas) e montagens (ordens naturais) na história

A liberdade humana está escondida debaixo de escombros. O ser humano, por algum motivo que não sei explicar, está desmontado. Seu funcionamento perfeito, que já é bem limitado por natureza, está ainda mais limitado por erros ligados à educação e à cultura. Não convém analisar isto agora, mas, se é que falo de um fato e não de algo que apenas imagino ser real, parece-me que a causa desse quebra-cabeças desconstruído não tem nada a ver com um certo caos trazido por uma malévola modernidade.

A modernidade agrediu a religião política e a política religiosa. Com muita esperança, com muita fé, pôs o estado no lugar. Pelo estado, os seres deveria por ordem no caos. Golpeando a religião e as antigas estruturas de poder, o homem moderno ficou sem chão. Em muitos, apareceu aquela saudade do Paraíso que todo aquele que come contrariado o fruto da árvore do conhecimento sente.

Não é correto dizer que antes da modernidade os seres estavam montados como manda a natureza. Só defende isso quem é interessado. Homens e mulheres estavam mais ou menos moldados como manda o credo. Mas não montados. E havia muitos credos e muitas variações do mesmo.

A novidade medieval foi a de trazer de volta ao mundo a vida edênica da antiguidade pré-clássica. Quando tudo se lhes responde de antemão, pensar se torna um luxo desnecessário.

Nos países onde a chispa grega brilhou, estouraram revoluções. Nos povos herdeiros das revoluções, à tutela espiritual e política, geralmente com combinações mais ou menos íntimas entre ambas, foi preferida a tutela realizada por seres eleitos do povo, pelo povo. O estado ganhou força, não o povo. O político ganhou poder, não o homem.

Sem orientação nem verdadeira nem falsa, cada homem dos séculos XIX e XX absorveu os padrões despadronizados de sua cultura, e, na medida em que seu ambiente o permitiu, deu seu complemento, senão público, privado. O brasileiro desses séculos imitou os padrões de seu tempo e lugar — seus hábitos, sua religião, sua classe social, sua raça, sua formação intelectual — e inventou alguma coisa que lhe pareceu melhor. Alguns insurgiram-se contra essas limitações. Outros, apenas inventaram formas novas de viver dentro desses cercos.

Chamei os padrões de despadronizados porque depois da modernidade os padrões acabaram voltando a se impor de uma forma cada vez mais homogeneizante. E isso não impediu que mudanças fossem feitas com cada vez mais velocidade. Os erros de um lado do mundo passaram a percorrer o caminho do globo com facilidade. Novos padrões amalucados surgiram e se impuseram.

Falar de liberdade, nesse contexto, parece piada. Mas não é piada. Do ato de quebrar uma ordem não decorre necessariamente o estabelecimento de uma nova ordem, melhor que anterior. Da revolução americana surgiu uma nova ordem cuja proposta principal era a de preservar a liberdade. Da revolução francesa, o caos puro e simples, porque ao invés da liberdade priorizaram a manutenção de outros valores. Esses outros valores criam padrões a se impor e não permitem que todos façam parte dessa oficina social que é a política da liberdade. Os seres têm que se enquadrar na ordem imposta, de onde emerge o caos, porque ninguém aceita imposições sem muito artifício mistificador ou psicológico.

A tarefa do homem de hoje é a aproveitar a margem de liberdade que existe por causa desse monta e desmonta, por causa dessa sucessão contínua de faraós sem divindade, por causa do impressionante circular de informações. Aproveitar essa estreita margem de liberdade com o fim de abrir espaços para a liberdade dentro de si, para si, para os seus, e para a coisa pública.

Da conduta assertiva

A assertividade é a capacidade de se afirmar. Afirmar-se na defesa e na realização. Não consegue exercer a própria liberdade aquele que entende e julga sua cultura, mas não se afirma sobre ela.

Nas dúvidas e confusões individuais, é preciso que o ser decida entre muitas opções que lhe vêm de dentro. Na convivência, tem que defender o que pensa e sente, e o tempo que lhe é devido caso ainda não saiba bem o que pensa e sente, quando alguém o pressiona de fora. E a vida comum, por ser inculta, está cheia de eventos diários daquela pressão psicológica que leva à anulação da capacidade reflexiva. Tem que saber dizer não, tem que saber precisar os limites de tempo e energia, tem que saber ser sincero sem ser grosseiro, tem que saber …

[Continua…]

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Rafael Nogueira
Convite à Filosofia

Estudioso pangnoseológico inspirado pelo exemplo da noz: cérebro bem nutrido protegido por uma casca grossa.