A crise de identidade de Liga da Justiça

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
5 min readNov 20, 2017

--

Liga da Justiça começa com um clichê simpático, o do herói sendo gravado pela lente do smartphone de uma criança. O herói em questão é Superman, que conversa com um garoto sobre algo que é completamente ofuscado por uma cobertura de efeitos digitais medonha feita para ocultar o bigode do ator Henry Cavill. A cena em si não é essencial para o roteiro, não adiciona nada à trama, foi feita única e simplesmente porque a DC/Warner decidiu, depois das críticas ao pesado Batman V Superman e do sucesso absoluto de Mulher Maravilha, dar um tom ainda mais leve ao filme e tentar corrigir um herói adaptado de maneira equivocada em O Homem de Aço. Cavill, com um bigode que não podia tirar por conta de seus próximos projetos, atendeu prontamente ao chamado do estúdio e gravou a cena em questão.

Se conseguíssemos ignorar o efeito absolutamente bizarro entre o nariz e a boca do ator, poderíamos entender até melhor este novo direcionamento do herói. Ele brinca com o garoto, faz piada e tenta se tornar um símbolo de esperança e justiça. Esta cena, por mais que tenha sido filmada e incluída quando o filme já estava em estágio de pós-produção, curiosamente representa todo o modus operandi não só deste, como de outros estúdios quando lidam com produções desta magnitude. O medo de perder uma aposta de 300 milhões de dólares aliado a uma época de comunicação constante com público e crítica faz com que os produtores queiram ajustar o produto final para atender tendências que mudam todos os dias.

O resultado é, claro, uma história disforme e inflada e que foi ainda mais agravada quando, no meio da produção, substituiu seu diretor. Por mais que os créditos tragam apenas o nome de Zack Snyder — que se afastou por conta de um problema familiar — é sabido que Joss Whedon (ex-Marvel responsável pelos filmes dos Vingadores) foi o cineasta responsável por finalizar o longa. Talvez a gente nunca saiba qual foi o ponto exato de mudança e quais decisões são responsabilidade de qual realizador, mas o fato é que Liga da Justiça é uma obra que apresenta todos os sintomas da falta de personalidade descrita acima.

Depois deste incômodo encontro com “bigode oculto” é que a trama realmente avança. Encontramos Batman agredindo um ladrão em algum terraço de Gotham City e, logo em seguida, utilizando o medo do criminoso para atrair um alienígena. A criatura em questão é um parademônio, uma espécie de soldado inseto humanoide das tropas de Steppenwolf, o esquecível vilão principal deste longa (mas como vilão ruim é provavelmente um padrão do universo, nem vale refletir muito sobre). É por conta da magnitude desta ameaça que o Homem Morcego precisa, ao lado da Mulher Maravilha, reunir os poderosos meta-humanos que formarão o grupo do título. Mas se a apresentação do Batman é deveras empolgante (já afirmei no meu texto sobre Batman V Superman que esta é a versão mais interessante do personagem no cinema), o nosso reencontro com a heroína amazona é surpreendentemente enfadonho. Não que a ideia de ver a heroína em ação mais uma vez, depois do ótimo filme solo, não seja algo positivo. Mas a cena de ação que a apresenta é, por falta de adjetivo melhor: chata, com uma câmera lenta excessiva e efeitos visuais medíocres, na melhor das hipóteses.

E assim, morosamente, o roteiro segue em sua estrutura de nos apresentar aos personagens que compõem a Liga. Aquaman numa bela propaganda de perfume, Flash em monólogos irritantes disparando inúmeras piadas a cada sentença e Ciborgue num micro drama familiar com tons de Frankenstein que é realmente interessante. Quando todos os heróis se reúnem, lá pela metade do longa, é que nós voltamos ao conflito que se desenrola até o final. Mesmo que esta monótona estrutura quadrada seja um dos problemas do filme, contudo, não consigo imaginar de que outra maneira os roteiristas Joss Whedon, Zack Snyder e Chris Terrio poderiam apresentar todos estes personagens e criar as relações entre eles. É uma armadilha que a DC armou para si mesma quando decidiu pular todos os filmes de origem e partir direto para o filme de equipe. Para além da estrutura, o script sofre muito com a obrigação das piadas. Se no caso do Flash as observações engraçadinhas são apenas irritantes 90% das vezes, quando é o Batman quem tenta os gracejos, as tentativas são tristemente patéticas. Um resultado muito esperado, visto que há um filme ele era a representação mais crua, violenta e sombria do homem morcego e agora está fazendo gracinhas o tempo todo.

Mas para não dizer que o humor não funciona nunca (afinal se você tenta fazer algumas centenas de piadas em menos de duas horas, algumas delas acabam dando certo) o roteiro acerta quando o brutamontes Aquaman é compelido a falar a verdade graças ao laço da Mulher Maravilha e também quando Flash faz acertadamente referência ao Cemitério Maldito, de Stephen King. Ainda nesta perspectiva positiva sobre o longa, vale citar a ótima sequência de ação que se passa na ilha das amazonas. Apesar dos efeitos visuais fracos, a coreografia e direção da cena são, pra mim, o ponto alto do filme. Uma pena que este ápice tenha sido alcançado logo no primeiro ato.

Sem nada para destacar positiva ou negativamente aqui, o que resta é dizer que Liga da Justiça não é um filme odioso. Percebemos claramente uma vontade de ajustar o universo que era muito dark, um bom elenco apesar de personagens muito voláteis em suas construções e também muito potencial a ser explorado nos próximos capítulos. Tomando o longa como obra isolada, contudo, é preciso reconhecer que este é um filme que não possui uma identidade própria, que carece de personalidade justamente por querer se ajustar a uma demanda de mercado que é muito diferente da base sombria e iconoclasta estabelecida por Snyder.

PS: O filme tem duas cenas pós-créditos.

--

--