Bacurau: guisado, suco de caju, música americana e o direito de existir

CRITICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
6 min readSep 21, 2019

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Bacurau chegou como um tipo de catarse por aqui. O potencial de impacto dessa experiência curiosamente me lembra muito de Tropa de Elite, dadas as proporções, mas com a chave política trocada. Se lá, ainda que não seja de forma deliberada, o filme atua como uma fantasia de uma vingança violenta contra a criminalidade e a corrupção — com um protagonista que se tornou um herói dos conservadores raivosos — aqui, o terceiro longa metragem do crítico cineasta Kléber Mendonça Filho (em parceria com Juliano Dornelles, desta vez) serve como uma busca da força do senso de comunidade enquanto ferramenta da luta de classe. Também carregado de um ódio direcionado, o longa vencedor do prêmio do júri no festival de Cannes, enxerga seus inimigos nas elites (tanto na esfera local como na mais “gringa” e intervencionista). É um filme necessário, que nos traz a narrativa certa no momento certo, em que o país enfrenta uma crise de identidade vinda de um desmonte político que começou com um golpe de estado legalista e que se agrava ainda mais ao passo que um suposto salvador da pátria — escolhido pelo povo — se mostra dia após dia o que ele sempre foi: um ignorante fruto de uma carreira parlamentar vazia guiado por um compasso moral que se agita mais que uma biruta em um furacão. E o fato do presidente, protagonista desta decepção nacional, ser um títere dócil do imperialismo norte-americano, é mais um ingrediente que potencializa demais o sentimento causado pelo filme.

A história é simplória na superfície. O roteiro assinado também por Dornelles é o mais direto ao ponto da carreira de Kléber em enredo e estrutura: a cidade isolada, a ameaça forasteira, a luta. Porém é o que há por debaixo disso que mais mexe conosco. Me refiro sim às leituras todas que podem ser tiradas dos diálogos, da situação e das alegorias, mas falo principalmente do elemento que mais dá estofo ao script: a imensidão que se esconde dentro de cada personagem. Diferente do profundo estudo da protagonista que fez com Sônia Braga em Aquarius (filme anterior do cineasta), este se apoia sobre um microverso dentro da comunidade e que serve como um eco da realidade — o que faz lembrar muito mais ao primeiro longa de dele: O Som ao Redor. Mas, se lá, a trama se desenrolava a partir de dois ou três moradores daquela rua de classe média recifense, aqui os pequenos fragmentos que recebemos são suficientes para criar um dos pilares de sustentação do longa e muito mais. Eu consigo imaginar narrativas inteiras só com os rumores e olhares que ouvimos e enxergamos sobre Pacote, Domingas, Dona Carmelita, Michael e Lunga, principalmente. E o elenco, uma miscelânea de amadores e intérpretes consagrados, traz à a vida a gente tanto de Bacurau como de fora.

Só pra tomar um momento como exemplo disso, numa das primeiras cenas do filme, num café da manhã, a troca de olhares entre Teresa e Pacote é suficiente pra gente descobrir que os dois viajaram Brasil afora e não gostaram do que encontraram no caminho. Babi Colen e Thomas Aquino dão conta de todas as outras camadas que a gente descobre sem a necessidade de verbalizar: o histórico dos dois, a tensão sexual, a saudade. O teor político do roteiro, mais assumido e claro que a construção dos personagens, usa e abusa de referências muito brasileiras e muito presentes pra nós. O coronelismo familiar da nossa política está explícito no fato do prefeito responsável pelo distrito ser um “Júnior”; o ranço da xenofobia sudestina tão presente no dia a dia de quem vive abaixo da Bahia se desdobra a partir dos dois motoqueiros do “Brasil mais ao sul”, “uma parte diferenciada do país”; e, pra quem gosta de interpretar os números, o 150 da campanha política e os 17 km de distância da estrada principal para entrada da vila podem ser lidos respectivamente como referências bem diretas ao MDB, partido mais fisiológico e hegemônico da história da nossa democracia (e da nossa ditadura) e ao PSL, veículo que levou Bolsonaro ao Planalto. A explicitação do discurso principal do filme, porém — o da importância da consciência de classe que nunca deveríamos ter abandonado enquanto povo — não poderia ser colocada de forma mais concreta e eficiente do que com o embate que acompanhamos da metade para o final entre invasores e nativos.

O cenário é uma tese por si. Afinal, é o nome da cidade que dá um título ao filme. Filmada em Barra, uma vila minúscula incrustada no sertão potiguar, Bacurau pode parecer, a princípio, como mais um dos tantos povoados espalhados pelo país. A maneira como ela é filmada, contudo, é como uma fortaleza, como um refúgio. Mas, mais que isso, uma utopia política da nossa resistência enquanto povo. Nesse sentido quem fala são os prédios: a igreja que tem uma serventia de esconderijo, santuário e depósito, a escola João Carpinteiro (John Carpenter?) é um forte. Já o museu está lá para que essa gente possa se armar e reagir aos ataques externos. O paralelo que se faz a partir disso não poderia ser mais claro no que diz respeito à importância que a religião, a educação e a história têm para a gente de lá.

O invólucro de tudo isso é o que todas as expectativas apontavam que seria: um sangrento faroeste sertanejo. Se engana quem pensava que as fontes da qual Kleber e Juliano bebem são necessariamente o cinema heróico de John Ford ou o oeste sujo com inspirações asiáticas de Sergio Leone. Embora seja praticamente impossível fazer qualquer filme do gênero sem remeter aos mestres, onde eles buscam matéria-prima para a concretização desse paradoxo — um western onde os bandidos invasores são os próprios estadunidenses brancos — é nas obras ditas escapistas do pós-Vietnã, como no cinema de John Carpenter, um dos maiores diretores de cinema “B” de toda a história (que inclusive faz parte da trilha sonora com seu tenebroso e psicodélico tema noturno); na ficção científica com o céu estrelado em destaque na primeira cena (quase idêntica à abertura de Enigma do Outro Mundo) e as cortinas de transição da montagem que remetem ao Guerra nas Estrelas; ou nos próprios faroestes revisionistas da mesma época, filmes com poucos heróis, sem esperança alguma e com sangue de sobra, que estão as fontes principais de Kleber e Juliano. Tudo isso sem largar a identidade própria que é o norte de uma obra que, apesar de abarrotada de referências de um cinema comercial muito Hollywoodiano, consegue, no fim das contas, se distinguir pela tremenda potência regional em seu cenário, em seus temas e em seus personagens.

KMF e Juliano Dornelles no set de Bacura, na cidadezinha de Barra, RN

É um primoroso exemplo de cinema nordestino — que é a locomotiva desta forma de arte aqui no Brasil desde que passou a existir no país. Mas o fato é que, quando nós do Sul falamos disso, é fácil cair na armadilha de discutir as obras como se pertencentes a um povo estrangeiro. Como se a gente “daqui de baixo” fosse realmente de um lugar diferenciado. A principal marca que Bacurau me deixa é justamente a consciência de que essa convocação à luta e ao pertencimento é também pra gente daqui e que, quando alguém “de lá de cima” se fere, é também nosso o sangue que escorre. E este sangue há de lavar nossos olhos. E a semente psicotrópica que Damiano entrega aos bacurauenses há de expandir nossa mente para a possibilidade de lutar com unhas e dentes (com revólveres e peixeiras, se for necessário) para protegermos nossa identidade de quem quer nos apagar do mapa.

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