Blade Runer: 2049, quando a artificialidade é mais incômoda que a insignificância

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
9 min readOct 11, 2017

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No primeiro Blade Runner, a tragédia pessoal de Rick Deckard, um caçador de andróides preso numa Terra povoada quase que exclusivamente por um estrato social marginalizado (insignificante para a elite que há muito foi morar nas colônias fora do planeta), era a de conviver com a sua própria insignificância. E, quando recebe a incumbência de localizar e matar quatro replicantes que fugiram de suas funções, é confrontado com a ideia da finitude que eles tanto temiam. Ao passo que ele meramente existia e sobrevivia, os quatro “criminosos” caçados por ele lutavam e estavam dispostos a fazer o que fosse preciso para estender as sua curta expectativa de vida e resistir às datas de validade que os condenavam. É por causa da complexidade deste conflito que a tétrica frase dita pelo introvertido Gaff (Edward James Olmos) ecoa relutantemente na tanto na cabeça de Deckard como nas nossas até hoje: “É uma pena que ela não viverá. Mas afinal quem vive?”

Trinta anos depois, o detetive ‘K’, interpretado por Ryan Gosling em Blade Runner 2049, a princípio parece replicar os conflitos do protagonista anterior, mas a angústia que o define é da artificialidade que o cerca. Especialmente em um mundo em que replicantes vivem muito mais (ainda que menos intensamente), as dúvidas sobre o que é real, quem é real ou o que sequer significa realidade ou artificialidade (que também faziam parte do filme original apesar de não serem tão definidoras daquele protagonista) pairam relutantemente sobre esta história. Esta diferença é essencial para entendermos o porquê deste filme conseguir tão bem se sustentar para além de uma simples continuação do clássico de 1982. Afinal, ele não só continua o enredo, como preenche lacunas e pondera sobre o universo apresentado no primeiro filme. Para além disso, reflete os temas do original por meio dos próprios fundamentos filosóficos.

Ao invés de caçar replicantes erráticos, a missão deste blade runner surge depois de uma descoberta que, caso viesse a público, serviria como uma poderosa ferramenta de mudança. Então é óbvio que, enquanto representante de uma força policial, a sua tarefa está justamente em evitar que isso aconteça. Entretanto, o mais interessante do roteiro de Hampton Fancher (responsável pela história tanto deste como do filme original) e Michael Green (Logan) não está na missão em si, mas no arco do anti-herói protagonista enquanto produto de seu meio. Apresentado ao espectador apenas como K, ele surge inserido no departamento de polícia de Los Angeles, cumprindo missões de rotina e sobrevivendo numa sociedade de consumo que basicamente se constrói a partir dos restos de uma sociedade anterior. Neste mundo de sucata, cultiva-se proteína na forma de gordos vermes amarelos e consome-se algo cinza disforme e pastoso, ao passo que a simples ideia de coisas como um objeto de madeira, alho refogado ou um animal de verdade remetem a um tipo de luxo que não se vê mais nesta Terra abandonada.

Se no original aquele universo — baseado no clássico livro de Philip K. Dick — representava uma sociedade de consumo rumo à decadência, aqui a degeneração é ainda mais avançada. Enquanto lá, em plena cidade de Los Angeles existiam prédios inteiros deixados para trás demonstrando a evasão da população terrestre, aqui os prédios são atulhados de apartamentos minúsculos, não porque a população cresceu, mas porque se agrupou nestes centros para fugir da desertificação e da radiação de outras grandes cidades. O maior sonho de consumo deste mundo é uma inteligência artificial em forma de uma mulher holográfica ultra realista. Além de fazer companhia e de criar objetos digitais que mascaram uma realidade cinzenta, ela oferece um relacionamento, algo muito caro para aqueles que vivem ali. Mesmo que a inteligência artificial por trás dela seja cuidadosamente programada para se aproximar do realismo mas sem cruzar a fronteira e escapar da posição de submissa aos proprietários.

Para além de K (que é interpretado com uma ‘não expressão’ por Gosling que cai como uma luva), os personagens se dividem entre intrigantes e simplesmente mal desenvolvidos, o que é uma das principais falhas deste script. Enquanto ele é a representação apática deste anti-herói noiresco (embora o filme não seja um representante tão forte do gênero como o predecessor), um punhado de outros personagens meramente funcionais são no mínimo “pouco interessantes”. A tenente Joshi, chefe dele, não faz nada muito além de dar ordens, não tem uma vida própria e é só uma representação do braço de segurança do estado, o que faz com que Robin Wright entregue uma interpretação blasé e de um só tom; Luv, a vilã replicante da vez interpretada por Sylvia Hoeks, não consegue extrapolar muito o clichê do robô assassino bem articulado (algo como um T-1000 que não muda de forma), mesmo que seja apresentada como uma andróide de última geração e que teria sentimentos complexos. Personagens que surgem pouquíssimo tempo de tela, contudo, conseguem despertar interesse muito maior justamente por entregarem muito pouco: como é o caso de Sapper Morton, um fazendeiro de proteínas que tem um histórico pregresso que envolvia revoltas em colônias fora da Terra. A performance surpreendentemente concisa e acertada de Dave Bautista demonstra que ele tem a capacidade de ir muito além dos habituais papéis de capanga que ele encarna. Enquanto isso, Jared Leto, intérprete de Niander Wallace, o gênio industrialista maquiavélico da vez, faz com que seus esquisitismos de atuação sirvam muito bem ao papel — embora depois de ouvir o boato de que David Bowie seria a escolha inicial, eu não consiga evitar imaginar como poderia ter sido.

A outra falha deste script divide a culpa com a montagem expositiva e, talvez, com alguma interferência do estúdio para que a resolução do enredo não deixasse dúvidas. Isso porque em seu desfecho, o montador Joe Walker (que já trabalhou outras duas vezes com o diretor Denis Villeneuve) opta por trazer à tona cenas do primeiro, segundo, e até do terceiro ato para garantir que o espectador não tenha perdido as peças de um quebra-cabeças que nem é tão complicado assim. A escolha não só enfraquece a possibilidade de descoberta como também dá mais importância que o necessário a algumas reviravoltas, o que, por sua vez, enfraquece o principal da obra, que são as temáticas e reflexões filosóficas propostas por este universo.

O que torna Blade Runner: 2049 único, contudo, assim como é o caso do filme original, é a sua estética. Não só nos aspectos visuais, não só no design de som, mas num conjunto harmonizado por Denis Villeneuve — um cineasta com quase tantos detratores e fãs incondicionais quanto Christopher Nolan. Com um fraco por reviravoltas ou por histórias surpreendentes, sua breve filmografia busca quase sempre tirar o espectador da zona de conforto por meio dos enredos (mesmo aqueles baseados em material pregresso) e, pelo menos de minha perspectiva, quase sempre consegue. De maneira nenhuma isso significa, contudo, que ele “cinematograficamente” se apoie somente em seus bons roteiros. Mesmo que use de técnicas clássicas (que se resumem a um bom planejamento de mise en scéne) ele demonstra controle total de narrativa justamente por aplicar métodos consolidados a histórias originais.

Aqui, diferente do trabalho de Ridley Scott no filme original — que conseguiu enquadrar a história a um molde de noir clássico — os elementos visuais são quase que completamente opostos. Ao invés das sombras que tomavam conta dos ambientes, dos enquadramentos que buscavam encurralar os personagens e de outros elementos narrativos claustrofóbicos e opressivos, em 2049, Villeneuve transforma uma história que se encaixaria perfeitamente nesse gênero clássico num “anti-noir” visual. Logo na apresentação do personagem principal, esta diferenciação se faz muito concreta, pois o que vemos na vastidão cinzenta das fazendas que tomam conta do cenário é o Peugeot (sim, um Peugeot!) flutuante de K perdido no meio da tela, minúsculo. Um contraste tremendo em comparação com a primeira vez que vimos Rick Deckard, escondendo-se atrás de um jornal, protegendo-se da chuva numa calçada a espera de um lugar para comer num balcão na beirada da rua, um quadro que conseguia falar tanto através da miscelânea de cores.

Em 2049, aliás, as cores (a falta delas, na verdade) são um dos elementos visuais mais incômodos — no bom sentido — do filme. Num espectro que vai do branco ao cinza, ao grafite e ao mais cinza ainda, algumas cores que se destacam no primeiro ato são: verde acinzentado, azul acinzentado e cor de terra congelada. O design de Dennis Gassner e os sets de Alessandra Querzola, repletos de acrílico, metal e plástico e os figurinos feitos obviamente de tecido sintético de Renée April criam uma lógica visual absolutamente importante para que os contrastes sirvam realmente de destaque. Quando a cor surge nos cenários, ela surge diretamente conectada à Wallace Enterprise, repleta de painéis de madeira, luzes amarelas e tons quentes. No caso dos figurinos, é o detalhe vermelho na roupa da vilã que salta aos olhos. Os outros elementos que trazem algum calor aos tons frios que ocupam a tela, são as holografias nos painéis publicitários, na casa do protagonista e num certo ‘refúgio’ de uma personagem, e os bens de consumo (incluindo a prostituta de cabelo alaranjado). Ou seja, os elementos representantes da artificialidade que cercam a trama.

O que nos traz ao maior catalisador de todos estes elementos visuais: a fotografia absolutamente acachapante de Roger Deakins, um dos maiores gênios do cinema atual. Não só ele consegue sintetizar este anti-noir por meio da paleta de cores, mas a partir do uso de lentes, da profundidade de campo (que já na versão 2D dá muito mais profundidade ao filme que a maioria dos filmes 3D da atualidade), da composição dos quadros e de todos os elementos que fazem parte de seu ofício. Deakins filma os cenários de maneira onisciente em relação aos conflitos dos personagens e aos elementos sólidos ou não de cada cena. Por detrás de névoa, vidro, projeções holográficas, fogo, areia e água, ele trabalha com a umidade cinzenta do primeiro e segundo atos e propositalmente não nos prepara para o contraste que surge na amarelada sequência em Las Vegas. E, dentro dela, durante uma cena de briga em meio a luzes e músicas oscilantes num casino, sintetiza um conflito memorável, enquanto se demonstra um mestre tanto na luz como nas sombras. O resultado é um eco perfeito do que o enredo representa: uma resposta ao original. Como resposta à escuridão constante, uma claridade opressiva, como resposta à claustrofobia, cenários abertos que refletem o vazio do protagonista, como resposta ao turbilhão de cores dos painéis publicitários que tomavam conta do filme original, uma névoa cinzenta sempre presente.

Há quem diga que Denis Villeneuve não traz nenhuma originalidade técnica ou estética para o cinema, que ele se sustenta em bons roteiros e que tem a sorte de contar com bons profissionais — uma acusação injusta, se analisarmos o controle que ele emprega mesmo sobre as cenas de diálogo mais simples. Mas, mesmo se for este o caso, que ele continue com o bom trabalho pois está dando certo até agora. Blade Runner: 2049, afinal, é uma excelente sequência para o original justamente por partir do simples conceito de estudar o que o tempo fez com aquele universo que nos foi apresentado há trinta e cinco anos. Sem a necessidade de expandir o universo, recontar histórias ou trazer de volta personagens, o longa não só é uma continuação do enredo como também uma resposta às temáticas originais.

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