Dunkirk, um estudo sobre tempo e resiliência

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
7 min readAug 7, 2017

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Antes dos japoneses e norte-americanos se envolverem na Segunda Guerra Mundial, em maio de 1940, menos de um ano depois das tropas de Hitler invadirem a Polônia, cerca de 400 mil homens franceses e, na maior parte, britânicos se viam encurralados em Dunkerke, uma cidade de praia no litoral norte da França. O sítio aconteceu depois das forças alemãs terem invadido, nos últimos meses, Polônia, Holanda, Suécia e Noruega e de tomarem conta das regiões sul e sudeste da França, formando uma espécie de “pinça” ao redor dos aliados. Na Inglaterra, Churchil, recém chegado ao cargo de Primeiro Ministro, deu aval para a Operação Dínamo, uma das mais importantes e decisivas da guerra e que uniu forças militares e civis no resgate. As dimensões são impressionantes: em menos de um mês de conflito, mais de 15 mil soldados foram mortos, cerca de 50 mil foram capturados, mais de 200 navios foram afundados e mais de 140 aviões derrubados.

A história é, claro, escrita pelos vencedores, razão pela qual quando se estuda essa batalha, a interpretação que se tem não é a de quando o Führer botou o exército aliado para correr, mas sim a de uma retirada vitoriosa e um símbolo da resistência britânica frente à crescente ameaça nazista. Christopher Nolan não foge disso em Dunkirk, mas, habilidosamente, consegue estruturar um roteiro que se fragmenta a partir das perspectivas de uma série de personagens — tomados pelo medo, pelo senso de dever ou por ambos — e que, ao longo do filme, acabam se tornando ícones de resiliência.

A terra

Tal roteiro é construído ao redor do tempo como principal objeto abstrato e, a partir disso, o conflito entre a resistência dos personagens a uma série de ameaças. Dividindo o enredo em três núcleos principais, a terra, o mar e o ar, o filme nos oferece uma visão completa da operação, ainda que estritamente britânica. E o script demonstra disciplina e coerência admiráveis neste sentido, visto que mesmo com a presença constante de soldados da França na praia, a perspectiva inglesa prevalece durante a totalidade da narrativa. A única passagem que poderia servir de excessão — no terceiro ato do filme, quando um soldado francês central para determinada cena — é, ainda assim, vista pelos olhos dos soldados do Reino Unido. Quanto aos alemães, estes aparecem no máximo como vultos e ameaças sem face.

Para além dos militares encurralados em terra firme, acompanhamos, no mar, um barco civil inglês de porte médio e, no ar, uma frota de caças monomotores do modelo spitfire. Para cada núcleo, existem ameaças específicas, hora os bombardeios em terra e no ar, hora as intempéries da região. A principal ameaça, contudo, é o tempo — um dos temas favoritos de Nolan, central no enredo e/ou na estrutura de praticamente todos os seus filmes originais (os que não fazem parte da trilogia do Cavaleiro das Trevas) — que transforma cada arco narrativo em uma bomba-relógio. É aqui que o os aspectos técnicos do filme brilham ao refletir sua temática principal. Na trilha sonora, as lamúrias e as cordas sempre presentes de Hans Zimmer são acompanhados por um tique-taque incessante, que usa tons graves que crescem ao passo que os tons agudos diminuem. O efeito é de uma trilha que parece ficar sempre mais alta e mais presente sem realmente mudar de tom — estratégia que não é nova para Zimmer ou para o cinema de Nolan, mas que como uma luva para o longa. E ao invés de lotar a tela de relógios, o que seria uma escolha fácil e lógica, ainda que óbvia, o designer de produção Nathan Crowley utiliza toda a sorte de objetos circulares ou que lembrem fisicamente relógios para reforçar o perigo mais presente para os personagens: desde um cinzeiro de onde um soldado ‘rouba’ um cigarro na primeiríssima tomada do filme, até o alvo circular dos aviões e metralhadoras ou as bússolas das embarcações.

O diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema, ainda que não traga nada de específico para o tema fora garantir que elementos físicos citados acima estejam sempre presentes, faz o trabalho essencial de situar o espectador, tanto destacando a geografia dos locais com os planos abertos que ficam gigantescos através das câmeras IMAX, quanto usando planos médios para explicar ou reforçar detalhes da história sem a necessidade de dizer uma palavra sequer: como a tomada que destaca um panfleto nazista que mostra exatamente o local em que as tropas estão presas; ou em um plano sobre as cabeças dos soldados acuados, que ao mesmo tempo que os mostra diminutos diante da ameaça, destaca a diferença dos capacetes ingleses e franceses, uma das poucas maneiras de identificarmos quem é quem.

No roteiro em si, o tempo se converte em perigos diferentes para cada grupo de personagens. Na praia, é representado pela maré imprevisível, que pode servir tanto como salvação, como pode encalhar as embarcações da marinha inglesa caso estas se aproximem demais dos píeres; no mar, é representada por um soldado traumatizado (Cillian Murphy, que pode muito bem receber uma indicação pelo papel), cuja instabilidade arrisca a tripulação e o sucesso da missão; e no ar, está no indicador defeituoso do combustível do caça do capitão Ferrier (Tom Hardy). É na combinação dos aspectos técnicos com o roteiro que se destaca o lado mais positivo do perfeccionismo e da obsessão de Nolan pelo controle completo da narrativa e da estética do filme. Mas, ainda que essas características demonstrem o melhor de sua vasta experiência e da sua evidente formação literária, esta fixação não abre espaço para superação de algumas de suas falhas enquanto roteirista e diretor.

Desde o princípio de sua carreira, os seus erros mais recorrentes parecem surgir de uma certa desconfiança de que o espectador médio não entenderá completamente a narrativa ou até de uma certa arrogância: como é o caso da necessidade de reforçar ideias o tempo todo através de diálogos (como na maior parte de A Origem), a recapitulação desnecessária e o didatismo (como a explicação final em O Grande Truque) e um desinteresse quando se chega às vias de fato das cenas de ação (como os conflitos desajeitados entre a polícia e os capangas de Bane em O Cavaleiro das Trevas Ressurge). Nos 106 minutos de duração de Dunkirk, a maioria destas deficiências parecia superada, mas é nas resoluções finais da narrativa que Nolan comete alguns tropeços que, mesmo que não cheguem nem perto de comprometer completamente o filme, o impedem de se tornar uma obra-prima imediata.

O ar

No roteiro em si, alguns dos personagens perdem seu valor simbólico, abrindo espaço a uma subtrama vazia, como é o caso do marinheiro Mr Dawson, interpretado pelo genial Mark Rylance, que até então servia como representação da resiliência do povo britânico. O arquétipo acaba sendo diminuído quando surge uma desnecessária biografia pregressa — a de um filho perdido na guerra. É algo que parece insignificante mas que enfraquece uma ideia muito bem estabelecida no início do longa, a de representar a pluralidade e a coragem da resistência inglesa frente à ameaça nazista por meio de personagens que simbolizam tudo isso sem necessariamente nomeá-los ou contar suas histórias. Tanto que, por melhor que seja o elenco — com destaque principalmente para o jovem Fionn Whitehead (o “soldado principal”) e para o veterano Kenneth Branagh (o comandante), além dos já citados Mark Rylance e Cillian Murphy — o que causa mais impacto não são seus nomes ou suas biografias, mas sim o que eles representam.

O mar

É um detalhe que parece não fazer, mas faz diferença, ainda mais quando somado a uma tentativa de reforçar o drama dos soldados — o do medo de serem recebidos em casa como covardes — com uma montagem que tenta desnecessariamente juntar todos os núcleos numa única resolução final. Mesmo que o trabalho do montador Lee Smith tenha sido perfeitamente eficaz em lidar com as histórias simultâneas até então.

Nenhuma destas imperfeições, contudo, consegue impedir que Dunkirk seja um dos melhores filmes de guerra deste século, até então. Mesmo que não venha a se tornar um grande clássico do cinema como um todo ou mesmo que não seja a minha obra favorita de Christopher Nolan, ele tem sem dúvidas o potencial de entrar para o rol de clássicos desse subgênero. É exemplo de como usar um conceito puramente abstrato — o tempo — para enxergar um evento histórico através de uma perspectiva unilateral muito específica e ainda assim abrir espaço para a diversidade de classes diretamente envolvidas.

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