Era uma vez… em Hollywood… um cowboy, um dublê, uma princesa e um assassino

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
8 min readAug 31, 2019

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Invariavelmente, a descoberta do amor pelo cinema de qualquer cinéfilo millennial vai passar pela obra de Quentin Tarantino. Ame-o, odeie-o ou simplesmente despreze-o, é muito raro simplesmente não se deparar com Kill Bill, Cães de Aluguel, Bastardos Inglórios ou com Pulp Fiction, alguns dos filmes mais influentes dos últimos 30 anos. Pode ser a violência, os diálogos aparentemente superficiais, os personagens marcantes, a trilha sonora estilo mixtape ou a estrutura diferenciada de seus roteiros que tenham chamado sua atenção da primeira vez. A característica que mais o define como artista, contudo, mais do que sua estética ou dos temas que lhe atraem, é o seu amor obsessivo pelo cinema não só como forma de arte, mas também como forma de entretenimento.

De cineastas cinéfilos a história está cheia, principalmente a partir da explosão cultural da metade do século passado. Mas a chave para entender as bases das referências de Tarantino vão além da grande tela. Elas passam com igual importância pelas ondas intermitentes das TVs domésticas. Seja pelas emissoras californianas ou pelo magnetismo das fitas VHS, é fato que a matéria-prima de suas ideias não passa exclusivamente pela projeção tradicional. Ela fluiu entre os intervalos comerciais, nos filmes B e de exploitation que alimentaram a chamada “geração perdida”, dos anos 1970 e 1980. E isso se reflete de maneira especial em Era uma vez em Hollywood.

A história se desenrola a partir de fevereiro de 1969, ano do “verão do amor”, em Hollywood, marcado para sempre pela tragédia dos assassinatos cometidos pela família de Charles Manson, um supremacista branco psicopata que pregava a ideia de que uma guerra racial estava prestes a eclodir nos EUA. Em agosto daquele ano, Sharon Tate, atriz, grávida de oito meses e meio, foi esfaqueada mais de vinte vezes junto com outros três convidados na casa em que morava com o marido, o diretor polonês Roman Polanski, em Cielo Drive. A ideia de que seria este o tema do filme de Tarantino não me trouxe nada que não fosse aflição desde que foi anunciado, há alguns anos.

Por quê? Porque outra das mais marcantes características temáticas da sua obra é a sua empolgação adolescente com a violência nas telas, o seu humor ácido e o fato de que, por mais virtuoso que seja enquanto artista, sua sensibilidade não necessariamente é uma característica notável. Ou pelo menos é a mais bem escondida. A inquietação se quebrou eventualmente mas não logo de cara. A virada pra mim veio na cena em que Cliff Booth, o dublê de moral duvidosa interpretado por Brad Pitt, roda a cidade no Cadillac Coupe DeVille 1966 creme de Rick Dalton, o astro de ação decadente interpretado por Leonardo DiCaprio. Foi neste momento que ficou claro que essa história não seria sobre a tragédia, ou ao menos não só sobre ela. Esta história seria uma sincera declaração de amor a Hollywood.

A fotografia de Robert Richardson sempre parece capturar a cidade em seu melhor momento, o ocaso que nos leva noite adentro quando os luminosos dos grandes teatros, restaurantes e cinemas de rua tomam a tela. Quando aliada ao design de produção de Bárbara Ling, que recria perfeitamente a época, esclarece o objetivo estético e temático do longa. Não o de uma documentação perfeita, mas o da reconstrução de uma memória afetiva. De uma época mágica em que um turbilhão cultural potencializado por narcóticos, conflitos raciais e o crepúsculo do sistema industrial dos grandes estúdios deu à luz a Nova Hollywood. É com esse visual que um cenário feito de saudosismo se estabelece como a base da obra. Cria-se um fundamento principal que, ao longo de mais de duas horas e meia (num filme perceptivelmente longo), é incrementado e poluído com elementos idiossincráticos de uma época tão turbulenta, resultantes do trabalho que um artista que não só se inspira por este cenário como também o estuda e reflete sobre seus altos e baixos.

Tais elementos se materializam em dois eixos principais. O primeiro é a contracultura do movimento hippie em si. Diferente de como normalmente vemos na cultura pop, a rebeldia surge como um espectro que ronda os personagens. Sempre na beirada da rua. Com o objetivo claro de afastar o espectador das ideias libertinas que ao mesmo tempo em que questionavam o status quo para o bem, serviam de combustível para a fúria dos seguidores do culto a Mason, Tarantino opta até mesmo por desviar na trilha sonora das músicas e artistas que faziam uníssono com o movimento. O foco da trilha, aliás, está diretamente ligado à construção de mundo citada no parágrafo anterior: se apoiando ora em músicas pré 1969, ora em vinhetas de rádio da época que devem ter sido fruto de um extensivo trabalho de pesquisa, recuperação e reconstituição. Indo muito além das playlists que fez todas as outras vezes.

O segundo eixo, que serve pra mexer com as bases saudosistas do cenário, é a construção e relação dos dois personagens principais. Rick Dalton, na leitura mais óbvia e provavelmente planejada no roteiro, é um alter ego da masculinidade construída na Hollywood clássica e que foi desmontada a marretadas pela revolução cultural. Fez carreira como herói de ação, derrotou nazistas, fez teste para papéis de anti-heróis e se consolidou como personagem protagonista de uma série de tv de faroeste. A televisão como mídia, aliás, ouso dizer que nunca foi tão respeitada e celebrada no cinema. O diretor não só referencia indiretamente as séries, como quando homenageou Kung Fu em Kill bill, por exemplo. Aqui ele avança a ponto de dirigir o próprio episódio de FBI — série de sucesso exibida entre 1965 e 1974. Outra possível leitura sobre o protagonista é a de que ele é um reflexo do próprio Quentin Tarantino, cineasta autoral mais popular de sua geração. Dirigindo o que, segundo ele, é seu penúltimo filme antes de se aposentar, lança-o numa Hollywood contraditória que continua refém do sistema industrial dos grandes estúdios (e do mercado chinês), ao passo que segue as tendências e exigências de obras mais representativas para minorias, pois depende de um público muito ativo para se manter. Discussões com as quais ele não demonstrou preocupação na maior parte de sua carreira.

Já o dublê Cliff, personagem de Pitt, é deliberadamente uma incógnita. Caminha por uma linha tênue de moralidade e é feito de mistério. Não sabemos muito sobre seu passado ou sobre o que ele pensa. E por mais amável que ele se demonstre nas cenas com Rick e com Brandy, sua Pit Bull gigante que adora comida enlatada, é um lutador frio capaz de derrubar Bruce Lee — maior artista marcial do século XX — no estacionamento de um estúdio. Cena esta que gerou uma polêmica vazia, sem muito sentido e que acaba ofuscando a interpretação precisa do ator Mike Moh, que com o pouco de material que lhe é dado pelo roteiro (afinal Lee só está aqui como escada para Cliff) consegue humanizar um ator incomparável, que se obrigou a criar uma carapaça (interpretada como arrogância por alguns) como maneira de navegar entre os espaços que conseguia numa indústria que é, até hoje, racista com asiáticos.

E já que toquei no assunto, vale trazer à tona a maneira como os grandes astros da época são retratados. Pessoas maiores que a vida, celebridades no sentido mais puro da palavra, aqui se tornam na maior parte caricaturas de si mesmos. Que assim como Bruce, servem como dispositivo de roteiro. Jay Sebring e Roman Polanski, diretamente envolvidos com a tragédia, são pouco mais que objetos de cena. Steve McQueen, um dos maiores astros de ação dos anos 1950, aparece como um ser bizarro na festa da Playboy, obcecado pela estonteante Sharon Tate. Não existe e nunca existiu a pretensão de dar tridimensionalidade a estas pessoas e isso por si não é um problema pois, como eu disse, eles fazem parte desta paisagem. Exceto por Sharon.

Fica muito descarada a ideia de homenagem quando se trata dela. Tarantino a coloca sob uma redoma, faz um tributo claro à sua curta carreira de atriz e dá muito mais espaço a ela do que aos outros coadjuvantes de luxo. É aí que as fragilidades começam a aparecer. Não porque existe algum problema intrínseco em não querer se aprofundar tanto assim no papel da principal vítima do massacre, mas porque, quanto mais tempo ela tem de tela, mais se percebe o pouco estofo de construção da personagem. É bom destacar que Margot Robbie não é necessariamente responsável por isso porque, justamente, tem pouco material para desenvolver. Na única cena longa em que ela protagoniza, quando vai ao cinema se ver em tela, sonhando com uma carreira de sucesso que jamais teria, é quando, pela única vez, a duração começa a pesar. Antes da montagem de Fred Raskin voltar aos trilhos.

Raskin, que aqui, entrega sua melhor parceria com Quentin Tarantino. Pode ser que pela simplicidade de apostar numa linearidade cronológica clara (incomum nos outros filmes) ou por optar por uma montagem que prioriza planos mais longos. Mas se fosse apostar em alguma coisa, diria que, pela primeira vez, ele parece não tentar replicar o trabalho incomparável de Sally Menke, parceira de Tarantino na edição de seis de seus nove filmes e que faleceu em 2010. A linearidade é perfeita para os objetivos do longa. Coisa que só fica plenamente perceptível logo antes dos créditos finais, quando o título aparece sobre a paisagem. Isso porque a primeira impressão pode enganar o espectador. Nos fazer pensar que é uma simples referência aos grandes épicos do mestre do cinema moderno italiano Sergio Leone: Era uma vez no Oeste e Era uma vez na América. Afinal, talvez este seja o maior ídolo de Quentin Tarantino.

O que fica explícito ao fim da sessão, porém, é que a ideia do Era uma vez faz uma óbvia alusão justamente às obras que mais se utilizam desse tipo de introdução: os contos de fada. Porque o cinema de Tarantino nunca foi sobre a recriação fidedigna de uma época. Nunca foi só sobre violência. Nunca teve pretensões documentais ou de retratar perfeitamente a vida de personagens reais. Sempre foi um cinema de homenagem, de violência como vitalidade em cada tomada. E o diferencial de seu nono filme é que, pela primeira vez, ele faz isso de peito aberto. Usando a sua oportunidade de voltar pra cidade que ama para nos mostrar que ele pode, sim, depois de 27 anos de carreira, demonstrar seu lado sensível e até mesmo emotivo. Ainda que o faça de maneira excêntrica.

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