Tem um roteiro capenga no caminho de Valerian

CRÍTICA

Vincent Sesering
Coquetel Kuleshov
7 min readAug 18, 2017

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Valerian, a cidade dos mil planetas, para o espectador desavisado pode parecer uma colagem de referências infinita. Um anti-herói cafajeste, mas de bom coração, apaixonado pela mocinha relutante — que de mocinha não tem nada -, uma organização militar com uma cadeia de patentes ilimitadas e que gera problemas para si mesma, uma estação espacial gigantesca que reúne diversas espécies de diversos planetas. E além: uma nave espacial extremamente similar à Millenium Falcon que viaja à velocidade de dobra, um computador de bordo que é quase um terceiro integrante da tripulação, uma missão de busca por um artefato único e incrivelmente poderoso. Ao contrário do que pode parecer, Star Wars, Babylon Five, Battlestar Galactica, Star Trek e outras obras de ficção científica não serviram como referência para a criação deste universo, visto que a história em quadrinhos que deu origem ao filme foi lançada em 1967.

Não que o roteiro de Luc Besson — que lembremos, além de diretor é um roteirista experiente — possa ser livrado da responsabilidade dos problemas narrativos do filme, mas é importante deixar claro que esta é uma das razões pelas quais a história deixa um gosto de “velho”, um ranço de falta de originalidade na cabeça do espectador. Tendo reconhecido este problema que Besson tinha em mãos, contudo, a fragilidade do roteiro é palpável mesmo para quem tenha permanecido trancado num quartinho nos últimos 50 anos. Não é a história em si que puxa Valerian pra baixo, como algumas críticas acabam apontando. Em algum momento dos anos 2900, o Major Valerian (Dane DeHaan) é convocado por um ministro da federação para recuperar um artefato de suma importância. Tal artefato, descobriremos mais tarde, está ligado a uma raça que todos achavam que tinha sido exterminada há 30 anos. A missão de Valerian ao lado da Sargento Laureline (Cara Delevingne) é, então, levar o objeto até a estação Alpha, uma estação espacial monstruosa e que abriga vidas e o conhecimento de milhares de espécies diferentes e é onde se encontra um centro de comando. Chegando lá, a dupla se depara com um novo problema, uma zona perigosa e instável na área central desta megalópole que ameaça a vida de todos.

O mais interessante desta epopeia, contudo, o porquê do extermínio da raça, a importância do artefato e as razões de perigo por trás da misteriosa área vermelha no centro de Alpha — temas dos quais não me arrisco a falar por desnecessariamente se tratarem de spoilers — acabam espremidas em menos de 15 minutos do final do filme. Tudo por causa da muleta preferida do roteirista moderno: a reviravolta. A escolha faz com que três quartos do script se apoiem na riqueza do universo — que é interessante, mas não sustenta completamente a aventura — e na relação entre os dois personagens principais, que não é algo super interessante ou fora do comum ou extremamente original, mas é definitivamente… bacana. O que mais atrapalha, contudo, é o ruído.

Valerian é, como a maior parte dos heróis surgidos dos anos 1960, um mulherengo que foge de responsabilidades o tempo todo; Laureline, que vive nessa relação de amor e ódio é aquela clássica heroína durona que sabe se virar e resiste a tudo (menos ao charme do herói, claro); e quase todo o resto dos personagens não têm vida própria, são unicamente funcionais. Os comandantes da missão, os soldados que não sobreviverão, o conselho político da cidade, o vilão, o cafetão que vai ajudar Valerian a se infiltrar etc. É uma escolha que dá pra entender a princípio, afinal o filme emula a estrutura de uma aventura de um agente especial — ele recebe a missão, vive altas aventuras, cumpre a missão. Mas o desequilíbrio na escolha e no uso dos coadjuvantes entra no caminho do sucesso dessa estrutura. O vilão, por exemplo — um personagem que tem um arco deveras interessante e que poderia servir até mesmo como alegoria para personagens políticos da nossa realidade — some no início do filme e só aparece no final, enquanto Rihanna tem quase um curta-metragem no meio do segundo ato. Veja bem, nada contra Rihanna, eu até embarquei na febre de Umbrella em 2007, mas em Valerian, onde interpreta (muito bem até) uma alienígena com uma habilidade muito particular que ajudará o herói a se infiltrar em determinado local, ela por alguma razão desconhecida (talvez porque se o estúdio coloca a Rihanna no seu filme, você dê destaque a ela!) tem um arco de personagem mais desenvolvido que todos os outros. Mais até do que o protagonista, aliás, cujo principal conflito é a dificuldade de assumir responsabilidades e compromissos — algo que é tão superficialmente explorado que a única maneira de se descobrir é porque a personagem Laureline repete duas vezes: “você tem medo de se comprometer”.

É a junção desse desequilíbrio com a reviravolta que não precisava existir e o desinteresse em desenvolver melhor ideias que são simplesmente jogadas em tela, que transforma o roteiro de Valerian em algo completamente inflado e disforme e que, pior, ofusca toda uma estética que é um colírio para os olhos de quem já se cansou da onda de blockbusters sóbrios e monocromáticos que assola o cinema. O que normalmente se vê nos grandes lançamentos de estúdio ou vai para o extremo de tons cinzentos e coloração lavada estilo filmes da Warner/DC, e disso nem Mulher-Maravilha consegue escapar no seu ato final, ou para o extremo de tons médios e claros mas completamente nivelados na mediocridade, estilo filmes da Marvel, o que reforça mais ainda o fato de que as obras não têm uma identidade narrativa própria. Valerian ousa tentar algo diferente, mesmo que para replicar a estética dos quadrinhos e trazer à tona um visual pop art da época do lançamento.

A fotografia de Thierry Arbogast, um companheiro antigo de Besson, traz uma vivacidade que faz muita falta para o gênero de ficção científica. A paleta de cores é diversa, refletindo as páginas das HQs mas é utilizada de maneira inteligente. Ecoa os sentimentos nos tons azulados dos pearls, os perigos de cada situação criando quadros dentro de quadros nos labirínticos corredores do centro de comando etc. Quem mais brilha, contudo, são os figurinos de Olivier Bériot e o design de produção de Hugues Tissandier. Enquanto as roupas de Valerian e Laureline demonstram o equilíbrio entre a competência e a imaturidade de ambos, os uniformes militares e até mesmo as vestes civis são atalhos para entendermos a função da infinidade de coadjuvantes do filme. O trabalho de Tissandier consegue dar coerência a um universo que claramente cresceu caoticamente, trazendo cenários tão completamente diferentes um do outro e que ao mesmo tempo auxiliam numa natural divisão de capítulos do filme: a chegada ao planeta arenoso de Kyrian, o mercado em outra dimensão, o cinzento e burocrático quartel general, os esgotos “subterrâneos”, a cidade alta e a cidade baixa, as entranhas da estação espacial etc.

Luc Besson demonstra toda a experiência que tem enquanto diretor, sabendo lidar com a mise en scene e utilizar as movimentações da câmera tanto nas sequências mais complexas como nas cenas mais simples. Valerian é um projeto antigo do cineasta e isso se reflete na maneira como ele explora confortavelmente este mundo. O fato do roteiro ser tão capenga acaba criando cenas de qualidade paradoxal onde o Besson diretor faz o melhor que pode com o trabalho do Besson roteirista. E, assim como aconteceu em Lucy, uma ficção científica com um enredo bizarro e esdrúxulo, a ação muitas vezes acaba compensando os tropeços do script. Além de todas as fugas ou perseguições com as naves, o que já é lugar comum para os filmes do gênero nessa era em que tudo pode ser perfeitamente construído digitalmente, as lutas muito bem coreografadas são exemplos do seu domínio de câmera. Vale destacar aqui a cena em que o protagonista está perseguindo um prisioneiro atravessando toda e qualquer parede que esteja em seu caminho graças a uma armadura especial.

A cereja do bolo da estética kitsch de Valerian é a trilha de Alexandre Desplat, que combina temas que remetem à ficção científica clássica usando e abusando de instrumentos de corda, de sopro e pianos, mas com uma invasão muito bem vinda da percussão — principalmente tambores. O resultado é um reflexo perfeito do que Besson queria que esse filme se tornasse, uma aventura de um rebelde herói jovem e boêmio sob uma máscara de ópera espacial. É uma pena que um roteiro que se tornou uma colcha de retalhos por claramente ter mais interferências do que deveria acabou entrando no caminho deste potencial. Felizmente existe O Quinto Elemento para preencher este vazio.

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